Capítulo 17: Criados para guerra
O apito estridente cortou o ar como uma lâmina.
— Chega! — gritou o sargento Miles, marchando pela beira da pista com passos duros. — Meus parabéns, vocês sobreviveram à manhã.
Alguns riram, fraco. Outros, como Lyra, apenas se dobraram, tentando recuperar o ar. O suor descia em rios pelo rosto. Os músculos ardiam como brasas. Mas ela estava de pé.
— Isso é tudo por hoje. Vocês só voltam a ser meu problema amanhã. Agora vão tomar banho, comer, se reorganizar. E cada um que siga o maldito calendário no tablet. — Miles girou nos calcanhares e resmungou algo para um dos instrutores antes de sumir.
Calder apareceu ao lado deles, ainda ofegante.
— Vamos logo. Se demorarmos, o Branth vai usar toda a água quente disponível.
O medo de Lyra não se confirmou. Havia vestiários separados. O feminino era uma sala ampla, de piso áspero, paredes descascadas e uma única fileira de duchas metálicas. Sem divisórias. Sem privacidade. Apenas jatos fortes de água quente e vapor preenchendo o ambiente com o cheiro de sabão, suor e cansaço.
Ninguém ali parecia se importar com a nudez. A vergonha era um luxo que o treinamento já começava a arrancar.
Lyra foi a última a entrar. Os ombros ainda pesavam, as pernas, trêmulas. Escolheu um canto mais afastado e deixou a água escorrer pelas costas, tentando relaxar os músculos ainda em brasas.
— Nossa estrela teve tempo até pra flertar na pista — disse Imara, rindo de uma maneira que deixava claro ser apenas uma brincadeira.
— Bobagem — respondeu Lyra, enrubescendo.
As garotas do dormitório riram, quebrando parte da tensão.
Tyla se aproximou logo depois, os cabelos encharcados caindo pesados. A pele dourada reluzia sob o vapor, com veios de aether pulsando embaixo como se fossem fragmentos líquidos de sol.
— Você me mediu de novo — disse ela, sem virar o rosto. A voz era firme, baixa, e não carregava acusação, apenas uma constatação.
Lyra engoliu em seco. Respirou.
— Não estou te julgando — disse, mais para si do que para Tyla. — É que… você me lembra alguém.
Tyla ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada.
— Uma mulher que eu conheci. Cruel e perigosa, mas forte. Intensa. Pode dizer que só estou aqui por causa dela.
Nem percebeu o quanto seu coração acelerou ao lembrar de Aliah. Se não fosse por ela, estaria em casa ainda. Com Rob, com Virna. Com Ciel. Com o pequeno Isaac.
Tyla assentiu devagar. Não parecia incomodada, apenas distante, como quem guardava suas próprias memórias em silêncio.
— Você vai se acostumar — disse por fim. — Com o treino. Com os outros. Comigo.
— Espero que sim.
Lá no fundo, Kara gargalhou alto, esfregando os ombros.
— Não se acostumem com o conforto — disse. — Dizem que cada dia fica mais difícil.
— Essa foi a parte fácil? — reclamou Imara, ainda se enxaguando.
— Bem-vinda à realidade, princesa — brincou Kara, piscando para Lyra.
O ambiente começou a se soltar. As vozes baixas enchiam o espaço, dissolvendo a tensão. A água não lavava só o suor: lavava o medo, as inseguranças, e erguia, aos poucos, um senso de pertencimento. Não era afeto. Era sobrevivência em grupo.
Saíram dali direto para o refeitório.
Era um salão funcional, barulhento, iluminado por fileiras de luz fria. As bandejas se empilhavam na entrada, e os alunos seguiam a fila em passos mecânicos. Arroz sintético, proteína vegetal pálida, legumes em cubos e um suco espesso. Ninguém reclamava. Comer era parte do treinamento.
Lyra caminhava junto dos outros. O grupo ainda estava calado. Exausto demais para conversar.
Branth encarava a comida com olhos famintos.
— Sabem qual é a aula da tarde? — perguntou Kara, enxugando o rosto com a manga da camisa.
