Capítulo 40: Esclarecimentos
Lyra terminava de vestir o macacão novo. O tecido ainda cheirava a lavanderia e parecia áspero na pele sensível do abdômen. Havia recebido alta quase quatro dias depois de falar com Aedena sobre o sonho, sobre Rin. Depois daquela conversa, a professora só viera em visitas rápidas, sempre em momentos em que os colegas do dormitório oito estavam presentes. Não havia mais espaço para confidências. Quase duas semanas de hospital, e ela já mal lembrava como era a rotina lá fora.
Tyla fora quem mais aparecera. Todos os dias, após as aulas da tarde, vinha até a enfermaria repassar os conteúdos das disciplinas. O entusiasmo dela contrastava com o ar pesado das paredes brancas. Falava sobre os exercícios de estratégia, sobre como Miles fazia todos repetirem as mesmas formações até a exaustão, como se quisesse gravar as manobras a fogo na memória dos tributos. Lyra ouvia com atenção, sentindo um misto de gratidão e inveja.
Agora, porém, estava liberada. O descanso numa cama limpa, sem barulho de alarmes ou gritos de instrutores, havia terminado.
A enfermeira, que lhe entregara o macacão novo, já havia deixado claro:
— O reitor Logan a espera, tributo, assim que sair daqui. Deve ir direto para lá. Ordens expressas.
Lyra apenas assentiu, em voz baixa:
— Certo…
Antes de sair, arrumou os lençóis com as mãos. Um gesto quase automático, mas carregado de algo que nem ela sabia nomear. Passou a palma sobre a última dobra e, sem olhar para trás, atravessou a porta.
O caminho até o prédio da administração parecia mais curto do que lembrava. Na última vez em que estivera ali, a ousadia a empurrara, queria enfrentar o legado, provocar, mostrar-se maior do que realmente era. Agora, riu de si mesma.
— Até parece… — murmurou, com ironia.
A secretária estava de pé, já aguardando. Sem dar chance à mulher de abrir a boca, Lyra disse:
— Pode deixar, eu sei o caminho.
O olhar de reprovação a seguiu até o elevador, mas nada foi dito.
No pequeno espaço metálico, o reflexo pálido de seu rosto se misturava com as cicatrizes ainda recentes. Apalpou a testa e o abdômen: a região permanecia sensível, repuxando sempre que se movia, mas os pontos e drenos haviam sido retirados. O doutor Heisenhauer fora claro, estava liberada, embora devesse esperar desconforto. Já o braço esquerdo, antes quebrado, parecia como novo, como se jamais tivesse se partido.
Quando chegou à porta do reitor, bateu discretamente. A voz grave de Logan veio de dentro:
— Pode entrar.
Abriu a porta e estacou. Não esperava ver Helena Sylaris ali, sentada diante da mesa pesada de carvalho, impecavelmente ereta, uma postura real.
Logan indicou a poltrona ao lado dela.
Lyra hesitou, mas obedeceu. O clima ali dentro não parecia tolerar atrasos.
O reitor tragava devagar seu charuto, a fumaça densa cobrindo o cheiro recente de limpeza. A expressão dele endureceu enquanto se apoiava nos cotovelos sobre a mesa. A presença parecia crescer, preenchendo a sala.
— Chamei as duas aqui para esclarecer algumas coisas — começou, a voz firme, sem margem para réplicas. — Primeiro: meu Domatorum não é uma zona. Vocês já passaram de todos os limites. Sejam importantes — olhou para Helena. — Ou sejam valiosas — lançou o olhar sobre Lyra.
Girou a tela de seu terminal sobre a mesa. Com um toque, duas imagens surgiram lado a lado: a Matriarca Zyab e Aliah Sylaris.
Helena se encolheu diante da mulher dourada, os dedos apertando o tecido do assento. Lyra sentiu-se como quando criança, surpreendida por uma travessura, chamada à frente dos pais. Mas, em vez de Rob e Virna, era a própria Matriarca que surgia para repreender.
Logan retomou, a voz dura:
— Chamei todas vocês aqui porque não vou tolerar mais nenhum desvio de comportamento. Nada de sabotagens, ataques ou vinganças pessoais. Não preciso do dinheiro de nenhuma Casa local. Não preciso suportar afrontas porque uma joia apareceu na minha porta. Sempre haverá quem ofereça ouro. Sempre haverá joias.
O olhar dele pesou sobre as duas.
— Um passo em falso, e é rua. Independentemente de quem são, ou de quem as indicou.
Zyab interveio, suave, mas com veneno nas entrelinhas:
— Você sabe que nosso acordo está diretamente ligado ao seu valor como tributo, não sabe, Lyra?
— Sei — respondeu ela, cabeça baixa. Não queria se curvar, mas não adiantava, não ali. Não era a hora de tentar se impor.
