Capítulo 34: Política e Chantagem
No planeta Sylaris, em um estabelecimento de reputação duvidosa, Aliah e sua irmã Hymah aguardavam em uma sala de prazeres. O ambiente era de luxo ostensivo, decorado com obras de arte originais, entalhes raros em madeiras exóticas, couro tratado e tecidos naturais de alto custo. Quase nada ali era sintético.
Sobre mesas baixas, bandejas exibiam um cardápio de drogas recreativas: algumas químicas, outras tecnológicas, outras ainda de natureza psíquica. Até cápsulas de aether eram oferecidas com naturalidade.
Aliah estava ansiosa. Um escravo ajoelhado massageava seus pés com firmeza, os olhos baixos, obediente e invisível.
Hymah, por sua vez, usava um capacete psíquico. Prazeres e estímulos eram injetados diretamente em seu córtex, arrancando-lhe gemidos nada discretos.
— Ele está demorando… — murmurou Aliah. O escravo não reagiu; era costume nesses lugares que os trabalhadores fossem modificados para não ouvir.
Como se a queixa tivesse sido um chamado, a porta se abriu. Um homem entrou. O escravo levantou os olhos apenas o suficiente para reconhecê-lo e, de imediato, abaixou-os outra vez.
Era alguém esperado. O escravo, além de tudo, era responsável pela segurança de suas hóspedes.
Alto, bonito, com ombros largos e um físico atlético, o recém-chegado retirou o manto, revelando um sorriso calculado. Os olhos de Aliah brilharam. Seu espião chegara.
— Lady Aliah… quase não consegui vir. Syan não queria me deixar sair. Acho que se apegou a minha pessoa.
— Está gostando demais, posso ver pela sua expressão… Henry.
— Não posso reclamar, milady — disse ele, rindo. — Uma boa ocupação para alguém como eu. Não reclamo de ser o secretário do lorde Syan. Nem do salário… e nem dos benefícios adicionais.
Henry exibiu um sorriso satisfeito, mas Aliah advertiu.
— Não se esqueça das suas obrigações. E onde deve estar a sua lealdade.
— Nunca, minha senhora, nunca… — murmurou Henry, as lembranças longe dali.
Um gemido mais alto de Hymah interrompeu a conversa. Aliah pegou uma almofada e atirou contra ela.
— Quieta — sibilou. Voltou-se novamente para Henry, que já se servia de uma bebida arroxeada, espessa.
— Me conte. O que descobriu?
Henry estalou os lábios, sentindo o calor da bebida descer pela garganta.
— Bem, minha senhora… Gero Orsini tem um acordo com seu pai. Ele está atrás de uma relíquia. Syan é quem está caçando-a para ele. Parece um bobo, mas é astuto e sabe se mover.
— Hm… interessante. Uma relíquia. Eu achava que seria sobre mais minas de aether.
— Seu pai está obcecado em conseguir uma cadeira no Senado. Se existe outro motivo, eu não sei. Mas ter essa vaga vai multiplicar a influência dele. Hoje, a força da sua casa vem das minas… o que, convenhamos, não é pouco.
Henry pousou o copo com cuidado sobre a mesa baixa, o vidro produzindo um som suave contra a superfície polida. Inclinou-se levemente para frente, como se cada palavra fosse um segredo pesado demais para ser dito em voz alta.
— O lorde Orsini concorda em abrir mão da vassalagem de sua Casa, milady, e indicar lorde Halvian para o Senado… mas com duas condições claras. Primeiro, que a relíquia esteja em suas mãos. Segundo, que, depois, a cadeira do Senado retorne para os Orsini.
Aliah franziu os lábios, avaliando o peso daquilo.
— Isso tudo é muito interessante… — murmurou, girando lentamente a taça que segurava, observando o líquido rodopiar. — E Syan, nessa história? O que ele vai lucrar?
