O som grave dos propulsores ecoava suavemente pelas paredes reforçadas do transporte, enquanto a superfície rochosa da lua passava veloz sob seus pés.

    Do assento na cabine de comando, Rob Veyne observava em silêncio pela escotilha lateral, o olhar fixo, mas atento. No compartimento principal, onde a pequena tropa se acomodava em silêncio disciplinado, à luz refletida pelo gigante gasoso que orbitavam, Lyra ajustava a fivela de sua armadura.

    Ela vestia o modelo tático negro e cinza-ardósia característico dos Veyne, com o brasão da Casa estampado no ombro direito. A espada, embainhada e firme em sua mão, reluzia com um brilho frio, metálico, como se pressentisse o que viria. O rifle de plasma, pesado, funcional, sem ornamentos, estava preso por sua cinta, os encaixes bem ajustados. O capacete filtrava o ar rarefeito e devolvia um chiado leve, constante, que preenchia o silêncio.

    Rob tamborilou os dedos contra o apoio do banco, inquieto, o gesto seco marcando seu desconforto. Virou-se para a garota, e soltou:

    — Como, diachos, você me convenceu a deixá-la vir? — perguntou alto, a voz cortante, sem disfarçar o tom de reprovação atravessado por um orgulho que teimava em não se calar.

    Lyra lhe lançou apenas um olhar rápido. Teve vontade, mas não sorriu. Manteve o rosto firme, sem desviar.

    Ciel ajeitava a trava da armadura ao lado, checando os encaixes com precisão quase automática. Saluh e um de seus homens, à frente, revisavam rotas no visor compartilhado, gráficos pulsando em laranja e azul, atualizações em tempo real. A viagem sub-orbital atravessava mais da metade da lua, e apesar da aparência rotineira, havia um desconforto crescente no ar. Era para ser uma missão de reconhecimento simples. Mas tudo parecia errado. O tipo de errado que ninguém nomeava em voz alta.

    O transporte desacelerou com um leve solavanco e pousou numa elevação rochosa, com vista direta para o assentamento abaixo.

    A Mina 19 era modesta. Um aglomerado funcional de estruturas de liga bruta e concreto composto, cercado por cabos de fornecimento, postes de iluminação de baixa potência e plataformas de carga cobertas de pó. Mas estava tudo parado. Nenhum sinal de recepção. Nenhuma figura em movimento. Nenhum mineiro, nenhum supervisor. Nenhuma alma.

    O grupo desceu com cautela, os movimentos contidos.

    O solo era firme, levemente irregular, coberto por uma camada fina de pó rochoso cinzento. O vento, insistente, arrastava fragmentos de papel plastificado, restos de lona rasgada, etiquetas de carga e panfletos desbotados. Objetos e pertences pessoais estavam espalhados pelas ruas como se tivessem sido largados no meio de uma fuga apressada, mochilas abertas, canecas viradas, um sapato infantil abandonado junto ao meio-fio.

    — Isso costumava ser um lugar vivo — murmurou Rob.

    E era verdade.

    A Mina 19, embora pequena e insignificante diante da escala brutal das operações da Casa Veyne, abrigava mais de mil trabalhadores e suas famílias. Homens e mulheres que jamais conquistaram lugar nas cidades-cúpula ou nas fortalezas mineradoras do centro.

    Ali era onde os esquecidos se empilhavam, os que haviam herdado contratos, dívidas e pedaços de terra estéril.

    Muitos viviam ali há três, quatro gerações. Tinham transformado contêineres adaptados e módulos reaproveitados em casas. Criavam hortas em estufas improvisadas, cuidavam de galpões escolares montados com material reciclado, organizavam festas com música gravada em relíquias eletrônicas, receitas passadas de boca em boca, e álcool de cereais fermentado em tambores plásticos.

    O mercadinho comunitário ainda estava lá. As portas escancaradas. As prateleiras, reviradas. Produtos derramados pelo chão: pacotes de proteína desidratada, filtros de água de uso doméstico, brinquedos diversos.

    Um triciclo infantil de pneu murcho jazia tombado ao lado da escada de acesso a um dormitório improvisado. Mais adiante, um varal pendurado entre dois postes segurava roupas que ainda dançavam com o vento fraco da tarde.

    O refeitório comum tinha bandejas espalhadas no chão. Algumas ainda com comida ressecada. O painel de entrada exibia um mural de desenhos infantis: retratos de brocas gigantes, figuras de capacete com sorrisos exagerados, uma grande bandeira do Império cercada por corações e estrelas.

    Mas não havia vozes.