Aliah virou-se para Helena, o olhar frio, mas suas palavras não foram para ela.
— Se eu a oferecer como tributo, terei meu dinheiro de volta, reitor?
— Parte dele, sim — respondeu Logan, sem titubear.
— Ótimo — disse Aliah. A expressão de quem fazia contas.
Helena explodiu, desesperada:
— Não! Por favor! Quero voltar pra casa depois disso…
Aliah a mediu com desconfiança. A garota estava inteiramente à mercê de sua vontade. Lyra sentiu um lampejo de pena, mas logo abafou. Helena tentara matá-la. Esse peso jamais se apagaria, ela jamais perdoaria.
— Estamos conversados? — indagou Logan, severo.
Ambas assentiram, quase em uníssono. Se eram sinceras, ele não queria saber. Só queria submissão.
Ao saírem, a voz dele chamou Lyra de volta:
— Professora Nadine a espera no laboratório, abaixo do ginásio, com sua Feraether. Professor Stuart tem uma avaliação marcada para você. Amanhã é domingo. Hoje é seu único tempo para resolver ambas as coisas.
Lyra deixou a enfermaria em direção ao ginásio. De longe já via a grande abóbada metálica que o coroava, reluzindo sob a luz artificial do campus. Caminhava com passos rápidos, mas a mente vagava. Primeiro, porque o tempo a incomodava: já era domingo. Pelos cálculos, perdera ao menos duas semanas de aulas. Segundo, e mais inquietante, era o nervosismo que lhe roía o estômago. Qual seria sua Feraether? Ela não participara da escolha inicial. Restava-lhe aceitar as sobras.
Ao chegar, foi logo direcionada ao elevador que descia aos níveis inferiores.
Quando as portas se abriram, a visão a paralisou por um instante. O laboratório subterrâneo era imenso, quase tão vasto quanto a arena acima. Estava dividido em corredores de bancadas metálicas, máquinas cujo funcionamento Lyra não saberia sequer supor, e jaulas translúcidas sustentadas por campos de contenção cintilantes. Dentro delas, algumas Feraethers aguardavam, estudadas como peças de um quebra-cabeça vivo.
Uma em especial chamou sua atenção. Deitada contra a parede, encolhida, mas claramente maior do que a própria cela, a criatura a observava com olhos demasiadamente humanos. O olhar seguiu Lyra até que ela se afastasse, provocando-lhe um calafrio.
Logo à frente, estava a professora Nadine Clemont, de jaleco branco, conversando com um calculador de expressão pétrea.
— Calculador Olson, esta é uma das tributas que perderam a seleção inicial. Lyra Veyne — disse Nadine, em tom afável.
Olson ergueu os olhos, avaliando-a com frieza. Não disse nada, apenas retornou às próprias anotações, visivelmente contrariado. Nadine sorriu para suavizar o peso da recepção e logo se voltou para Lyra.
— Bem, lamento dizer, mas só restaram duas Feraethers iniciais para você escolher.
— Eu já desconfiava — murmurou Lyra, resignada.
Seguiram para uma sala lateral. Ali, duas jaulas de contenção repousavam.
Na primeira, havia apenas uma massa disforme, uma poça arroxeada de consistência viscosa, misturada a grânulos que lembravam vômito coagulado. O cheiro azedo que escapava deixava claro o motivo de ter sido ignorada pelos demais alunos.
Na outra, um pássaro marrom repousava, observando em silêncio. Era de porte grande, com uma estranha crina que descia em três mechas sobre a cabeça e o bico curvado. A plumagem parecia áspera, quase mineral. Lyra se aproximou, intrigada.
— E por que ninguém escolheu esse? — perguntou.
— Porque não tem grande aplicação em combate — explicou Nadine. — Além disso, o ego dele é considerado demasiado forte para uma fera inicial. É um desafio no começo, mas… quem sabe, pode se tornar uma vantagem mais adiante.
O pássaro virou o olhar para ela. Não havia docilidade ali, mas um desafio velado, como se a provocasse a recuar.
Lyra ergueu o queixo. — Bom… não é como se eu tivesse muitas opções, não é? — murmurou para si mesma, antes de encarar a professora. — Vai ser ele.
Nadine sorriu, quase divertida. — Imaginei que diria isso.
Com um toque em um controle, a jaula levitou suavemente.
— Me siga.
Juntas, subiram de elevador até a arena superior. O espaço aguardava, amplo e silencioso.
— E… como isso funciona? — perguntou Lyra, engolindo a ansiedade.
— Você perdeu as aulas, é verdade… — ponderou a professora. — Vai ser simples: use uma dose de aether e concentre-se no seu núcleo. A feraether será atraída até você; ela deseja o seu núcleo, suculento e brilhante. Nesse momento, ela vai ativar o próprio núcleo e buscar estabelecer a conexão. Então, suas consciências vão… digamos, duelar pelo domínio.