— Seu pai gosta dele. Nomeou-o herdeiro, ainda por baixo dos panos. Quando entrar no Senado, Syan assumirá as responsabilidades da Casa.
— Só por cima do meu cadáver — explodiu Aliah.
— Ele planeja casar você e Hymah. Usá-las como moeda política.
— Não fale absurdos.
— Ouvi da boca dele.
Aliah bufou e afastou o escravo com um chute seco, despejando nele a raiva que sentia pelo próprio pai.
— Outra coisa… sua mãe deixou a residência oficial. Seu pai escolheu outra. Não sei quem.
— Droga… só notícia ruim. Eu não te coloquei lá para ser arauto do fim do mundo, Henry. Quero algo que eu possa usar para acabar com Syan.
— Nesse caso… tenho algo. Sei onde, provavelmente, está a relíquia. Mas é território militar, protegido pelas Legiões. Nem a Igreja pode agir livremente lá.
Os olhos de Aliah se acenderam.
— Diga mais.
— Há uma janela de oportunidade. Uma época do ano em que civis podem andar na superfície sem chamar atenção. No resto do tempo, o planeta é vigiado de forma rigorosa.
— Que janela é essa? Que planeta misterioso é esse?
— Tartarus, minha senhora. O planeta onde fica o Domatorum. Nessas datas, cadetes deixam o complexo para explorar. A segurança é afrouxada, o número de pessoas circulando pela superfície confunde os sensores. É a hora perfeita para uma incursão secreta.
Aliah sorriu, a mente já trabalhando num plano. Se conseguisse a relíquia antes de Syan, seu pai teria que se curvar a ela para alcançar o Senado. Seria uma vingança perfeita.
Naquele momento, Aliah nem se deu conta de que Tartarus era também o lar temporário de outra pessoa que odiava: Lyra Veyne. Mas, mais cedo ou mais tarde, lembraria.
Em Tartarus, nas duchas do vestiário feminino, Lyra terminava seu banho. A súbita chegada de outras garotas sinalizou que era hora de se apressar, o treino matinal a aguardava.
Ainda estava anestesiada pelas palavras de Tyla. Pois bem, pensou. Se não queria ser sua amiga, que fosse. Lyra não iria se rebaixar. Deixaria a garota em paz, embora, no fundo, não conseguisse afastar a sensação incômoda de que havia segredos demais por trás daquela decisão.
Apesar da dor no peito, estava resignada. Já havia chorado demais. Não choraria outra vez. Nem que para isso tivesse que vestir uma máscara como tantos ali.
Junto dos demais residentes do dormitório oito, encarou a primeira parte da manhã em exercícios físicos exaustivos. Corridas, flexões, saltos… até que o apito de Miles cortou o ar como uma lâmina.
O sargento percorreu a fileira de olhares com a postura de um predador, examinando a massa de alunos vestidos de preto, vermelho e bege, antes de bradar:
— Atenção! Legados estão dispensados dos treinos de assalto. Eles já saem de fábrica prontos pras Legiões.
Era assustador, pelo menos estariam do nosso lado.
Os legados, em seus macacões bege, bateram no peito e soltaram gritos de provocação. Miles prosseguiu:
— Voluntários… sei que a maioria está aqui para se tornar domadores civis. Mas, se tiver algum que escolheu, na admissão, participar dos treinos militares, pode se juntar aos tributos.
Apenas dois se destacaram, deixando o grupo e se misturando aos alunos de preto.
— Se algum voluntário quiser, pode solicitar sua inclusão na administração — acrescentou, virando-se para uma mulher de cabelos vermelhos, Briana.
— Continue com os treinos físicos dos civis.
Depois, voltou-se para a massa de uniformes pretos.
— Tributos… Vamos, seus merdinhas! Vamos enfiar disciplina militar nessas cabecinhas ocas! A vida civil de vocês acaba hoje!
Lyra sentiu o peso daquelas palavras afundar no estômago. Era a lembrança cruel de que todos ali seriam servos do Império. Para sempre.
