Capítulo 18: A Verdade?
A tela da cabine acendeu com um brilho azul. Zyab ajustou a máscara sobre o rosto antes de tocar no ícone que piscava. A imagem se estabilizou no rosto severo do legado Logan, olhos pequenos, a testa vincada de irritação.
— Boa noite, Altíssima. Que as bênçãos do Demiurgo estejam contigo.
— Com todos nós — respondeu Zyab, na entonação cerimonial que o protocolo exigia.
Mas ele não estava ali por formalidades.
— Quem é essa garota? E, por favor, poupe-me das bobagens usuais sobre casas menores e joias perdidas no meio do nada. Eu não sou um idiota.
Zyab inclinou a cabeça ligeiramente.
— Aconteceu alguma coisa? Diga logo. Se não quer jogos comigo, não jogue também.
Logan não hesitou.
— Sua garota usou a voz. Sem nenhum treino.
— Isso não é tão incomum assim — rebateu a Matriarca, com um leve levantar de sobrancelha.
— Usou a voz, Zyab. Sozinha. Em um refeitório cheio. Afetou mais de cem pessoas.
A Matriarca permaneceu em silêncio por um segundo a mais do que deveria.
— Bem…
— Ela usou aquela porra em vários legados. Um deles estava fora de si, no cio. Tenho isso em vídeo. Você sabe tão bem quanto eu que isso deveria ser impossível.
Zyab respirou fundo, já sabendo a resposta antes de ouvir.
— Legados… — começou, hesitante.
— … são imunes à manipulação mental — completou Logan, cortante. — A menos que…
— … a manipulação venha de seu superior.
— Não foi exatamente controle mental, mas teve efeito. Eles pararam. Obedeceram. Então, Matriarca… Quem. É. Essa. Garota?
Zyab tamborilou os dedos enluvados sobre a mesa, pesando os riscos.
— Posso ver o vídeo?
Logan apertou os olhos, cético.
— Responda o que perguntei primeiro. Não vou entregá-la, se é isso que a preocupa. Mas quero saber onde estou pisando. E quero parte das vantagens que o Matriarcharum vai tirar disso.
Um silêncio tenso pairou.
— Ela é filha de Paul Zachary.
Logan congelou. A tela captou perfeitamente a mudança sutil em sua expressão, o reconhecimento, a análise, a incredulidade contida. Depois, ele soltou o ar devagar.
— Sua sorte é que eu não entrego companheiros legados. Senão, ela estaria a caminho dos inquisidores agora mesmo. E não pelo pai dela. Mas pelo que ela pode fazer. A sorte é que ninguém mais percebeu.
Ele ativou um comando. Um vídeo começou a rodar na tela de Zyab. O refeitório. O caos. O legado em surto. A voz de Lyra. O momento em que tudo parou.
— Vou apagar isso agora. Isso nunca aconteceu.
Zyab manteve os olhos fixos na imagem até ela desaparecer.
— Ela precisa de treino. Posso enviar alguém.
— Não se preocupe — cortou Logan, firme. — Tenho a pessoa certa aqui.
E encerrou a chamada.
Zyab ficou diante da tela em silêncio, a luz da cabine refletida na máscara imóvel. Sua joia brilhava mais do que devia. E isso, no Império, era sempre perigoso demais.
No interior de seu escritório, Logan se ergueu de súbito e esmurrou a mesa de madeira maciça com a mão mecânica. O impacto deixou sulcos profundos na superfície, como se uma garra tivesse riscado o tampo. Respirava pesado. Quem entrasse ali naquele instante poderia jurar que ele estava possuído, não por raiva, mas por uma inquietação densa, furiosa, pensativa.
Caminhou até a janela. O vidro polarizado mostrava uma vista parcial do complexo. Seus olhos pequenos percorriam a paisagem com um foco cortante, mas sua mente estava longe. A testa vincada parecia esculpida em pedra.
Após alguns minutos em silêncio, voltou à mesa e digitou um comando no painel embutido. A tela se acendeu, iniciando uma chamada codificada.
Do outro lado, surgiu um homem alto e esguio, retirando uma máscara cirúrgica. A voz que saiu de sua boca era grave, precisa.
— Pois não, senhor reitor. Em que posso ajudar?
— Preciso ajustar a suplementação de um dos tributos. Vamos alterar o protocolo hormonal e genético.
— Qual número? — perguntou o médico, já acessando os arquivos.
— 1404.
O doutor pausou. Observou os dados que começaram a piscar na tela. As linhas de código genético, os níveis hormonais, as tolerâncias registradas. A testa dele franziu.
— Tem certeza, senhor? Isso é muito acima da média, ainda mais para uma garota. Pode…
— Faça — interrompeu Logan. A voz saiu ríspida, sem margem. — Pelo menos por um mês. Quero monitoramento constante. Relatórios diários. Se ela quebrar… vamos saber o quanto pode aguentar.
O médico hesitou, depois assentiu devagar.
— Entendido.
A chamada foi encerrada.
Logan recostou-se na cadeira, o maxilar travado. Os olhos, fixos em nada. Por fim, murmurou, quase num tom reverente:
— Vamos ver do que você é feita, filha de Zachary.
Deitada em sua cama, Lyra repassava mentalmente a aula de Aedena. Sentia o calor no centro do peito, segundo a professora, era um bom sinal.
Em silêncio, enquanto esperava o sono chegar, revisitava algumas das palavras dela em sua cabeça.
Lembrou-se do susto que tomou ao ver o rapaz caindo, sendo levado embora. Da expressão de desdém no belo rosto da professora enquanto falava.
— Isso que aconteceu foi porque ele não respeitou o limite de sua tolerância — dissera Aedena. Mentiu para ser admitido.
