— Então quer dizer que o Império surgiu como resultado das guerras fratricidas? Quando as facções humanas, que haviam se aliado às máquinas ou aos Visitantes, foram vencidas? Como um esforço final de guerra e reconstrução?
     

    Tyla olhou para Lyra com um sorriso discreto.
     

    — Sim, isso mesmo. Altamente resumido, claro… mas é o essencial.
     

    — Acho que finalmente entendi — disse Lyra, soltando um suspiro. Como se uma peça do quebra-cabeça finalmente tivesse se encaixado.
     

    Tyla esticou a mão e deu dois tapinhas de leve na cabeça da colega, com um gesto surpreendentemente carinhoso. Algo que, até poucos dias antes, pareceria uma intimidade impossível entre as duas.
     

    — Posso te fazer uma pergunta? — disse Lyra, baixando um pouco a voz. — Você já sentiu que as escolhas… escorregam todas dos seus dedos? E que, no fim das contas, você só tá tentando salvar o que dá? Como se seu destino… não estivesse mesmo nas suas mãos?
     

    Tyla a encarou com seriedade. Quando respondeu, sua voz não tinha ironia, nem consolo, apenas a dureza tranquila de quem já havia feito essa pergunta a si mesma antes.
     

    — Somos tributos, Lyra. Nosso destino está, literalmente, fora das nossas mãos. Temos uma chance, uma possibilidade de ascensão aqui dentro, mas vai ser difícil. E doloroso. Nunca vamos voltar pra casa. Somos, no fim das contas, escravos. Mas pelo menos… temos a consciência de que o nosso sacrifício serviu como moeda de troca. Que nossa Casa, de alguma forma, vai se beneficiar disso tudo.
     

    Lyra ficou em silêncio, absorvendo aquelas palavras. Havia verdade demais ali para serem ignoradas.
     

    Mas antes que pudesse responder, dois rapazes se aproximaram. Ambos usavam os macacões pretos dos tributos. Um era baixo, atarracado, de cabeça raspada e andar pesado. O outro, mais alto, tinha cabelos loiros e lisos, quase prateados sob a luz artificial. Havia linhas claras, metálicas, correndo sob sua pele, marcas inconfundíveis de exposição intensa ao aether. Alterações permanentes.
     

    — Você é Lyra, não? Lyra Veyne? — perguntou o loiro, com a voz arrastada, entredentes.
     

    Lyra mal teve tempo de reagir.
     

    — Quem quer saber? — disparou Tyla, se adiantando com firmeza, a voz mais afiada do que parecia capaz de ser.
     

    O rapaz alto a encarou com desdém. Seus olhos desceram até as marcas douradas que corriam na pele da garota. Seus lábios se curvaram num sorriso sem alegria.
     

    — Não interessa quem quer saber. Fique fora disso, tributo — sibilou, rosnando quase como uma fera. Depois, voltou-se para Lyra. — Vim trazer um recado. Você desagradou algumas pessoas importantes vindo pra cá. Acabou com certos planos… e não vamos facilitar a sua vida aqui. Fique atenta ao seu redor, Veyne. Tem gente observando.
     

    Com a ameaça lançada, ele se virou. O companheiro, que não disse uma única palavra, apenas o seguiu, ambos se afastando como se nada tivesse acontecido.
     

    Tyla permaneceu em silêncio, mas seu corpo estava tenso. E Lyra… bem, Lyra agora tinha mais uma certeza para se somar àquela sensação inquietante no peito:
     

    Ela estava mesmo no lugar errado, ou no lugar certo, pelas razões erradas.
     

    Lyra se virou para Tyla. A garota estava mais alterada do que ela própria, os olhos apertados, a mandíbula travada, como se estivesse pronta para saltar sobre alguém.
     

    — Vamos para o refeitório? — disse Lyra, tentando mudar o foco. — Os outros devem estar lá já. Vamos jantar.
     

    Tyla não respondeu. Apenas se levantou, e juntas caminharam lado a lado, em silêncio, com o refeitório como destino.
     

    À medida que se aproximavam, começaram a ouvir as vozes e risadas vindo lá de dentro. Era quase estranho, ouvir aquele som em um lugar como aquele. Apesar da rigidez do Instituto, ainda existia espaço para pequenos respiros de camaradagem, laços provisórios, mas sinceros. Gente tentando manter a sanidade.
     

    Lyra desacelerou ao se aproximar da entrada. A cena diante de seus olhos a fez perder o passo por um instante.

    O legado de antes, o mesmo que quase machucara Imara, estava ali, de pé, ao lado dela, que comia lentamente com o rosto baixo.
     

    O sangue subiu. Lyra não pensou duas vezes.
     

    — Ei! Saia de perto dela! — gritou, avançando.

    Imara levantou os olhos na direção do grito. Um sorriso calmo se formou em seu rosto.
     

    — Calma, Lyra… Tyler está aqui para me pedir desculpas.

    Ela parou, atônita.
     

    — Como é que é? Ele quase…

    Mas Tyler a interrompeu. A voz grave, baixa, com uma entonação que não combinava com o colosso de mais de dois metros que era.
     

    — Eu estava fora de mim, senhorita — disse, a expressão envergonhada, quase infantil. — Já expliquei pra senhorita Imara. Pedi desculpas pra ela… e pro Branth também. E… peço desculpas pra você.
     

    Aquela última frase saiu com esforço. Ele passou a mão na nuca, sem saber onde colocar os olhos.
     

