Assim que a sessão de tiros terminou, houve uma troca. Os tributos que estavam no stand eram levados, em formação, para o prédio do outro lado do campo de exercícios. E aqueles que tinham começado lá, foram trazidos de volta para o stand, em sincronia precisa.
     

    — Como foram seus disparos, Russel? — perguntou Kara, a voz baixa, num sussurro. A garota queria ter uma referência.
     

    — Nada bem… não tenho prática com isso — lamentou. — Pelas marcações, Lyra, Imara e Calder foram os que se saíram melhor entre nós.
     

    Os três o olharam sem desfazer a formação.
     

    — Eu estava olhando, oras — defendeu-se Russel. — Não posso ser curioso?
     

    — Alguma ideia do que esperar ali dentro? — perguntou Branth, com um tom de nervosismo mal disfarçado.
     

    Mas sua pergunta mal teve tempo de ser formulada. Estavam cruzando a porta do prédio.
     

    A entrada era simples, funcional. Uma série de bancos longos e baixos ladeava as paredes. Armários abertos e sem portas deixavam à mostra espaços para guardar os sapatos. Além dela, se abria um vasto galpão, com o chão inteiramente coberto por um tatame branco acolchoado com vários espaços delimitados, e grandes claraboias filtrando a luz do céu nublado.
     

    Foram instruídos a tirar os sapatos e avançar descalços para a área central. Logo em seguida, foram separados em quatro grupos distintos. Cada um sendo colocado em um dos espaços demarcados.
     

    Homens foram separados das mulheres, os mais pesados dos mais leves.
     

    Lyra foi alocada entre as mulheres grandes: ela, Tyla e Kara. Imara, por outro lado, acabou entre as mais leves e baixas.

    Lyra percebeu o olhar da garota. Parecia estar assustada por ter sido separada das colegas de dormitório. Imara percebeu os olhares e acenou, com um sorriso tímido.

    — se me quebrarem venham aqui juntar os cacos — brincou a garota.

    Lyra inspirou fundo. Estava no grupo feminino das maiores, mas era, sem dúvida, uma das mais franzinas do grupo, pelo menos achava isso. O crescimento acelerado, o aumento de massa muscular,  tudo isso vinha dos hormônios que tinha recebido e de sua herança genética especial. Ainda assim, a lembrança do ferimento do seu rosto, ainda a fazia duvidar do próprio corpo. Carregava o trauma ali, latente.
     

    Olhou ao redor, tentando farejar tensão, decifrar gestos. Queria descobrir, só pelos olhos, qual daquelas garotas talvez servisse à garota Sylaris. Não havia como saber. Nem todas as ameaças se anunciavam com rugidos. Teria que se manter atenta.
     

    — Tá nervosa? — perguntou Kara, sem rodeios. — Eu tô.
    Lyra não respondeu, apenas assentiu. Sentia o efeito do aether esvaindo-se devagar, dissolvido na corrente sanguínea, e a adrenalina se espalhando no lugar. O impulso de se aplicar de novo veio como uma maré, rápida, urgente, mas ela o conteve. Ainda que com dificuldade.
     

    A voz de outro instrutor ecoou pelo espaço. Lyra nunca o tinha visto antes. Era alto, largo, de proporções brutas. Tinha braços como vigas de madeira, barba acinzentada e bem cuidada, e a pele oliva contrastava com os olhos de um castanho quase âmbar, duros e atentos. Parecia entalhado, como se a idade e o rigor tivessem esculpido nele uma estátua viva.

    — Sou Amir, vamos medir a capacidade física de vocês. — Sua voz era grave, seca, sem espaço para dúvidas. — Testes de força, velocidade, reflexos. E por fim… combate desarmado.
     

    Ele fez um gesto breve com a cabeça, e os outros instrutores começaram a se mover com precisão, como peças de uma engrenagem bem lubrificada. Diversas marcações foram feitas no chão com uma espécie de fita adesiva. Diversos materiais foram trazidos e colocados em seus lugares. Preparavam o terreno dos testes.
     

