Capítulo 19: Heisenhauer
O prédio do departamento médico era grande e largo, com sua fachada opaca voltada para os fundos da ala administrativa. Lyra notou que, apesar do tamanho, quase não havia movimentação ali. Imaginou que deveria existir algum tipo de cronograma rotativo para os estudantes, porque, mesmo com os corredores vazios, a recepção dava sinais de organização rígida. As filas eram curtas. Os atendimentos, rápidos.
O ambiente interno era silencioso, solene. As paredes nuas, o piso claro, e o ar frio e seco. Não havia balcão, nem recepcionista, apenas linhas coloridas no chão, indicando os caminhos a serem seguidos por cada grupo. O tablet no pulso de Lyra havia emitido o aviso: deveriam acompanhar a linha laranja.
— Não entendo como alguém pode gostar das aulas daquele cabeçudo — resmungou Kara, de braços cruzados. — Tirando nossa querida Tyla, claro. E aqueles legados…
A frase caiu como uma pedra no chão. Calder lançou-lhe um olhar severo, daqueles que não exigiam uma palavra sequer. Falar dos legados, com Imara por perto, era como cutucar uma ferida ainda aberta. E todos sabiam disso.
— Já passou — murmurou Imara, num tom quase inaudível. — Foi só o susto.
Mas não tinha passado. Não de verdade. Desde o ocorrido, Imara permanecia quieta, recolhida dentro de si. Era estranha, aquela ausência. Ela costumava ser a primeira a brincar, a implicar, a comentar tudo com ironia. Agora, só havia o silêncio. A expressão em seu rosto era difícil de decifrar. Nem raiva. Nem tristeza. Apenas ausência.
— Aliás — disse, virando-se para os colegas — obrigada por me defender, Branth. E obrigada a você também, Lyra. Foi seu grito que pôs juízo na cabeça daquele animal.
— Por nada — respondeu Lyra, com um aceno breve. — Queria ter feito mais.
— Por enquanto, não posso fazer nada — continuou Imara, os olhos fixos em um ponto qualquer da parede — Mas deixem eu me vincular com minha primeira feraether… e a coisa muda. Ele me pagará.
A voz soou firme, mas o que impressionava era o rosto. Imóvel. Determinado. Uma espécie de máscara tensa que parecia sustentar tudo o que ela ainda não tinha desabado.
Seguiram adiante por um corredor de luz azulada até uma sala mais ampla, onde uma recepção interna se revelava. A fileira de assentos plásticos colada à parede estava ocupada por alguns tributos e voluntários, todos aguardando sua vez em silêncio quase reverente. Os ocupantes do Dormitório 8 se sentaram juntos. Calder ofereceu a ponta a Lyra, um gesto gentil e automático, mas ela preferiu esperar. Disse que iria depois dele.
O atendimento era rápido e sistemático. Chamavam dois ou três por vez. Levados para cubículos onde um scanner de corpo inteiro os analisava dos pés à cabeça. Retiravam uma amostra de sangue, aplicavam duas injeções e, ao final, entregavam um pequeno frasco translúcido contendo os comprimidos da semana. Tudo com precisão cronometrada, sem espaço para conversa, sem explicações além do necessário.
Lyra observava os que retornavam. Alguns pareciam apenas cansados, outros, indiferentes. Havia ainda aqueles com os olhos baixos demais, como se tentassem processar algo que não podiam nomear. Aquilo não era só uma visita médica, e todos ali sabiam. Era o Império reafirmando sua presença dentro de cada um deles. Cada agulha, cada comprimido, cada etapa silenciosa daquele procedimento era mais uma camada de controle, disfarçada sob o verniz frio e clínico da ciência.
Em poucos minutos, seria a vez dela.
— Sua vez — chamou um enfermeiro, trajando branco dos pés à cabeça, com a voz sem qualquer inflexão. Apontava para um dos cubículos à direita.
Lyra se levantou e o seguiu. O ambiente era estéril e limpo até o desconforto. O enfermeiro borrifou algo sobre a maca com um spray transparente e fez um gesto com a cabeça, indicando que ela deitasse.
Em silêncio, ela obedeceu. Ele arrastou para perto um pequeno console, que se ajustou automaticamente à altura do peito dela. O visor acendeu, projetando dados vitais e linhas de leitura em tempo real.
— Nome e número, tributo? — perguntou ele, num tom automatizado, sem nem olhar para ela.
— Lyra Veyne. Um quatro zero quatro.