Entre os voluntários, era muito comum mentir a própria tolerância para ser admitido. Eles recebiam treinamento, faziam seus nomes e retornavam para suas casas com um novo valor. Mas entre os psíquicos imperiais, nenhuma carreira exigia mais do que a dos domadores era a função que demandava a maior tolerância ao aether.
Entre Legados e Tributos, a coisa era diferente. Eles serviriam ao Império por toda a vida.
Lembrou-se também da sensação de sair do próprio corpo, como se estivesse sendo observada por alguns instantes. Essa sensação só havia ocorrido com ela e com outra garota, também tributo, do dormitório 22, se Lyra não estivesse enganada.
As palavras da professora a haviam assustado:
— Essa sensação vem da presença da consciência onipresente do Demiurgo, que envolve todo o Véu em uma vigilância constante.
A menção ao Véu fez sua mente retornar à Mina 19. Ao profeta deformado dos mineiros. Suas palavras também falavam do Véu. Do Véu rasgado.
O que havia lá, afinal, para que o Demiurgo se empenhasse tanto em uma vigilância constante?
Lyra não queria pensar nisso. Aedena havia dito que essas preocupações eram heréticas.
Ela estava sem sono. As coisas iam e voltavam em sua mente. Eram acontecimentos demais para pouco tempo. Tinha passado de choque em choque sem sequer digerir o que vinha acontecendo.
Sabia que precisava dormir, que amanhã seria outro dia cheio. Apenas seu segundo ali, de muitos que se seguiriam.
Puxou o cobertor sobre o corpo e se ajeitou novamente. Tinha que tentar dormir. A rotina do dia seguinte seria difícil. Ela teria as sessões de treino, a aula de Teoria de Estratégia Militar e, por fim, uma visita conjunta ao Departamento Médico. Era o dia dos tributos receberem um check-up e sua suplementação semanal.
A sirene soou, e como não podia ser diferente, Calder já estava de pé, apressando todos para se aprontarem.
Seguiram para a sessão de treino físico, tomaram banho, almoçaram e, em seguida, foram para a aula da tarde. Tudo se desenrolava sem grandes diferenças em relação ao dia anterior.
Conferiram a sala de aula correta e se dirigiram para lá.
O professor, para o espanto de Lyra, era um calculador, com todas as características marcantes de sua casta.
Era magro, de pescoço fino, sem pelos corporais visíveis, e olhos verdes incrivelmente atentos e inquietos. Talvez essa fosse sua principal diferença em relação aos calculadores que Lyra havia visto com Aliah, havia algo mais desperto nele.
Um feixe de cabos partia da base de seu crânio, ligados a uma entrada tecnológica logo acima da nuca. Seu nome estava projetado em holografia na lousa branca:
Professor James Stuart — Calculador de Grau 3.
Ele fazia questão de anunciar sua posição hierárquica. Talvez isso fosse algo importante entre os da sua ordem.
Assim que todos se sentaram, o professor lhes deu boa tarde com uma voz quase mecânica, mas clara, e iniciou a aula.
Segundo Imara, que estava sentada ao lado de Lyra, aquela já era a terceira aula da disciplina. Lyra fez uma nota mental para pedir as anotações da colega depois.
— Alguém sabe por que o Império mantém suas Treze Legiões ativas? — perguntou o professor, com seu timbre neutro, quase artificial.
Como esperado, um legado foi o primeiro a levantar a mão. Lyra se voltou para ele. Era o mesmo garoto que havia cruzado com ela no corredor e ajudado a conter o ataque ao qual Imara fora submetida.
O professor acenou com o queixo para que ele respondesse.
— É por conta das Guerras Eternas.
O professor assentiu e completou:
— Está certo, claro, mas não somente por isso. Principalmente nas áreas periféricas ainda enfrentamos muitos problemas com seitas heréticas e insurgentes que recusam a Pax Imperial.
Ele então perguntou:
— Alguém sabe como as Guerras Eternas começaram?
O mesmo legado permaneceu com a mão levantada, mas o sr. Stuart queria ouvir outro aluno. Para surpresa de Lyra, Tyla ergueu o braço. O professor apontou para ela.
— Foi por causa do Culto das Máquinas — respondeu a garota.
— Elabore melhor — pediu ele.
— Na Era da Tecnologia, as inteligências artificiais entraram em contato com entidades fora da nossa realidade… e se tornaram devotas. Em um de seus rituais, causaram a primeira ruptura, a fenda inicial, que permitiu às criaturas além do Véu entrarem pela primeira vez aqui. Desde então, estamos em guerra com o que tenta atravessar.
— Está incompleto, senhorita, mas está correto. Anotem o que vou dizer a seguir: é importante. Esses são os acontecimentos que fundamentam a criação do Império… e do próprio Demiurgo.
Ele começou a narrar.
Sua voz monótona soava como um tranquilizante. Lyra bocejou, mas o professor não pareceu notar, ou simplesmente não se importou. Os textos citados iam sendo enviados automaticamente aos tablets dos alunos. O tempo parecia se arrastar.
O conteúdo tratava de eventos ocorridos há mais de cinco mil anos. Ninguém, exceto os legados e, incrivelmente, Tyla, parecia verdadeiramente interessado. Por fim, o professor encerrou:
— Quero um trabalho de duas mil palavras para a próxima aula. Tema: A Era da Tecnologia e a Heresia das I.A.s – Tecnologias proibidas e o surgimento do aether. Estão dispensados.
Lyra se levantou e saiu atrás de seus companheiros de dormitório.
Tinham horário no departamento médico. Lyra estava ansiosa. Seria seu primeiro check-up completo na escola, não sabia o que esperar.
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