    Lyra manteve os olhos fixos na movimentação. Não piscava. Queria absorver cada detalhe antes que tudo começasse. O corpo já suava, não apenas pelo calor abafado do espaço fechado, mas por causa da expectativa que crescia e se acumulava em seu peito, como um tambor tenso prestes a rachar.
     

    Alguns instrutores surgiram, portando pranchetas eletrônicas, passando por entre os tributos com breves entrevistas. Não era algo demorado, apenas coleta de dados. Uma mulher de cabelos raspados na lateral se aproximou de Lyra.
     

    — Preencha isso, tributo.
     

    Lyra pegou a prancheta das mãos dela e digitou seu número: 1404.
     

    A tela exibiu uma série de perguntas, a maioria em formato de múltipla escolha. Era um formulário padrão, para avaliar o histórico físico e a experiência prévia de cada tributo com combate ou atividades atléticas.
     

    Ela leu tudo com atenção, concentrada. Suas únicas vivências formais eram os treinos de esgrima conduzidos por seu tio no pátio interno da mansão em Glasurith. Pouco, perto do que se esperava ali. Mas ainda assim, era algo. E podia fazer a diferença.
     

    Os testes começaram sem alarde.
     

    O primeiro era de velocidade.
     

    Os tributos foram alinhados lado a lado e instruídos a correr três distâncias: trinta, cinquenta e cem metros. Tudo cronometrado. Sem tempo para explicações.
     

    Lyra completou os percursos com fôlego controlado, saindo-se melhor nas provas mais curtas, onde sua impulsão fazia diferença. Estava na média, talvez um pouco acima, mas nada que se destacasse demais.
     

    Os instrutores anotavam os tempos em silêncio. Nenhuma reação.
     

    Após a primeira corrida, Lyra notou Tyla a encarando. Um olhar direto, não desafiador, mas firme. Quando percebeu que Lyra a havia visto, desviou rapidamente os olhos, como se escondesse um pensamento.
     

    Depois veio o teste de força.
     

    Dois exercícios foram aplicados: levantamento de peso fixo e carregamento de carga por percurso. Eram simples, brutos. Lyra não esperava muito de si mesma, mas, para sua surpresa, se destacou. Terminou entre as mais fortes do grupo.
     

    — Caramba, Lyra — exclamou Kara. — Não imaginava que você tinha tanta força assim. Outras garotas desconhecidas ali perto, concordavam com a cabeça.
     

    Lyra apenas assentiu, contida. Não era natural. Devia ser o efeito colateral das drogas que Logan havia mandado aplicar nela. Mais músculos, mais explosão física, mais resistência… mas a que custo?
     

    Por fim, os reflexos.
     

    Cada tributo foi posicionado diante de uma máquina equipada com sensores. O aparelho disparava pequenas esferas, em diferentes velocidades e trajetórias, de forma aleatória. O objetivo era agarrar o maior número possível sem ser atingido.
     

    Na sua vez, Lyra respirou fundo e se concentrou.
     

    As bolas vinham em sua direção com ritmos irregulares. Algumas lentas, outras abruptas, imprevisíveis. Não era nada fácil, mas ela respondeu bem. Rápida, precisa. Não havia como saber sua pontuação exata, mas, comparando com as outras garotas que havia observado, sabia que havia se saído melhor do que a maioria. Reflexos de sobra. Talvez fosse o resultado de anos operando brocas em mineração, onde qualquer deslize era fatal.
     

    Ao fim do exercício, notou novamente Tyla observando-a. Ela tinha se afastado dela e de Kara. Isolada. Havia algo em sua expressão difícil de nomear, desconforto, talvez. Ou remorso. Lyra não queria se importar com aquilo. Mas, contra sua vontade, a curiosidade começava surgir.
     

    O último teste do dia era o de combate desarmado.
     

    Quatro círculos foram delimitados no tatame. Um espaço onde máscaras sociais deixavam de existir, só restava o corpo, o treino e o instinto.
     