O enfermeiro digitou as informações com rapidez. Então, algo mudou. Por um breve instante, ele congelou. Seu olhar ficou vidrado na tela, os dedos suspensos no ar. Os olhos arregalaram-se levemente. Mas logo ele piscou, respirou fundo e retomou a postura.
— Só um momento, por favor.
Sem dizer mais nada, se virou e saiu por uma porta lateral, que se fechou atrás dele com um estalo abafado.
Lyra sentiu um arrepio na espinha. Algo estava errado. A maca parecia mais fria agora. O console emitia pequenos bipes, como se observasse a dúvida dentro dela.
A porta se abriu novamente. Um homem entrou. Magro, alto, a postura ereta demais para parecer natural. A expressão em seu rosto era dura, esculpida com precisão, como se cada ruga estivesse ali a serviço da autoridade. Os olhos, fundos e inquiridores, desceram sobre ela como se pudessem desmontá-la peça por peça.
— Tributo 1404… hum… interessante.
O hálito dele tinha um leve cheiro de menta, contrastando de maneira incômoda com a frieza clínica da sala.
— Alguma orientação, Dr. Heisenhauer? — perguntou o enfermeiro, reaparecendo atrás dele.
— Deixe essa comigo.
O outro assentiu e desapareceu novamente, sem um som.
Lyra tentou manter a calma, mas seu corpo a traía. O coração acelerado. As mãos úmidas. A respiração curta. Sabia que aquilo não fazia parte do protocolo comum. Não era só um exame.
— Alguma coisa errada? — perguntou, forçando a voz a soar firme. Não queria parecer assustada. Mas estava.
— Acalme-se — disse ele, com suavidade estudada. — Está tudo bem. Só preciso fazer um check-up mais detalhado. É sua primeira vez aqui, não é?
Lyra assentiu lentamente, mas não se convenceu. O tom calmo do médico apenas piorava as coisas. Era como um predador que sussurra antes do bote.
Alguma coisa estava fora do lugar. E ela sentia isso no fundo dos ossos.
Ele passou o scanner lentamente sobre o corpo de Lyra, os olhos fixos nos dados que surgiam em tempo real no visor translúcido do aparelho.
— Batimentos alterados… mas por causa da adrenalina. Completamente esperado. Saúde osteomuscular acima dos parâmetros. Também esperado.
Lyra gelou. Também esperado? O que eles já sabiam? O que exatamente esperavam encontrar ali? Ela teve vontade de perguntar, mas conteve-se. Algo na forma como ele falava a deixava inquieta, como se ele estivesse lendo mais do que deveria.
O médico afastou o scanner e, com movimentos precisos, retirou duas ampolas de sangue de seu braço. Em seguida, encaixou cuidadosamente um capacete branco em sua cabeça, uma estrutura cheia de fios e conectores, ligados diretamente a um terminal embutido na parede. O dispositivo emitiu um zumbido constante, um ruído grave que parecia vir de dentro do próprio crânio. O som crescia, como se alguma engrenagem invisível estivesse girando mais e mais rápido.
Antes que pudesse reagir, ela sentiu uma picada no pescoço. Reconheceu imediatamente a sensação quente e elétrica que se espalhava pelo corpo. Era aether. Uma microdose.
A euforia subiu como uma maré invisível. Seus sentidos pareceram se expandir por um segundo, antes de tudo voltar ao normal, ou quase.
— Interessante… por isso ele quer os bloqueadores — murmurou o médico, como se falasse consigo mesmo.
— O quê? — perguntou Lyra, tentando se mover.
— Nada, não, minha querida — respondeu ele, sorrindo de canto. — Vamos apenas garantir que você esteja na sua melhor forma possível.
Satisfeito, retirou o capacete com delicadeza. Em seguida, caminhou até uma espécie de cofre embutido na parede. Digitou um código, e uma portinhola se abriu com um clique sutil. De dentro, uma pequena esteira trouxe uma cesta metálica, bem organizada, com vários tubos, frascos e etiquetas.
Lyra percebeu seu nome e número ali. Estava tudo separado para ela.
— Aqui está seu kit, tributo — disse ele, mostrando o conteúdo. Quatro seringas automáticas e dois frascos de comprimidos. Tudo esterilizado, perfeitamente arrumado.
Sem muito aviso, ele pediu que ela permanecesse imóvel.
Duas injeções em um ombro. Outras duas no outro.