E pelo semblante dos colegas de dormitório, ela não era a única que sentia o peso da sentença.
Rapidamente, os instrutores ordenaram a formação em fileiras. Em poucos segundos, estavam organizados em um retângulo perfeito, a respiração ainda acelerada, corações batendo no mesmo compasso, não por disciplina, mas pela consciência de que estavam presos ao mesmo destino.
— Aprendam a se formar em fileiras. De hoje em diante, não vamos admitir indisciplina. Quero ordem militar daqui pra frente. — Miles percorria as linhas com o olhar duro. — A partir de agora, vocês podem se considerar militares. Isso significa que seu comportamento será regido por regras militares, não civis.
Calder olhou de lado para Lyra. Ela entendeu o recado sem que fosse necessário dizer mais nada. Precisava estudar as regras e normas do Domatorum, as civis e, agora, as militares.
Imara ria baixinho, fazendo caretas para Kara. Branth, com sua postura engessada, marchava de um jeito quase cômico, e alguns tributos o imitavam, rindo, até serem repreendidos. A hora de brincar ficava para trás.
Miles fez o grupo marchar até uma área que a maioria nunca havia visto: o campo de treino militar.
O espaço se dividia em três setores. Dois prédios retangulares e baixos, um deles ostentando um letreiro simples: Paiol. No centro, um grande campo enlameado, tomado por obstáculos improvisados, pedaços metálicos amassados, rampas e fossos. Do outro lado, em um aclive suave, erguia-se o segundo prédio: um retângulo sem janelas, iluminado apenas por grandes claraboias. Como em todo o campus, todos os espaços traziam o brasão do Domatorum, mas ali havia também o símbolo das manoplas cruzadas do Império.
— Hoje iremos conhecer o complexo — anunciou Miles, a voz carregada de autoridade. — Vamos avaliar seus pontos fortes e fracos para determinar o treino e a área de atuação de vocês. Todos aqui serão domadores das Legiões, e devem aprender a seguir ordens e a lutar dentro de uma unidade. Aqui, verão como as estratégias se aplicam na prática.
O sargento dividiu os alunos em duas turmas. Uma seguiu para o prédio com as claraboias. A outra, para o paiol. Lyra e o pessoal do dormitório oito ficaram com o paiol.
Alguns oficiais distribuíram fuzis e carregadores com munição para prática. As armas seriam devolvidas no fim do exercício.
Lyra pegou a arma. Cheiro de óleo e fumaça. Era mais leve que o que estava acostumada, mais moderno. Diferente dos de Glasurith.
— Sabe manusear um desses, tributo? — perguntou uma mulher de expressão dura ao ver Lyra verificar pente e travas com segurança.
— Meu tio me ensinou, senhora. Com armas mais antigas. Mas o básico, sim, sei manusear.
— Já tirou alguma vida, tributo?
Lyra sentiu a memória puxá-la de volta à mina 19. Prendeu o impulso de estremecer. A descida, os mutantes grotescos, as explosões finais…
— Já — respondeu, a voz falhando levemente. — Já, sim senhora.
— Bom. Talvez tenhamos uma safra que valha a pena este ano — murmurou a mulher, mais para si mesma, enquanto entregava um fuzil para Kara, que aguardava ao lado.
Quando todos receberam as armas, um instrutor passou as instruções básicas: manter o cano apontado para o chão, postura de tiro, recuo. Depois, o stand foi aberto. Cada aluno teria direito a três disparos sem aether e três com aether.
Esperaram por sua vez. O som dos disparos, o cheiro de pólvora e adrenalina encheu o ambiente. Lyra sentiu o coração acelerar. Olhou em volta e viu a tensão em seus companheiros de quarto.
Quando chegou sua vez, Lyra respirou fundo, ajustou a postura e se concentrou. Sua coordenação olho-mão sempre fora precisa, um ponto forte que já a ajudara nas operações de broca.
