Sem perceber, Aedena segurava ambas as mãos de Lyra. Seu polegar deslizava devagar sobre as costas da mão da garota, um gesto que ela mesma não notara até segundos depois. Havia se apegado àquela menina, e rápido demais.

    Os olhos de Lyra, ainda fundos pela fraqueza, guardavam uma luz insistente que a enfermidade não conseguira apagar. A pele permanecia pálida, marcada pela perda de sangue e pela ausência de sol. A pequena cicatriz, ainda com os pontos, na testa, discreta mas inescapável, completava a imagem de fragilidade.

    Aedena precisou conter um impulso quase irracional: queria levantá-la dali, carregá-la nos braços, ninar, ensinar, compartilhar com ela.
     

    O contato lhe trazia lembranças antigas. Lembranças dolorosas. Suas Cor Pungens, as garotas treinadas e amadas por ela mesma, assassinas moldadas para serem armas perfeitas, que depois, foram descartadas como objetos quebrados por Paul Zachary, pelo Império que haviam ajudado a criar. Ainda assim… mesmo traídas, mesmo massacradas, quase todas continuaram a amá-lo. Era essa a ferida que nunca cicatrizara.

    E, no fim, Aedena, após ser despertada recentemente, aceitara trabalhar para Damocles, talvez como penitência, talvez como negação.
     

    Séculos haviam se passado desde que vira aquelas meninas pela última vez. A ausência ainda latejava na alma e no corpo: nos lábios, na pele, no peito, no ventre. O “compartilhar” as aproximava, sempre, e invariavelmente, elas se apaixonavam umas pelas outras. Era inevitável, fazia parte da seita. Mas Lyra… não. Nunca permitiria que aquela criança fosse arrastada para o mesmo destino, ela a manteria um indivíduo.
     

    — Então… — Aedena quebrou o silêncio, a voz baixa. Com um gesto lento, ajeitou a faixa de cabelo para trás da orelha, comprando alguns segundos para organizar os pensamentos. — Quer dizer que Rin apareceu diante de você… não em carne e osso, mas em forma espiritual. E que, nesse estado, lhe entregou uma chave? — a palavra ficou suspensa no ar, pesada, carregada de simbolismo. — Uma chave para algo desconhecido, muito antigo… recém despertado… e, se entendi bem, aqui mesmo, neste planeta.
     

    Fez uma pausa, estreitando o olhar, como se desenhasse mentalmente as implicações.
     

    — E não foi só isso… — continuou, a respiração prendendo-se por um instante. — Ele também lhe falou de um perigo inimaginável, oculto nas profundezas, logo abaixo de todos nós. — Aedena recostou-se um pouco na cadeira, apoiando os dedos no queixo, pensativa. — Ah, e houve também o sonho. O tal sonho que antecedeu tudo isso, onde ele procurava o contato com você.  
     

    Lyra mordeu o lábio e abaixou a cabeça.

    — Você falando desse jeito… parece até que eu inventei tudo, ou estou delirando.
     

    Aedena sorriu, inclinando-se para perto.

    — Não, minha pequena. — A voz dela era suave, quase um sussurro. — Eu acredito em você. Mais do que imagina. Essas coisas não são impossíveis. Pelo contrário… são perigosamente possíveis. Só não sei se Rin entendeu tudo direito, ou se aumentou o que viu e sentiu em sua própria mente.
     

    Ela se levantou, se aproximou bastante e pousou um beijo demorado na testa de Lyra.

    — Agora eu preciso ir. Tenho aulas para dar… e mais coisas do que gostaria para pensar. Mas quando você sair daqui, vamos treinar. Dessa vez, de verdade. Talvez eu já tenha algo para lhe contar sobre essa história que Rin lhe deixou.
     

    — Você acredita em mim? — perguntou Lyra, com uma voz quase infantil.
     

    — Claro que sim. — Aedena sorriu outra vez, firme. — Já disse isso, e vou repetir quantas vezes for preciso.
     

    Ela se afastou, mas antes de sair lançou um último olhar à menina. O olhar carregava ternura, mas também um peso silencioso. Ao fechar a porta atrás de si, respirou fundo e endireitou os ombros.
     

    Seguiu até um dos pontos de enfermagem, chamando a atenção da enfermeira que organizava uma bandeja.

    — Pois não, professora?
     

    — O outro garoto do dormitório oito… o que sofreu o colapso psíquico. — Aedena acessava rapidamente o tablet em mãos. — Rin Nakamura.
     

    — Ah, sim… ele foi transferido. — respondeu a enfermeira. — Ontem à noite, levado embora.
     

    Aedena arqueou as sobrancelhas.

    — Transferido para onde? Não tenho nenhuma informação registrada aqui. — Tocava a tela com a unha vermelha, impaciente.
     

    A enfermeira deslizou pelos dados, e de repente arregalou os olhos.