Lyra mal teve tempo de respirar entre as picadas.
— Lembre-se de tomar um comprimido de cada frasco, todas as manhãs, antes do desjejum.
— Certo, doutor… Tem algum problema comigo?
Ele sorriu com um ar de desprezo cordial.
— Nenhum. Está forte como um touro. E vamos garantir que continue assim.
Lyra saiu do cubículo com os dois braços latejando e um gosto metálico subindo pela garganta. O corredor parecia mais frio, o ar mais espesso.
— Você demorou — comentou Tyla, que a esperava do lado de fora. — Aconteceu alguma coisa?
— Segundo eles, não — respondeu Lyra, evitando seu olhar.
Voltaram juntas para o dormitório, seguindo as linhas coloridas do chão. Os outros já pareciam ter deixado o assunto para trás. Mas Lyra não conseguia afastar a sensação incômoda que se formava dentro de si, como um nó apertado, do tipo que nenhuma respiração consegue desfazer.
Algo estava errado.
E o pior: ela não tinha ninguém com quem pudesse conversar sobre isso.
Ou pelo menos achava que não.
— Me empresta suas anotações? Do cabeçudo? — perguntou Lyra, tentando soar casual, mas ainda com os ombros tensos. Referia-se, claro, ao professor calculador, como Kara havia chamado.
Tyla riu baixo, sacudindo a cabeça.
— Podemos repassar as aulas anteriores juntas, se você quiser. Fica mais fácil assim.
— Por favor. Não quero ficar para trás… e também não quero atrapalhar o nosso dormitório.
— Então fechado. Quando a gente chegar no prédio, vamos direto pra área comunitária de estudo. Dá tempo de revisar bastante coisa antes do jantar.
— Por mim está ótimo. Obrigada mesmo.
— Por nada, Lyra.
A área comunitária de estudos era uma grande sala circular, com iluminação difusa e divisórias móveis, que permitiam tanto estudos em grupo quanto momentos de maior concentração. Ficava estrategicamente localizada entre os prédios dos tributos e dos voluntários. O fluxo de alunos era constante: jovens de preto e vermelho iam e vinham, formando pequenos núcleos. Alguns estudavam concentrados em frente aos seus tablets, outros praticavam exercícios físicos, simulacros mentais e até invocavam suas primeiras feraeathers, criaturas pequenas, feitas para treino e controle básico.
Lyra observava fascinada. As criaturas tinham formatos variados, algumas com peles brilhantes, outras lembrando sombras compactas com olhos cintilantes.
Tyla notou a atenção da colega.
— Eles estão um semestre à nossa frente — explicou, com o tom tranquilo. — Já foram autorizados a se vincular com uma fera inicial. Essas que estão vendo são controladas, domesticadas para treino. As mais avançadas não podem ser invocadas aqui. Só nos pavilhões especiais, por segurança.
Lyra assentiu, ainda olhando as pequenas criaturas que flutuavam, saltavam ou se dissolviam no ar como poeira luminosa.
— Gostaria de ver isso de perto… uma invocação de verdade — murmurou. — Até hoje só vi um Oculae.
Tyla arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Inquisidores ou Matriarcas?
— Matriarcas… um dos motivos de eu estar aqui.
Ela não disse mais nada. E Tyla, com uma sensibilidade rara entre os jovens do Instituto, não insistiu.
Caminharam até um canto menos movimentado da sala, afastado das criaturas invocadas e próximo de uma das paredes. Havia bancos acolchoados e tomadas para recarga dos tablets. Sentaram-se lado a lado, e Tyla puxou seu equipamento.
— O bom das aulas do professor Stuart — comentou, abrindo o conteúdo do dia — é que o material dele vem automaticamente pros nossos tablets. Dá pra revisar e até rodar simulações teóricas.
Ela ajustou a tela e olhou para Lyra.
— Quer começar por onde? A fundação do Império? A heresia das Ias? Ou a parte das tecnologias proibidas?
Lyra hesitou por um momento, absorvendo tudo o que tinha ouvido e visto nas últimas horas. Seu mundo estava mudando rápido demais. Mas ali, com Tyla, havia pelo menos um ponto de apoio.
— Vamos pela fundação do Império. Acho que se entender o começo… o resto talvez faça mais sentido.
Tyla sorriu.
— Boa escolha. Comecemos, então, do fim da Era da Tecnologia.
E juntas, mergulharam no passado distante, tentando entender o presente que as moldava.
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