Calder consultou o tablet. A tela brilhou em tom esverdeado.
— Núcleo aethérico. Vai ser nossa primeira aula da disciplina. Bloco dois. Sala dezoito. Começa em trinta minutos.
— Espero que não envolva correr — resmungou Imara, empurrando a bandeja adiante.
Um legado se aproximou por trás e segurou Imara com as duas mãos. Não era o maior entre os legados, mas ultrapassava os dois metros. O olhar estava perdido, pupilas dilatadas, transpirava em profusão. Tinha algo errado.
Ergueu Imara como se fosse uma boneca de pano. Cheirou seu pescoço, depois sua virilha, fazendo movimentos espasmódicos com o quadril. Imara Gritou.
O refeitório congelou.
— Ei! — gritou Branth, correndo na direção dele.
O legado o afastou com um tapa que o lançou contra uma mesa. Voltou-se para Imara e começou a puxar o tecido do macacão, na intenção de rasgar.
— PARA! — berrou Lyra, sua voz carregada de vontade, como uma lâmina afiada. O som se espalhou como uma onda.
Tudo parou por instantes. Branth no chão. Imara erguida como um prêmio. O legado a encarando, mas agora com os olhos vacilantes, como se algo tivesse quebrado dentro dele.
Largou Imara.
Três outros legados chegaram correndo e o imobilizaram. Era tarde. Mas não tarde demais. Os seguranças do local se aproximaram, mas ao ver a cena controlada, voltaram aos seus postos. Ninguém havia se ferido, ou quase isso.
O que parecia ser o líder daquele grupo, era o mesmo da armadura amarela que Lyra cruzara nos corredores. Ele olhou para ela, ofegante.
— Ele recebeu sua suplementação hormonal agora há pouco. Deve ter perdido o controle com o cheiro dela… Ei. Você. Eu lembro de você, dos corredores.
— Levem ele daqui — disse Lyra, firme, sem dar atenção a ele. — Agora.
Eles obedeceram. O refeitório foi se recompondo em silêncio. Aos poucos, os ruídos voltaram, bandejas batendo, passos hesitantes, respirações forçadas.
Imara chorava em silêncio. Branth e Calder se colocaram ao lado dela, como muralhas. Pegaram comida para ela. A sentaram.
— Estou bem — disse Imara, com uma voz frágil que ninguém acreditou. — Vamos comer. Não podemos nos atrasar pra aula.
Ninguém respondeu de imediato. Os talheres tilintavam contra as bandejas, abafados pelas conversas ao fundo, que voltavam lentamente a preencher o refeitório. Mas naquela mesa, o silêncio era espesso.
— Tome — disse Russel, estendendo um guardanapo. — Seu nariz está sangrando.
Lyra franziu a testa, surpresa. Não tinha percebido. Só então notou as gotas grossas e vermelhas pingando sobre a mesa e o tecido do macacão. Pegou o guardanapo e pressionou contra o nariz, sentindo o calor pulsante do sangue recém-saído.
— Merda… — murmurou, inclinando levemente a cabeça para trás.
E ali, entre colheradas sem gosto, bandejas frias e olhos ainda trêmulos, o grupo tentava entender o que havia acabado de acontecer. O barulho do refeitório havia voltado, mas para eles, parecia abafado. Como se estivessem mergulhados sob a água.
Foi Tyla quem quebrou o silêncio, sem levantar a voz, sem olhar para ninguém em particular.
— É por isso que recomendam cautela com os legados — disse Tyla, sua voz soando entre o barulho dos talheres. — Principalmente nós, garotas. Apesar de serem estéreis, o corpo deles produz quantidades absurdas de testosterona. E ainda recebem reforços nos suplementos.
As palavras dela não foram ditas com medo, nem raiva. Só um fato cru, como quem conhece os bastidores e aprendeu a conviver com eles.
Imara abaixou os olhos. Não havia o que responder.
Lyra sentiu um gosto metálico na boca. Não sabia se era da comida ou da lembrança recente.