    — Nossa… foi levado para muito longe. Para os Poços da Lua, na Via Láctea.
     

    Aedena recolheu o tablet, com um aceno breve.

    — Obrigada.
     

    Saiu do complexo hospitalar em silêncio, o rosto carregando uma expressão difícil de decifrar. Dentro de si, uma certeza se formava.

    “Uma coisa Rin disse com exatidão… ele foi mesmo levado para os Poços. O berço dos Oráculos, se está certo sobre isso, talvez esteja sobre todo o restante”.
     



     

    Em Tactur-2, a nave do inquisidor Raphael acabava de pousar em um dos inúmeros espaço-portos designados pela administração local. Não fora um gesto de cortesia, mas de praticidade: aquele era o mais próximo do local onde haviam encontrado os corpos. Os corpos de um colega inquisidor e da matriarca que o acompanhava em missão.
     

    O planeta era um labirinto vertical de aço e fumaça. Complexos fabris se erguiam em torres colossais, interligados por passarelas suspensas e túneis blindados. De cada chaminé jorrava um fluxo contínuo de vapores e resíduos, como se a própria atmosfera estivesse sendo corroída dia após dia. Raphael havia estudado o dossiê antes de vir: Tactur-2 era o maior polo de pesquisa e manufatura de equipamentos para domadores e feraethers. Sua importância era tamanha que não estava sob a jurisdição de uma Casa de Nobreza, mas administrado diretamente pelo Império.
     

    — Espero que o corpo de Elina não tenha sido violado… — murmurou Alina, descendo a rampa ao lado de Raphael. — Não quero ter que executar um legista por heresia.
     

    — O quê? — Raphael a encarou de relance.
     

    — Nada… apenas se o legista daqui respeita os ritos.
     

    — Deve respeitar. Todos aprendem sobre isso.
     

    Vida soltou uma risada baixa, um som quase infantil, como se a simples ideia de punir uma heresia fosse divertida demais.
     

    No fim do hangar, aguardava um oficial de segurança. Era um homem gordo, de bigode amarelado pela nicotina, envolto num sobretudo preto que parecia sempre úmido de fuligem. Usava também um chapéu de abas largas, manchado de poeira industrial.
     

    Fez o sinal dos três dedos em respeito — gesto mais burocrático do que devoto.
     

    — Senhor inquisidor, senhoras matriarcas. Sou Kelsi, investigador responsável pelo caso do assassinato. — Estendeu a mão, cumprimentando-os um a um. — Se puderem me acompanhar, tenho um veículo pronto. Levaremos os senhores diretamente ao necrotério policial.
     

    Ao deixarem o hangar, Raphael puxou o respirador e o prendeu ao rosto. O ar era um soco de fuligem e borracha que queimava a garganta. Havia também o cheiro ácido de produtos químicos, entranhado em cada partícula suspensa. Mas não havia sinal de aether. Isso, mais do que tudo, lhe causava estranheza. O respirador ao menos oferecia uma trégua.
     

    — Incrível… — murmurou Vida, apoiando-se no corrimão da passarela. Estavam a mais de duzentos andares de altura, e ainda assim a fumaça cobria grande parte da vista. No nível do solo, só existia escuridão, como se as trevas fossem sugadas e acumuladas lá embaixo.
     

    — Isso não é nada — respondeu Kelsi, com um sorriso cansado. — Abaixo do nível do solo temos mais de cem andares. Ali sim é o inferno.
     

    Ele apontou para o veículo que os aguardava: um drone tripulado da polícia local, de blindagem leve, com rotores ainda girando preguiçosamente.

    — Entrem, por favor.
     

    Quando todos estavam acomodados e presos aos cintos, Kelsi falou em voz clara:
     

    — Oficial Kelsi, OP-45660. Destino: necrotério policial, setor 03.
     

    O painel brilhou em resposta. Os rotores aumentaram a rotação, fazendo o veículo se erguer suavemente.
    Raphael e as matriarcas trocaram olhares silenciosos, atentos ao modo como o oficial havia “comandado” o transporte. Percebendo a tensão, Kelsi tratou de se explicar de imediato, a voz embargada:
     

    — Não, não, excelências… não tem nada a ver com inteligência artificial. É apenas um protocolo. Aqui é impossível pilotar manualmente, com tantos drones e níveis de tráfego. Os calculadores guiam todos eles… remotamente.
     

    Um fio de suor correu por sua têmpora. Desde a Primeira Ruptura, quando as inteligências artificiais haviam se rebelado em nome do Axioma Primordial, qualquer sistema autônomo sem controle humano direto fora banido. A heresia das máquinas ainda era uma ferida aberta. E inquisidores e matriarcas, como diziam os boatos, matavam primeiro, perguntavam depois.
     

