Após a sessão de treinos e a avaliação do primeiro dia dos exercícios militares, os tributos foram direto para os chuveiros.

    Conforme a adrenalina cedia lugar ao cansaço, Lyra sentia o corpo pesar de forma crescente. Os antebraços doíam, pequenos caroços arroxeados surgiam, e o gosto adocicado do aether ainda persistia no fundo da língua, instigante, uma lembrança constante daquele êxtase. Uma provação eterna.
     

    Mesmo debaixo da água quente, era como se o cheiro de pólvora ainda grudasse em sua pele. De canto de olho, viu Imara e Kara em silêncio, a última com um olho roxo visível, contraste incômodo no vapor do banho coletivo. Tyla estava um pouco mais distante, o rosto voltado para o azulejo, mas de tempos em tempos lançava olhares esquivos na direção de Lyra.
     

    Ao saírem, seguiram juntos para o refeitório. O estômago de Lyra roncava como uma besta desperta.
     

    — Aula de Biologia de Feraethers — comentou Russel, num tom arrastado. — Cansei de decorar aquelas criaturas. Muito maçante.
     

    — É legal — murmurou Branth, sem hesitar.
     

    — Imaginei que diria isso — brincou Imara, arqueando uma sobrancelha.
     

    A mesa soltou uma risadinha abafada. Até mesmo Tyla deixou escapar um sorriso discreto.
     

    Logo estavam entrando no anfiteatro. Tomaram seus assentos enquanto a professora Nadine surgia pela porta com sua postura impaciente e o tablet já em mãos.
     

    — Quero que prestem atenção — disse, sem rodeios. — Quem aqui ainda não desenvolveu seu núcleo aethérico?
     

    Havia cerca de oitenta alunos no auditório. Uns doze levantaram as mãos, com gestos lentos, quase constrangidos. A professora franziu o rosto em desaprovação.
     

    — Quem ainda não conseguiu formar o núcleo, a professora Medinni está esperando vocês na sala dela. Esta semana será um intensivo para os atrasados. No sábado, vocês vão escolher suas feraethers iniciais. A grade de aulas vai mudar completamente depois disso.
     

    Ela olhou ao redor, observando os semblantes confusos.
     

    — Vão logo. Ela está esperando. Ou não entenderam ainda? Sem núcleo, vocês não têm lugar aqui.
     

    Os doze alunos se levantaram com relutância e saíram cabisbaixos, sem encarar ninguém.
     

    — Vamos continuar. — Ela tocou em seu tablet, e a imagem da lousa branca se transformou. — Vamos estudar as feraethers iniciais disponíveis neste ciclo.
     

    A aula seguiu com ritmo acelerado, e passou mais rápido do que esperavam. Branth, ao final, estava com os olhos brilhando.
     

    — Será que todos vão conseguir formar o núcleo? — perguntou Lyra, mais para si do que para os outros.
     

    — Acho que não — respondeu Tyla antes de se dar conta. — Soube que sempre tem uns que não conseguem… cerca de cinco por cento.
     

    Ela então cobriu a boca com a mão e lançou um olhar rápido para Lyra. Por um instante pareceu prestes a se desculpar. Era como se tivesse esquecido que não estavam se falando.
     

    Lyra fingiu que não viu. Era melhor assim. Evitava encrenca.
     

    Seu tablet vibrou. Uma mensagem de Aedena:
     

    “Só poderemos nos encontrar depois do jantar, estou super ocupada esses dias.”
     

    Lyra bufou, resignada. Olhou em volta para os amigos e soltou a pergunta que já dançava na mente de todos:
     

    — Qual feraether inicial vocês estão pensando em escolher?
     

    — Quero um Fellur — respondeu Branth sem hesitar, como se já estivesse esperando que alguém perguntasse. — São fofos. E os poderes de vento são muito úteis.
     

    — Achei que você ia de Tartura — disse Imara, sorrindo. — Combina com você. Eu quero um Garral.
     

    Calder virou-se para ela, analisando com curiosidade.
     

    — Garrals são grandes e violentos. Nunca imaginei que fosse sua cara. Eu vou de Falcoaris.
     

    — Não consigo ouvir esses nomes sem rir — disse Kara, contendo o riso. Russel a acompanhava.
     