Branth empurrou a própria bandeja e ficou só observando. Calder manteve-se calado, mas o maxilar cerrava e cerrava de novo.
As palavras pairaram no ar. Rígidas. Reais.
— Por quê? — perguntou Branth, a voz ainda rouca do impacto. — Por que reforçar isso? Já não são fortes o bastante?
— Porque foram criados pra guerra — respondeu Tyla, com um desdém contido. — E um guerreiro sem instinto é um peso morto. O problema é que, às vezes, o instinto engole o controle.
Ninguém respondeu.
Lyra apertou o garfo com força. A imagem de Imara, erguida no ar como se não fosse nada, ainda pulsava atrás dos olhos. O jeito como ela tentava manter a compostura. O modo como o refeitório voltou a fingir normalidade tão rápido.
Era assim ali. O mundo não parava.
Calder quebrou o ritmo, empurrando o resto da comida e se levantando.
— Vamos. Sala dezoito. Se a gente atrasar, vão fazer a gente correr pelados em círculo no pátio, sei lá.
Branth bufou e se levantou. Imara demorou alguns segundos, mas foi também. Os olhos vermelhos, mas a coluna ereta. Lyra foi atrás, em silêncio. Tyla veio por último, tão firme quanto sempre.
A guerra não dava pausa.
Mas o grupo caminhava junto.
E isso já era alguma coisa.
O Bloco 2 parecia pertencer a outro mundo. As placas metálicas azul-acinzentadas nas paredes não apresentavam manchas nem imperfeições. O chão brilhava sob uma luz fria e uniforme. Até os corredores tinham um leve perfume cítrico, como se o ar ali fosse constantemente renovado.
O número 18 pulsava em branco sobre a porta automática. No centro do vidro fosco, o símbolo do Domatorum parecia gravado a fogo.
— É aqui — disse Calder, tocando o painel de acesso.
A porta se abriu com um sopro sutil de ar condicionado, revelando uma sala semicircular. As fileiras de assentos ergonômicos se alinhavam em degraus suaves, voltadas para uma lousa branca, onde dados e gráficos eram projetados em tons esverdeados.
A resposta à presença deles veio com o som de uma segunda porta se abrindo, ao fundo.
Ela entrou.
Segundo as informações do tablet, seu nome era Aedena Medinni, sua professora.
Era como se o ambiente tivesse prendido a respiração.
Os olhos dela, castanhos-dourados, tinham um brilho metálico incomum, como se carregassem o reflexo de algo maior, ou mais antigo. Sua pele morena parecia feita de pedra polida. O rosto oval exibia traços serenos, mas havia algo nos contornos, talvez na suavidade dos lábios ou no nariz reto, que parecia intocado pelo tempo.
Os cabelos negros e ondulados desciam pelas costas como uma manta viva, capturando a luz em reflexos sutis. O corpo, de curvas marcadas e proporção esguia, transmitia um equilíbrio hipnótico entre presença e autocontrole, como se cada gesto fosse calculado.
Vestia uma túnica amarelada, a única pessoa, até então, que ousava estar ali sem um uniforme militar imperial, e, mesmo assim, emanava mais disciplina e comando do que muitos oficiais fardados. Era como se tivesse sido esculpida em silêncio e autoridade, uma figura que não precisava erguer a voz para impor respeito.
A voz dela, quando enfim preencheu o espaço, era grave, quente, e sem qualquer dúvida.
— Sentem-se.
Não era um convite. Era um comando.
Todos obedeceram. Até Calder se endireitou na cadeira como um aluno exemplar.
A professora caminhou com passos lentos até o púlpito central e o tocou com a ponta dos dedos. Por um instante, a lousa ao fundo pareceu sincronizar com sua presença.
— Me chamam de Professora Medinni — disse. — E estou aqui para ensinar o que separa os domadores do resto da humanidade. O que permite a vocês entrar em sintonia com o impossível.
Deixou o silêncio cair como uma segunda camada de atmosfera.