Os alvos estavam dispostos a distâncias diferentes: quinze, trinta e cinquenta metros.
O primeiro tiro atingiu a zona central. O segundo, mais próximo do núcleo. O terceiro ficou na periferia, mas ainda dentro do alvo. Não era a pontaria de um veterano, mas estava longe de ser de uma iniciante.
— Muito bom, tributo 1404 — elogiou o instrutor, anotando os pontos. — Agora, com aether.
Lyra aplicou a substância. Sentiu a euforia subir, a mente clarear. As distâncias se tornaram medidas exatas, linhas traçadas na sua mente. Pensamentos supérfluos evaporaram, os Sylaris, Tyla… bobagem.
Ergueu o fuzil. Quase não houve intervalo entre um disparo e outro: três tiros rápidos, certeiros, todos no círculo central.
Lyra sorriu.
— Excelente — murmurou o instrutor, impressionado. — Próximo.
Enquanto deixava a posição, o orgulho crescia no peito. Talvez tivesse sido feita para aquilo. Talvez o sangue de legado significasse que ela realmente nascera para aquilo, para matar.
Calder e Tyla já a aguardavam na área de espera. Sob o efeito do aether, Lyra percebeu com nitidez quase dolorosa o que a substância fazia: criava uma dissociação fria, um distanciamento tão absoluto que parecia que alguém havia fechado uma porta dentro dela. As emoções, sempre tão ruidosas, agora estavam caladas, como se tivessem sido mergulhadas em um lago profundo e silencioso.
E foi nesse silêncio que ela viu.
De verdade.
Calder, ereto, braços cruzados, ostentava a postura de quem sabe exatamente o que está fazendo. Mas, por trás do maxilar cerrado e do olhar controlado, havia pequenas rachaduras: um pé que balançava com impaciência, os dedos tensionando levemente o tecido da manga, um microcerrar de olhos quando alguém passava. Não era apenas disciplina, era medo de que alguém percebesse que ele não tinha tanto assim a oferecer quanto parecia.
Tyla, imóvel ao seu lado, ostentava a beleza polida e o porte impecável que sempre a destacavam. Lyra não sentiu o calor da amizade ao observá-la, talvez apenas um desejo contido, tênue. Mas havia nela algo mais profundo, um vazio oculto nos ombros levemente curvados, na maneira quase imperceptível como segurava o próprio braço quando acreditava que ninguém a via. Sua respiração vinha curta, controlada demais, como se qualquer suspiro mais fundo pudesse fazê-la desmoronar. A solidão parecia envolver seu corpo como um véu, e a insegurança se agarrava a ela com a teimosia de uma sombra que nem a luz mais forte poderia dissipar.
Lyra desviou o olhar para os outros amigos ainda no stand. Branth, sempre expansivo, mastigava o lábio inferior com força, como se tentasse conter algo. Kara sorria e gesticulava, mas seus olhos piscavam rápido demais, numa ansiedade mal disfarçada. Imara mantinha a coluna rígida, mas as mãos apertadas atrás das costas tremiam com microespasmos.
Cada um deles escondia quem realmente era. E, pela primeira vez, graças à clareza impiedosa do aether, Lyra via todos como eram de verdade. Sem máscaras. Sem véus. Apenas humanos, frágeis, tentando desesperadamente não deixar o mundo perceber.
Lembrou-se de Aedena, mas agora com um entendimento diferente. O aether não lhe dava apenas mais foco ou velocidade de pensamento, ele afastava quem ela era. Silenciava suas emoções, deixava apenas um observador frio, calculista, olhando o mundo de fora. Era uma fuga rápida de si mesma. E talvez fosse por isso que a professora dizia, repetidas vezes, para nunca esquecer quem eram de verdade.
Porque, se se deixasse perder demais nesse vazio, talvez não houvesse caminho de volta.
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