    Nem passos. Nenhuma presença. Apenas silêncio. Um silêncio doentio, o tipo que se instala quando tudo que estava vivo foi interrompido de forma violenta e abrupta. A cidade parecia ter sido arrancada de dentro para fora.

    — Eles saíram com pressa — disse Lyra, agachada ao lado de um conjunto de botas infantis deixadas no meio do caminho. — Mas não levaram quase nada.

    — Nem mesmo os suprimentos — completou Saluh, indicando com o queixo algumas caixas de ração seladas, ainda empilhadas no canto da praça. — Isso é estranho.

    Mais adiante, a torre de comunicação, o “prato”, permanecia de pé. Intacta. Sem marcas de impacto. Mas os painéis estavam desligados, sem pulso. Os cabos de energia e os condutores secundários haviam sido cortados a machadadas. O próprio metal mostrava os sulcos da lâmina.

    — Sabotagem — murmurou Saluh, abaixando-se para verificar a base. — Desligaram de propósito.

    Avançaram até o escritório central, uma estrutura de dois andares com janelas rachadas e vidro leitoso, sujo de poeira fina e acúmulo de dias sem manutenção. Lá dentro, as salas estavam devastadas. Mapas holográficos tremeluziam sem fonte de dados.

    Cadeiras viradas. Equipamentos quebrados. Próximo à porta, uma lista de presença com nomes rabiscados à mão ainda estava presa na parede. O último registro marcado datava de cinco dias atrás.

    — Estranho que a comunicação só tenha caído ontem — murmurou Rob, enquanto passava os olhos pelo ambiente.

    — Ou talvez só tenhamos notado ontem — ponderou Saluh, de braços cruzados.

    — O que quer que tenha acontecido aqui… foi súbito — disse Lyra, percorrendo a sala com os olhos. Havia mais no ar do que pó e abandono. Havia urgência. Havia pânico refletido nas pequenas coisas: uma caneca virada, um casaco largado na cadeira, uma janela entreaberta demais.
     

    No chão, espalhados como peças de um quebra-cabeça desmontado, estavam os brinquedos. Uma boneca com o rosto queimado e o cabelo derretido numa das laterais. Um urso de pelúcia sem olhos, costurado de volta às pressas com fio metálico. Um carrinho de plástico encardido, esmagado por uma bota em fuga.

    — Isso era uma comunidade inteira — murmurou Ciel, com a voz baixa, quase sem cor.

    Rob assentiu devagar, o semblante pesado.

    — E agora é uma cidade fantasma.
     

    Saluh forçou uma porta lateral, o trinco cedendo com um estalo seco. Um depósito trancado, ou melhor, selado. O que encontraram atrás dela fez o sangue gelar.

    Marcas de garras riscavam as paredes metálicas, em espirais e estocadas. Trilhas secas de sangue escuro seguiam em ziguezague pelo chão, como se alguém tivesse sido arrastado para dentro, ou tentado sair, desesperadamente. Portas internas estavam trancadas por dentro. Algumas haviam sido barricadas com estantes, caixas, móveis. Como se tentassem manter algo do lado de fora.

    Mas não havia corpos. Nenhum. Só os rastros. E o silêncio que precede a violência ainda pulsava no ar.

    — Isso é errado — sussurrou um dos homens, o rosto pálido sob o visor. — Muito errado.

    Rob se abaixou junto a uma pilha de objetos tombados. Pegou uma prancheta partida ao meio, rachada no canto. Passou os olhos pelas anotações rabiscadas à pressa.

    — Eles acharam alguma coisa — disse, folheando uma ficha de escavação com os dedos sujos de poeira. — Um veio de aether. Parece que era puro. Muito puro.

    — Mutantes — completou Saluh, como quem cospe a palavra. — Odeio esse tipo de merda.

    — Tão rápido assim? — estranhou Lyra, erguendo o rosto sob o capacete.

    — Aether puro, em grandes doses, não só deforma o corpo — respondeu Saluh. — Ele mexe com a cabeça. Enlouquece o mais são. Já vi coisa que te arranca a sanidade pelo avesso.

    Rob olhou para a filha. Para o rifle apertado em suas mãos. Para a espada na cintura, firme. E, pela primeira vez naquela missão, não achou absurdo tê-la trazido. Não havia mais espaço para dúvidas. Se havia sobreviventes… ou qualquer coisa lá embaixo… precisariam de toda a força que ainda restava.

    — Vamos ter que descer — disse ele, com a voz tensa. Já prevendo o pior.