    — Não vou mais circular nas áreas públicas nos dias de tomar os remédios. Às vezes… é difícil se controlar quando estamos entupidos de hormônios.
     

    E então, inclinou-se num gesto que parecia uma mesura, embora meio desajeitada, como se aquele tipo de gesto não fizesse parte da sua rotina.
     

    Depois, sem esperar resposta, virou-se e se afastou.
     

    Lyra olhou para seus amigos à mesa. Branth apenas deu de ombros. Imara ainda parecia calma, como se aquilo realmente tivesse sido um gesto bem-vindo. Tyla chegou por trás e murmurou, surpresa:
     

    — O que foi isso?
     

    — Ele veio pedir desculpas — disse Imara, com um meio sorriso. — Achei… legal da parte dele.
     

    Lyra ainda estava processando, mas optou por não discutir. O mundo estava virando de cabeça para baixo desde o dia em que chegara ali. Mais uma coisa inexplicável já não fazia tanta diferença.
     

    Ela se virou e foi para a fila da comida. O estômago roncava com força — alguma coisa nas injeções parecia ter disparado seu apetite de novo. Estava faminta.
     

    Pensando bem, não se lembrava da última vez que comera com prazer. Talvez antes da execução de seu tio. Desde então, nada tinha mais gosto.
     

    Mas agora, curiosamente, a dor não estava mais tão aguda. Ainda estava ali, como uma cicatriz latejante, mas já não dominava tudo.
     

    Respirou fundo. Não era hora de pensar nisso. Era hora de comer.

    Após repetir duas vezes, Lyra estava sentada de maneira relaxada, reclinada na cadeira, respirando fundo como se estivesse tentando retomar o controle do próprio corpo. O calor do refeitório parecia menor agora, e o burburinho ao redor servia como um alívio inesperado.
     

    Kara, sempre com um comentário na ponta da língua, falou em tom de brincadeira:
     

    — Depois de tomar aquelas injeções, eu fico é sem fome. Mas a Lyra aqui descobriu que nosso chef é cinco estrelas…
     

    Todos riram, inclusive ela. Mas foi um riso leve, um pouco forçado.
     

    — Eu estava com fome, oras. Só isso. — Lyra deu de ombros. — Agora, falando sério… quantas injeções vocês receberam?
     

    — Duas — respondeu Tyla, sem hesitar.
     

    — Duas, como na semana passada — confirmou Calder, já mexendo no tablet preso ao pulso.
     

    Branth mostrou dois dedos sem dizer nada, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
     

    O estômago de Lyra se contraiu. Ela não respondeu de imediato. Pensou nas quatro picadas que recebera, duas em cada braço. Sentiu uma onda de desconforto se espalhar por dentro.
     

    — E as pílulas? — perguntou em seguida, a voz mais baixa.
     

    Calder puxou o frasco do bolso do uniforme. Tirou a tampa e despejou algumas na palma da mão.
     

    — Brancas e achatadas — disse. — Como sempre.
     

    Os outros assentiram, todos com comprimidos iguais.
     

    Lyra hesitou. Mas depois de perguntar, sentiu que não podia se calar. Tirou a pequena embalagem com seu nome gravado embaixo e mostrou. Dentro, comprimidos completamente diferentes. Um verde esmeralda, o outro azul com uma faixa vermelha atravessando o meio.
     

    Tyla franziu o cenho. Branth foi direto:

    — Por que dois? E por que são tão diferentes dos nossos?

    — Não sei, Branth… não sei mesmo — respondeu Lyra, sem conseguir esconder o incômodo.
     

    A conversa morreu ali. Não havia espaço para mais perguntas. O cansaço era maior que a curiosidade.

    Após a refeição, voltaram para os dormitórios. A rotina do dia seguinte prometia ser ainda mais puxada. Como todos os dias naquele lugar. Nenhum alívio durava muito.
     

    Lyra deitou-se, mas o sono não vinha. As luzes haviam se apagado há algum tempo, e os outros já pareciam mergulhados em sonhos ou esgotamento. Ela, no entanto, rolava de um lado para o outro, inquieta.
     

    O lençol estava molhado de suor. Sua roupa de dormir grudava na pele. A temperatura de seu corpo oscilava entre um calor abafado e calafrios inesperados. Era como se algo estivesse errado por dentro. Não doía, mas incomodava. Como se cada célula estivesse viva demais.

    Em sua mente, revivia os momentos no cubículo do departamento médico. O capacete, a picada no pescoço, a sensação da microdose de aether. Imaginava suas células se multiplicando rápido demais, como se estivessem tentando construir algo novo, ou pior: algo que não era ela.
     

    Tentou respirar fundo, acalmar a mente. Mas a inquietação continuava ali, latejando em silêncio. O medo não era declarado, mas estava presente, uma presença viva, como um vulto à beira do leito.
     

    Quando a sirene soou, anunciando o início do novo dia, Lyra sentia como se não tivesse dormido. Estava exausta, cheirando a suor, com a pele grudenta e o corpo ainda quente demais. Uma dor surda pulsava em algum ponto indefinido de sua cabeça.
     

    A voz suave de Tyla a puxou de volta.
     

    — Vamos tomar um banho rápido. Você vai se sentir melhor.

    Lyra assentiu com um aceno leve. Pegou suas coisas em silêncio e seguiu Tyla. Sabia que não podiam se atrasar para as atividades da manhã. Não havia espaço para fraquezas ali.

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