Nadine abriu um sorriso enviesado.
— feraethers iniciais, em geral, não possuem egos tão poderosos. Mas este… bom, este é um pouco mais teimoso, podemos dizer assim.
Lyra arqueou as sobrancelhas.
— Teimoso como?
— Você entenderá em breve.
Em Tactur-2, no silêncio gélido de uma sala de necrotério, uma Matriarca permanecia imóvel diante do corpo de uma de suas irmãs tombada em combate. A máscara e a armadura de Elina já haviam sido removidas, restando apenas a carne exposta à penumbra fria das lâmpadas.
Alina, ao contemplar a nudez da companheira, deslizou a mão enluvada pelas cicatrizes que marcavam aquele corpo endurecido pela guerra. Cada linha era um testemunho: queimaduras, cortes antigos, marcas de chicote. Seus dedos se detiveram, porém, sobre uma cicatriz discreta, no baixo-ventre. A marca da incisão onde retiravam o útero e os ovários das matriarcas após elas darem a luz ao seus primeiros filhos de gestação natural.
Um aperto tomou-lhe o peito. A lembrança veio como lâmina, sua filha. Pequena e frágil, envolvida em seus braços. A primeira e única vez que a segurara. Alina recordou-se do acordo silencioso feito com sua Superiora: a criança havia sido enviada para longe, de volta para casa, poupada de uma vida de servidão e sacrifício.
Um sorriso quase imperceptível desenhou-se sob a máscara. Como estaria agora? Crescida, talvez feliz em um lar que não conheceria o peso da Ordem. Mal sabia ela.
— Posso, Altíssima? — a voz rouca da legista cortou o devaneio.
Alina demorou a responder, perdida nas lembranças. Deu um passo para trás.
— Pode sim.
A mulher iniciou o trabalho com precisão clínica. Coletou material genético do ferimento, verificou unhas e tecidos. Nada, a armadura selada não deixara rastros. O corpo exalava um perfume adocicado, o cheiro do aether que impregnava a sala.
Logo, o bisturi brilhou sob a luz ao expor o abdômen. Mas a legista parou.
— Aconteceu algo? — perguntou Alina, a voz firme.
— Ela tem um núcleo aethérico. Preciso do equipamento para medir a profundidade. Não quero provocar um acidente.
Os olhos da Matriarca cintilaram por trás da máscara.
— Núcleo aethérico… é mesmo? Posso tentar algo?
A legista hesitou, mas cedeu espaço.
Alina aproximou-se do corpo. Onde havia núcleo, haveria um Oculae, a única feraether que uma Matriarca podia carregar. Tocou com a luva o ponto certo, fechou os olhos e concentrou-se. O Oculae tinha morrido junto de Elina, mas talvez tivesse retido memórias. Pistas valiosas demais para serem ignoradas.
Inspirou fundo o ar impregnado de aether de dentro de sua máscara e lançou a ordem mental. Não possuía um núcleo, mas aprendera a compelir a fera a responder.
Uma névoa dourada se desprendeu do peito de Elina, condensando-se no ar até tomar forma e desabar sobre o cadáver. O Oculae jazia ali, imóvel, os inúmeros olhos turvos, sem brilho.
Alina olhou para Raphael, que apenas assentiu. Então abriu suas defesas, expondo sua telepatia. Penetrou na mente adormecida da fera, despertando circuitos neurais artificiais, ativando um pequeno drive de memória implantado.
As imagens a invadiram em cascata. Rostos, vozes, datas. Separou, ordenou, buscou os fragmentos mais recentes. Viu a chegada ao planeta, as patrulhas, e descobriu que o inquisidor Jonas e Elina eram mais que parceiros. O sexo em si não era proibido, mas ele havia visto seu rosto. Alina apenas registrou, sem julgamento.
Seguiu adiante. O fluxo revelou pesquisas clandestinas, peças para estudo de feraethers modificados, transportadas em caixas seladas. A emboscada veio em seguida, abrupta. Um detalhe brilhou antes de tudo ruir: a marca na lateral das caixas.
“Mandu Transportes Planetários.”
Alina inclinou a cabeça, como se estivesse dentro da cena. Então, a imagem turvou, tornou-se escura, distorcida. O Oculae estava corrompido, aquilo não deveria acontecer de forma alguma.
— Merda — murmurou, erguendo suas defesas.
Era tarde. O contra-ataque psíquico veio como lâmina invisível. Ocorreu um estalo dentro de sua mente, programado para destruir qualquer intruso. A pressão foi avassaladora. A dor atravessou-lhe o crânio, fez suas pernas cederem.
Alina resistiu, sustentada por suas barreiras treinadas, mas o impacto a lançou na inconsciência. E tudo se apagou em um mergulho profundo e escuro.
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