— Estamos neste planeta por uma razão. O aether que permeia sua atmosfera torna este lugar único. Onde os Feraethers, criaturas alteradas e moldadas pelo aether, podem ser criadas. Elas estão presas em um estado intermediário, tanto no corpo quanto no espírito.
Ela deu alguns passos pelo tablado.
— Sei que muitos de vocês torcem o nariz para a parte metafísica desta disciplina. Mas sem compreender o que são os vínculos… nunca serão domadores. Sem um núcleo aethérico, vocês não passam de soldados com boas intenções.
As palavras eram ditas sem pressa. Cada uma caía como um peso preciso.
— Não vou mentir: consolidar um núcleo não é para todos. Exige alta tolerância ao aether. E mesmo assim, a tolerância não garante sucesso. Alguns de vocês não conseguirão.
Houve um leve burburinho entre os assentos. Ela o ignorou.
— Mas fiquem tranquilos — completou. — Quem não conseguir será realocado. Não os enviaremos às Legiões de descarte. Serão encaminhados a outras funções. O Império vai encontrar um lugar para vocês.
Fez um gesto curto com a mão. Pequenos drones surgiram no alto da sala, deslizando em silêncio até descerem suavemente diante de cada aluno. Deixaram um objeto metálico semelhante a uma seringa alongada.
Um injetor de aether com regulagem.
— Sim — disse ela, ainda com aquele tom sereno. — Nosso objetivo hoje só pode ser alcançado sob doses elevadas de aether. Regulem seus injetores para o limite da sua tolerância atual. Não sejam estúpidos. Não quero encerrar minha aula por conta de uma intoxicação aguda.
Um novo silêncio caiu. Era diferente agora. Mais denso. Mais íntimo.
Lyra segurava o injetor com ambas as mãos. O metal estava frio contra seus dedos, pesado como uma decisão sem volta. Girou o dosador com cuidado, até que o visor digital marcasse o número que já conhecia de memória: quinze por cento. A dose recomendada para sua tolerância. Sabia disso, mas saber não era o mesmo que sentir.
Olhou em volta, tentando disfarçar o nervosismo. A maioria marcava entre sete e nove. Um garoto mais à frente hesitou antes de fixar o ponteiro em onze. Ninguém chegava perto do que ela estava prestes a fazer. A dose era maior que sua cota mensal inteira em Glasurith, uma fortuna.
Engoliu em seco. Não havia volta.
Pressionou o dispositivo contra o braço e ativou a liberação.
O efeito foi imediato. Um calor feroz se espalhou por dentro, como se o aether buscasse cada nervo, cada célula, e as incendiasse com algo que era energia, euforia e vertigem ao mesmo tempo. Seus olhos se dilataram. Seu peito arfou.
Por um instante, ela se viu de fora do próprio corpo, como se flutuasse acima da sala, observando os colegas, a professora, a si mesma, imóvel na cadeira. A realidade pareceu se expandir, depois contrair em espirais de luz e som abafado. Seu corpo inteiro borbulhava.
Lyra viu um garoto, duas fileiras atrás de si, começar a tremer. No segundo seguinte, caiu ao chão em convulsão. O corpo dele sacudia com violência, espuma escorria pela boca, e os olhos reviravam, vidrados.
Viu os braços e pernas do garoto começarem a se alongar, os ossos estalando sob a pele, as articulações se retorcendo de maneira errada.
Ele estava sendo deformado perante seus olhos.
O aether estava forçando o corpo além do limite.
Como se já esperassem esse tipo de reação, dois homens de branco entraram calmamente no recinto. Moviam-se com precisão ensaiada. Pegaram o garoto convulsivo com firmeza e o retiraram em silêncio.
Se Lyra não tivesse sentido aquilo antes, em doses pequenas e controladas, talvez tivesse surtado ali mesmo. Entendia agora por que tantos se viciavam naquela sensação. Havia um prazer bruto, primitivo, quase sagrado. Como se ela tocasse, por um breve segundo, algo próximo do divino.
Foi nesse estado que ouviu, ao longe, como se através de água espessa, a voz de Aedena Medinni:
— Vamos começar.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.