    A entrada das galerias principais se abria como uma ferida negra no piso metálico. Uma fenda selada por portas hidráulicas agora partidas, os mecanismos expostos, marcados por golpes de picaretas a laser, machados, ferramentas improvisadas. Como se alguém tivesse batido com ódio cego. Como se quisesse destruir, abrir, gritar sem som.

    A luz era mínima. Rob ergueu o punho e ativou os refletores da armadura. Um feixe branco cortou a poeira espessa, revelando uma escadaria em espiral que mergulhava aos níveis inferiores. O grupo avançou em silêncio, armas empunhadas. O som dos passos abafado pela reverberação oca do metal.

    — Esse cheiro… — murmurou Rob, ajustando o filtro de seu capacete. — Não é só poeira e aether. É sangue.

    O primeiro ataque não veio com aviso. Foi seco.

    Silencioso. Brutal.

    Um vulto saltou da lateral da galeria. Ossudo. A pele rasgada por cristais de aether que brotavam como espinhos, como flores mortas em carne viva. O rosto era um sorriso rasgado, grotesco, como se as bochechas tivessem sido puxadas à força até romperem. Os olhos estavam vazios, como vidro fosco. E a voz, um sussurro contínuo, em uma língua esquecida, que arranhava a alma de quem escutava.

    Ele saltou sobre Rob, que liderava a formação, mas antes que pudesse alcançá-lo, dois tiros precisos ecoaram no túnel. O som ressoou com força. O mutante foi arremessado para trás, o corpo contorcido estalando contra o piso metálico antes de parar.

    Do outro lado, outro mutante avançou. Diferente. Maior. Os braços eram desproporcionais, inchados, com músculos fibrosos que pareciam prontos a rasgar a própria pele. As mãos, grotescas, terminavam em unhas tão longas e curvas que lembravam garras de escavadora. Saluh reagiu, mas não foi rápido o suficiente, o monstro cravou as garras em seu ombro antes de cair morto, alvejado pelos disparos combinados do grupo. Um sangue espesso, negro e oleoso espirrou no chão com um chiado corrosivo.

    — Droga… meu traje foi comprometido — exclamou o líder de segurança, apertando o ferimento com a mão.

    — Primeira regra — rosnou Rob, já apontando para o próximo corredor —, não deixem eles chegarem perto. Eles não são mais humanos. Estão além de qualquer salvação. Na dúvida… atire.

    E então vieram mais.

    Titubeantes. Gemendo. Rindo com gargalhadas rasgadas. Uma horda disforme, cambaleante, feita de carne quebrada e sofrimento exposto. Dançavam enquanto avançavam, se mutilando com arame farpado, cacos de vidro, dentes humanos amarrados com cobre e couro cru. Alguns vinham nus, cobertos de sangue seco, nomes talhados na pele como tatuagens de desespero. Outros trajavam restos das roupas de trabalho, costuradas à pele, misturadas a circuitos e pedaços de ossos.

    O combate foi brutal. Curto. Desordenado.

    Lyra derrubou dois com tiros rápidos. O rifle queimava o peito das criaturas. Um terceiro a surpreendeu por trás, saltando com força. Ela caiu. O monstro quase a prensou contra o chão, mas Rob já estava lá. Arrancou o mutante com a espada, partindo-o ao meio com um golpe limpo. O cheiro que escapou da criatura era insuportável. Quente, químico. Como se algo vivo tivesse apodrecido sob o sol.

    Lyra não teve tempo de pensar. Eram as primeiras vidas que tomava, mesmo que já não fossem bem “vidas”. O corpo tremia. Os dedos hesitaram sobre o gatilho. Para não pensar, acionou uma microdose de aether no filtro do capacete. A euforia a tomou num piscar de olhos, logo substituída por uma clareza dolorosa, como se a mente tivesse sido lavada com ácido. E, sem querer, ela sorriu com amargura. A mesma substância que havia corrompido aqueles corpos… era o que agora a mantinha de pé. O quanto ela mesma já tinha mudado?

    Ciel hesitou. Um mineiro, ou o que restava de um, arrastava-se na sua direção. Metade do rosto estava derretida, a carne viva pulsando. Os olhos lacrimejavam, e a voz vinha fraca, entre soluços:

    — Por favor… acaba com isso… o céu… o céu tá debaixo da pedra…

    Um único tiro pôs fim ao delírio.

    No fim do corredor, os homens forçaram uma porta de aço. Ela rangeu antes de ceder. O que havia lá dentro era frágil demais para ser chamado de salvação.

    Três sobreviventes. Magros, encardidos, com olhos que pareciam pertencer a pessoas décadas mais velhas. Primeiro recuaram, acuados. Depois, ao perceberem que não era mais uma alucinação ou um inimigo, se aproximaram entre soluços, braços trêmulos e lamentos indistintos.