    — A avaliação de combate vai começar — anunciou Amir, em tom alto e claro. — Não quero ver ninguém se exibindo. Quero ver técnica, em quem deveria apresentar técnica. Quero ver instinto e vontade, em quem não tem técnica. Socos e chutes são permitidos, mas sem violência excessiva. Não quero ensinar aleijados. Órgãos vitais, olhos e partes íntimas estão fora do jogo. Acertar essas áreas, salvo em caso evidente de acidente, vai custar pontos. Lembrem-se: quero ver o que sabem fazer. Não a demolição do seu adversário.
     

    Os tributos foram chamados em pares. Não havia apresentações, nem tempo para aquecimento. Só uma instrução velada pairando no ar: entre, lute, e prove que merece estar aqui.
     

    Lyra assistia aos combates com atenção crescente. Aquilo não era uma exibição de arte marcial, era sobrevivência condensada. Os duelos vinham curtos, ásperos. Havia brutalidade, improviso, grunhidos abafados, quedas que faziam o chão vibrar. Muita força bruta, pouquíssima técnica. Alguns se lançavam como feras acuadas, dominados por puro impulso. Outros hesitavam, paralisados pelo medo ou pelo próprio orgulho. Os instrutores não corrigiam, não incentivavam,  apenas observavam, de braços cruzados, como se já soubessem tudo o que precisavam.
     

    Lyra percebeu que poucos ali eram verdadeiramente treinados.
     

    Quando seu nome foi chamado, caminhou até o círculo com a respiração firme, mas o estômago tenso. Sua adversária era uma garota alta, ombros largos, pescoço espesso, braços tatuados. Os olhos apertados e a postura cerrada não deixavam dúvida: havia agressividade de sobra ali.
     

    Lyra se posicionou, pés descalços no tatame, sentindo o chão como se ele pudesse oferecer alguma raiz. Mão esquerda recuada, joelho levemente dobrado, o reflexo das sessões de esgrima com seu tio, adaptadas como podia. Aquilo servira bem no jogo do Rei da Colina. Talvez servisse aqui também.
     

    — Equilíbrio — murmurou para si mesma, quase como um mantra.
     

    O combate começou sem aviso.
     

    A garota avançou com brutalidade cega, braços abertos, tentando agarrá-la e dominar pelo peso. Lyra recuou, girou as pernas e desviou do primeiro impacto. Tentou manter-se em movimento, evitando o contato direto. Mas a oponente era rápida para o tamanho que tinha, e sabia como usar o próprio corpo como arma.
     

    Um golpe de encontro no peito a lançou no chão. A respiração escapou em um tranco seco, mas ela não parou. Rolou para o lado, voltou aos pés em um salto instintivo, e manteve os olhos fixos na garota.
     

    Os socos vieram em sequência. Lyra protegeu o rosto com os antebraços, recuando, sentindo cada impacto reverberar nos ossos.
     

    A garota atacou de novo, mais voraz. Lyra girou o corpo no último momento e disparou seus próprios golpes. Não eram socos perfeitos, mas tinham direção, base e peso. Dois acertaram em cheio: o primeiro no rosto, o segundo no estômago. Seus punhos tinham mais força do que ela imaginava.
     

    A adversária caiu. Levantou-se cambaleando. Estava atordoada.
     

    O instrutor interveio antes que ela tentasse mais uma investida. Disputa encerrada.
     

    Era a primeira vez, aos olhos de Lyra, que os tributos não eram incentivados a se arrebentar mutuamente até o limite. O método de Amir era diferente do de Miles, mais frio, mas também mais atento. Menos sádico.
     

    Um breve silêncio se seguiu.
     

    O instrutor mais próximo apenas anotou algo em sua prancheta, sem expressão.
     

    Lyra voltou ao fundo da área de espera, ofegante, os ombros ardendo, mas estranhamente centrada. O gosto metálico da tensão ainda persistia na boca. Os músculos queimavam, os antebraços pulsavam de dor. E mesmo assim, ou talvez por isso, havia nela uma lucidez peculiar, como se o mundo ao redor tivesse desacelerado.
     

    Não havia glória naquilo. Nem aplausos.
     

    Mas ela vencera.

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