    O drone pousou suavemente no pátio interno do setor 03. O necrotério policial era um bloco cinzento e sem janelas, erguido no meio da selva metálica de Tactur-2. Um edifício sem adornos, construído para a função, não para ser visto. O ar ao redor era ainda mais pesado, carregado de poeira e ferrugem, como se até o vento tivesse desistido de circular.

    — Por aqui — disse Keisi, abrindo caminho através de um portão metálico que rangeu como um suspiro cansado.
     

    O corredor interno tinha paredes revestidas de azulejos antigos, manchados pelo tempo. O chão refletia a luz pálida das lâmpadas de teto, e o cheiro, mesmo com os respiradores, era um amálgama de formol, carne fria e algo indefinível, quase metálico.
     

    A legista os esperava em uma das salas refrigeradas. Era uma mulher de meia-idade, os cabelos presos de forma descuidada, como quem não se importava com a própria aparência há muito tempo. Uma de suas mãos havia sido substituída por uma prótese metálica multifuncional, equipada com bisturi retrátil, pinças e emissores de luz. O olho esquerdo era um conjunto de lentes móveis, que se sobrepunham e ajustavam conforme ela inclinava a cabeça, lembrando uma aranha em constante observação.
     

    — Excelências… — disse ela, com a voz grave e controlada, fazendo o sinal dos três dedos antes de acionar os mecanismos da mesa refrigerada.
     

    As gavetas se abriram com um ruído seco. Primeiro, o corpo do inquisidor Jonas: nu, sem qualquer indício de traje ou armadura. A pele apresentava hematomas recentes e marcas de luta, mas nada que indicasse humilhação pós-morte. Raphael observou em silêncio, o semblante fechado.
     

    Em seguida, a gaveta ao lado foi deslizada para fora. O corpo de Elina, a Matriarca. Diferente do inquisidor, estava ainda trajando as vestes cerimoniais intactas, a máscara ritual cobrindo o rosto. Apenas uma perfuração brutal atravessava o peito, rompendo a armadura sagrada e manchando o tecido escuro. A ferida era limpa, direta. A provável causa mortis.
     

    Um silêncio pesado tomou a sala. Até Vida, que sempre carregava um sorriso dissimulado, permaneceu séria diante daquela visão.
     

    Raphael pigarreou, quebrando a quietude:

    — Matriarca Veyne… autoriza que o corpo de Elina seja analisado?
     

    Alina manteve os olhos fixos no cadáver, como se pesasse cada palavra. Depois, respondeu num tom firme, porém controlado:

    — Deixei meu sobrenome para trás quando me tornei tributo, excelência — disse ela. — Quanto à autópsia, somente com uma condição.
     

    Ela se virou, encarando Keisi, Raphael e a legista de maneira severa.

    — Os segredos das Matriarcas não podem ser expostos. Isso inclui sua verdadeira aparência. Nenhum registro, nenhuma descrição além desta sala. Vocês entendem o peso disso?
     

    A legista, acostumada à frieza dos cadáveres mas não à presença opressiva de inquisidores e matriarcas, assentiu de imediato. O olho mecânico girou em microajustes nervosos, como se traísse a ansiedade que o restante do corpo tentava conter.

    — Entendido, excelência. Absolutamente nada sairá desta sala — disse, a voz um pouco mais firme do que a respiração apressada que lhe escapava.
     

    Com um gesto rápido, abriu um pequeno estojo prateado e retirou uma pastilha azulada, que deslizou com cuidado para debaixo da língua.
     

    Alina reconheceu de imediato: Aether. Lembrou-se que, entre pessoas comuns, aquela era a única forma de acesso, comprimidos altamente diluídos. Mas o recurso era traiçoeiro. A absorção direta podia conceder clareza momentânea,  mas, ainda assim, carregava o risco mortal da superdosagem, sobretudo para quem não tinha tolerância.
     

    Raphael apenas cruzou os braços, como se aceitasse o decreto sem questionar, mas os olhos dele seguiam atentos, medindo cada detalhe. Em diversos momentos havia imaginado como Vida e Alina eram por baixo de suas roupas, de suas máscaras, mas conteve qualquer tipo de comentário.
     

    Alina se aproximou e tocou a armadura de Elina de um determinado modo secreto, como quem aciona um selo ou gesto ritual. A máscara se desprendeu suavemente, e ela a recolheu com cuidado, entregando-a a Vida.
     

    — Sua armadura e pertences devem ser mantidos intactos e sem nenhum tipo de análise, estamos entendidos?
     

    Vida segurou a máscara com reverência, como se carregasse algo sagrado. A legista, que até então apenas observava, ajustou as lentes sobre o olho esquerdo, avaliando a situação.
     

    A sala permaneceu em silêncio por alguns segundos, enquanto apenas o zumbido das luzes frias do necrotério ecoava.
     

    — podem começar… — murmurou Alina.

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