    — A professora comentou que, depois de nos ligarmos à primeira feraether, vamos entender os nomes. Mas não vejo como isso vai acontecer — comentou Lyra, cruzando os braços.
     

    Todos ficaram em silêncio por um momento. Ninguém tinha uma explicação. A professora apenas dissera que entenderiam, e sorrira com aquele ar maroto.
     

    Sem perceberem, já estavam de volta ao complexo dos dormitórios.
     

    — Não vai para suas aulas secretas com sua professora secreta? — provocou Calder, em tom surpreendentemente brincalhão.
     

    Lyra e os outros se entreolharam, surpresos. Calder quase nunca fazia piadas. Não combinava com ele.
     

    — Ela não vai ter tempo pra mim, pelo menos por enquanto — respondeu Lyra. — Quero visitar o Rin no hospital.
     

    — Vou depois do jantar — disse Imara. — Mas por agora, vou colocar minhas tarefas em dia.
     

    — Vamos fazer isso com você — disseram Kara e Russel, quase em uníssono.
     

    Branth estava longe dali, perdido em pensamentos sobre o sábado.
     

    Tyla já havia se afastado, desaparecendo no corredor, indo fazer sabe-se lá o quê.
     

    Calder olhou para Lyra.
     

    — Acho que vou com você então.
     

    Tiveram que esperar algum tempo antes de serem liberados para visitar Rin. Mesmo assim, só sob a vigilância constante de uma enfermeira. Era como se suspeitassem que pudessem fazer algo contra o garoto de cabelos prateados, ou que ele pudesse, de alguma forma, reagir.
     

    A mulher que os acompanhava parecia ter por volta dos quarenta anos. Usava o cabelo preto preso em um coque tão apertado que realçava a rigidez de suas feições. Ambos os antebraços e mãos haviam sido substituídos por próteses robóticas. Diferente das de Logan, brilhavam num tom prateado limpo, lembrando aço cirúrgico. O desenho era fino, preciso, delicado, mas ainda assim transmitia força.
     

    Calder deixou o olhar se demorar um pouco mais nas peças, e ela percebeu.
     

    — Servi meu tempo como enfermeira de campo nas guerras, com as Legiões — disse, sem alterar o tom, como quem apenas constata um fato.
     

    Nenhum deles respondeu. Apenas continuaram caminhando pelo corredor da enfermaria, e o som dos passos pareceu se tornar mais pesado.
     

    No Domatorum, o histórico não ajudava. Casos de alunos hospitalizados, e até mortos,  por colegas de turma já não eram tão raros quanto deveriam ser. A vigilância em episódios como aquele era uma prática padrão.
     

    Foram conduzidos até a enfermaria onde Rin estava internado. A sala era ampla, com fileiras de camas ao longo das duas paredes laterais. No centro, um único corredor estreito permitia a passagem. Metade das camas já estava ocupada por outros estudantes. Feridos em diferentes graus. Alguns gemiam baixo, outros permaneciam em silêncio, como estátuas quebradas.
     

    Rin repousava em uma das camas do fundo. Parecia ainda mais magro e delicado do que de costume. A pele pálida contrastava com as olheiras fundas. Seus olhos permaneciam fechados. Continuava inconsciente.
     

    Lyra e Calder seguiram a enfermeira até o lado de sua cama.
     

    — Ele chegou a acordar? — perguntou Calder, num tom mais baixo que o habitual.
     

    — Não. Está inconsciente desde que entrou. Estável, mas… não responde a estímulos — respondeu a mulher, com profissionalismo contido. E então se afastou, mantendo-se por perto.
     

    Lyra se aproximou e tocou a mão de Rin. A enfermeira observava cada pequeno movimento. No instante em que a pele dele tocou a sua, Lyra sentiu algo atravessar sua mente como uma lâmina afiada, como uma agulha tentando perfurar bem no centro de sua testa.
     

    — Ai… — murmurou, cambaleando para trás, levando a mão à cabeça.
     

    — O que foi? — Calder se adiantou.
     

    A enfermeira também deu um passo à frente, instintivamente.
     

    — Nada… — disse Lyra, ainda atordoada. — Não foi nada. Deve ser efeito do treino pesado.
     