    Rob se ajoelhou diante de uma mulher. Seu nome era Mera. Estava ferida, com o corpo coberto de trapos e hematomas. Tinha o olhar de quem havia atravessado o inferno e voltado sem garantia de ter saído inteira. As mãos tremiam tanto que mal conseguiam segurar o cantil que ele lhe ofereceu.

    — Eles enlouqueceram quando acharam o veio novo — murmurou, entre goles. — Mergulharam no aether puro… diziam que conseguiam ouvir a música do universo… começaram a se tocar, a se ferir… a se comer… Diziam… que se cavasse mais fundo dava pra ver os anjos… e os deuses…

    — Isso foi quando? — perguntou Rob, baixando a voz.

    — Alguns dias… três… quatro… eu não sei mais. O tempo se quebrou aqui embaixo. Eles nos levavam devagar. Faziam coisas… abusos… canibalismo…

    As palavras pareciam cortar sua garganta cada vez que saíam. Ela chorava em silêncio, as lágrimas deixando riscos limpos na sujeira incrustada no rosto.

    Rob assentiu, sério. Virou-se para Saluh:

    — Leve os sobreviventes. Tire-os daqui. Seu traje foi exposto… pode estar comprometido.

    — Farei isso — respondeu o segurança, relutante. — Mas volto assim que eles estiverem seguros. Quero continuar.

    — Vai ajudar não se contaminando — disse Rob, seco.

    A descida continuou. Mais fundo.

    As paredes agora deixavam para trás o concreto. Apareciam apenas as veias da rocha viva. O piso era irregular, as estruturas improvisadas, com vigas metálicas enfiadas à força para evitar desabamentos. Não havia mais sinal de planejamento. Era escavação cega, movida por ganância.

    — Eles não estavam preparados pra esse nível de exposição — comentou Rob, a voz reverberando nas pedras. — Respiradores simples. Zero isolamento interno. Aposto que os sensores detectaram o veio. E aí… decidiram abrir caminho. Menosprezaram os riscos.

    Olhou de esguelha para Lyra. Ela entendeu. Sabia exatamente do que ele estava falando. Também havia feito o mesmo, dias atrás, com sua broca.

    Mais adiante, um espaço aberto. Irregular. Escavado à mão e à força.

    No centro, um altar grotesco.

    Um corpo humano, aberto sobre a rocha. Ao redor, inscrições circulares feitas com cortadores a laser. Eram runas, grafias desconexas, restos de uma linguagem que talvez nunca tivesse existido. Os intestinos estavam dispostos em espiral, desenhando um símbolo ritualístico. No peito, onde antes batia um coração, havia uma pedra dourada de aether cravada com brutalidade. Veias negras se espalhavam a partir dela, correndo como raízes em direção às extremidades do corpo. Como se a rocha estivesse tentando absorver a carne.

    Ciel levou a mão ao pescoço. Um gesto inconsciente, protetor.

    A ânsia veio como um soco seco. Lyra sentiu o estômago revirar, mas não ousou remover o capacete. Cambaleou para trás, tentando controlar a respiração. Cada centímetro daquele lugar parecia pulsar de um horror adormecido.

    Estavam exaustos. Cobertos de poeira, fluido, e um medo denso. As criaturas mortas. Os corredores estreitos. O cheiro nauseante de humanidade corrompida. Era demais. Era fundo demais.

    Ciel se deixou cair contra a parede. As mãos tremiam. Ele olhava para elas como se não fossem mais suas.

    — Eles eram pessoas…

    Ninguém respondeu.

    — A gente tá matando eles como se fossem bestas — continuou, a voz rouca. — Mas… e se fosse a gente? E se a gente achasse o veio errado?

    Lyra se aproximou. Sua voz estava firme, apesar da exaustão.

    — Eles não são mais eles. Não tá claro isso? Você faria uma coisa assim? — apontou para o corpo profanado no altar.

    Rob se agachou próximo ao cadáver. Estudou as inscrições, os cortes, a lógica de um ritual que não fazia sentido.

    — A diferença é que seguimos o regulamento. Sabemos o que o aether faz.

    Mas o silêncio que veio depois disse o contrário.

    Eles sabiam. Sabiam que não era tão simples. Que a linha entre controle e loucura era mais fina que um fio de cobre.

    A ambição. O pagamento por grama de aether puro…

    Era o tipo de coisa que “nunca acontece com a gente”.

    Até acontecer.

    Então, veio o som.

    Grave. Seco. Distante.

    Um tambor.

    Vindo das profundezas.

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