    Calder percebeu a mentira, mas ficou calado. Sabia que o treino do dia não tinha sido tão intenso assim. E conhecia o suficiente de Lyra para saber quando ela escondia algo.
     

    Mesmo assim, ela se recompôs e voltou a se aproximar. Calder pousou uma das mãos em seu ombro, como apoio, mas não disse nada. Lyra, no entanto, não repetiu o gesto. Não tocou Rin de novo. A vontade estava ali, mas algo a segurava. Precisava mesmo falar com Aedena. Primeiro o sonho com Rin… agora aquilo. Estava tentando se comunicar? Se sim, por que não acordava?
     

    — Por que ele não acorda? Tem alguma coisa errada? — perguntou, dirigindo-se à enfermeira.
     

    A mulher hesitou antes de responder.
     

    — Honestamente… não sei. Ouvi o médico comentar algo sobre uma possível sobrecarga psíquica. Um trauma mental.
     

    — Trauma mental? — murmurou Lyra, franzindo o cenho. — O que será que aconteceu com ele?
     

    — Difícil dizer — respondeu a enfermeira, sem tirar os olhos do tablet onde passava os dedos com precisão. — Diz aqui que ele é um empata muito sensível. Nas guerras, já vi empatas serem sobrecarregados por emoções fortes, a ponto de desmaiarem por dias. A guerra é um lugar pesado… mas aqui? — ela fez uma pausa breve, franzindo levemente o cenho. — Não imagino o que poderia ter afetado ele dessa forma.
     

    — Estávamos voltando pro dormitório e ele gritou… e caiu — murmurou Lyra, ainda vendo a cena na mente, como se pudesse voltar no tempo e segurar Rin antes que ele batesse no chão.
     

    A enfermeira fechou o tablet com um toque rápido.

    — Se já viram seu amigo, vamos logo. Eu não devia nem ter deixado vocês entrarem.
     

    O corredor da enfermaria parecia mais estreito na saída. O ar ali dentro tinha aquele cheiro limpo, de remédio, que grudava no nariz, e Lyra ficou feliz quando atravessou a porta e saiu.
     

    Calder parou no caminho.

    — Vou passar no prédio administrativo. — E se afastou sem esperar resposta.
     

    Lyra continuou andando pelo caminho que levava aos dormitórios. O corpo estava cansado, mas a mente não parava. Iria esperar com os outros até que Aedena a chamasse… se chamasse. Mais do que qualquer coisa, queria falar de Rin com ela. Precisava entender o que estava acontecendo.
     

    No meio do trajeto, percebeu que o pátio interno, aquele espaço amplo que separava os edifícios e servia de ponto de encontro, brincadeiras e estudos, estava quase deserto. O silêncio ali parecia maior que o normal. Muitos já tinham subido para os quartos, e apenas um ou outro retardatário ainda permanecia, andando sem pressa ou mexendo em tablets.
     

    Foi então que, perto de uma das pilastras da grande marquise, ela viu Tyla. Não estava sozinha. Conversava com uma garota loira. Lyra parou instintivamente, ficando num ponto em que tinha visão clara da cena, mas onde dificilmente seria vista. Seu corpo agiu antes que ela pudesse pensar: escondeu-se na sombra, os olhos fixos nelas.
     

    Não conseguia ouvir nada, mas a linguagem corporal falava por si. Tyla gesticulava com força, o rosto carregado. A tensão entre as duas era visível, como corda esticada prestes a arrebentar. Em um momento, Tyla endureceu a postura, os ombros erguidos, e o olhar que lançou para a garota tinha algo de puro fogo, como se fosse avançar sobre ela. Mas, de repente, a tensão se desfez. Tyla baixou a cabeça, respirou fundo e pareceu ceder.
     

    A loira fez que sim com um gesto lento e controlado. Depois, retirou algo do bolso e entregou discretamente a Tyla. Lyra não conseguiu ver exatamente o que era, apenas percebeu o movimento rápido com que Tyla escondeu o objeto dentro do macacão, quase grudado ao corpo.
     

    Quando a garota se virou para ir embora, a luz do pátio iluminou bem seu rosto. Lyra sentiu um arrepio correr pela espinha.

    Helena.

    Helena Sylaris. Aquela víbora traiçoeira.

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