Na arena, uma feraether esperava, indócil em sua gaiola.

    Lyra retirou o aplicador do bolso do macacão e o pressionou contra o pescoço. Um estalo seco, e logo a onda familiar de euforia atravessou seu corpo. O gosto metálico invadiu-lhe a garganta, o cérebro clareou num instante e o nervosismo que a corroía desapareceu como se nunca tivesse existido. Sorriu, confiante. Sabia que não iria falhar diante da feraether.
     

    A sensação de dissociação veio em seguida, cada vez mais intensa, mais invasiva a cada dose. Não era apenas ela mesma ali dentro; havia outra força, como se uma versão estranha e mais decidida de si mesma surgisse para tomar o controle. Virou-se para a professora e, erguendo o queixo, anunciou:
     

    — Estou pronta!
     

    Nadine apenas acenou e acionou o botão da jaula. O som metálico das trancas ecoou pela sala, e a porta se abriu lentamente. A criatura saiu com passos hesitantes, as asas se ajeitando como se medisse o espaço. Por um momento, pareceu que alçaria voo, mas algo o conteve. O núcleo de Lyra estava carregado, pulsando como um farol, e a feraether o percebeu.
     

    Imediatamente, a ave voltou a cabeça em direção a ela. Um contato invisível percorreu o ar, algo faminto, instintivo, tentando forçar passagem. Lyra sentiu a colisão de vontades: não era uma entrega, era uma disputa. O jogo brutal de quem dominaria o espaço do outro. O pássaro buscava subjugar seu núcleo, impor-se como soberano, mas ela não recuou.
     

    Havia arrogância na criatura, um instinto masculino que queria dobrá-la. E havia dor e fúria dentro dela, que não permitiriam jamais que um simples pássaro a vencesse. Inspirou fundo, deixou o aether conduzir sua vontade e lembrou-se das palavras de Aedena: o aether é um condutor, e sua vontade é a lâmina que corta através dele.
     

    Seus olhos se estreitaram. Não seria dominada. Não por um bicho marrom de expressão esquisita.
     

    O silêncio da disputa parecia eterno. De pé, imóveis, garota e feraether se mediam como se o próprio ar fosse o campo de batalha. Nadine observava, pronta para intervir se fosse necessário, mas um sorriso discreto surgiu em seus lábios quando viu a cabeça da ave lentamente baixar, rendendo-se ao chão.
     

    No instante seguinte, o núcleo de Lyra explodiu em calor. O pássaro se desfez em fagulhas douradas e disparou como uma centelha em direção ao peito dela. O impacto foi quase físico; a compreensão veio como um sussurro inevitável.
     

    Ela de repente sabia o nome dele. Kocka.
     

    Sentia seus instintos, seus gostos, seus hábitos, e mais: a mente rudimentar, teimosa, pulsando dentro dela. Mesmo submisso, ele resistia. Muito mais inteligente que ela imaginava. Cada ordem futura seria um braço de ferro, uma batalha até que ela provasse seu valor. A ave não a julgava digna. Ainda não.
     

    A estranheza em sua textura revelou o segredo. Não era carne, nem penas: era argila, moldada e viva. A impressão lhe veio como um sussurro, não uma certeza. Ele até tinha meios para atacar, sim, mas sua essência era outra: mudar, imitar, enganar. Um farsante travestido de ave, mestre da imitação e do disfarce.
     

    Lyra franziu o cenho. Não sabia como aquilo poderia servir em uma Legião. Ainda não. Mas no íntimo sabia que aprenderia.
     

    E então riu, incapaz de conter-se. Ter que se provar para um passarinho. O desafio latejava em sua carne tanto quanto a promessa da vitória.
     

    A ligação entre eles era mais íntima do que jamais imaginara. Pulsava em cada nervo, cada pensamento, como se uma nova vida tivesse sido costurada à sua. Por pouco não gritou, tomada pela vontade de abrir os braços e bater asas em triunfo. Mas aquilo não era ela, era ele. Lyra teve que parar para raciocinar para separar sua vontade da criatura. Ambas surgiam ao mesmo tempo, sem controle.
     

    E então compreendeu o que Aedena sempre lhe dizia: “saiba bem quem você é, pois essa é a chave para se tornar um domador.”
     

    — Está tudo bem? — a voz de Nadine surgiu.

    — É estranho… — respondeu Lyra, olhando para a professora. Um sorriso escapou-lhe no rosto. — Mas sim, estou bem.
     

    — Veja as instruções no seu tablet — orientou Nadine. — Todos já estão praticando com suas feraethers há pelo menos uma semana. Use o domingo para dominar os instintos do Kocka.
     

    — Farei isso.
     

    — Falo sério. As habilidades dele já estão gravadas em você. Treine com ele dentro e fora do núcleo. Use inclusive as habilidades compartilhadas.
     

    Lyra assentiu. A vontade era sair correndo dali para testar o que descobrira, mas lembrou-se da avaliação que teria de fazer. Se não fosse por Tyla ter repassado os conteúdos, estaria perdida. Se a amiga estivesse ali, ganharia um beijo na bochecha em agradecimento. O Kocka pareceu aprovar a ideia.
     

    — Que bicho mais safado… — murmurou, abafando uma risada.
     



     

    Em Tactur-2, Raphael, Vida, Kelsi e a legista observavam Alina, imóvel, concentrada nos restos do Oculae da Matriarca assassinada.

    De repente, um grito agudo cortou a sala metálica como uma lâmina. Alina despencou, o corpo arqueado pela dor. Vida, sensível às flutuações psíquicas, recuou um passo, como se tivesse sido atingida também, os olhos cerrados, e só depois de um segundo forçou o corpo a reagir.
     

    — Alina! — exclamou, avançando e tocando a cabeça da colega.
     

    — Droga… droga…
     

    — O que houve? — perguntou Raphael, a voz com um tom preocupado.
     

    — Uma sobrecarga psíquica… — Vida engoliu seco. — O Oculae foi infectado com algo. Isso não deveria ser possível…
     

    — Possível ou não, aconteceu — disse Raphael, pragmático. — Como ela está?
     

    — Sinto a dor dela. Os pensamentos estão desorganizados, mas dentro de um padrão aceitável. Conseguiu se proteger da força total do ataque. Eu não sei se teria conseguido. Precisa descansar, mas sobreviverá.
     

    Raphael a ergueu com cuidado e a acomodou sobre uma das mesas de aço. Depois voltou-se para Vida e para a legista, o olhar duro:
     

    — Vamos continuar. Precisamos terminar isso o quanto antes — disse, entredentes, a raiva quase espumava na boca.
     

    A legista retornou a Elina, concluindo o exame com precisão e rapidez, evitando registrar qualquer dado. Aquilo era apenas para os que estavam naquela sala, segredos que seriam enterrados vivos, destinados a acompanhá-los até o caixão.
     

    Não havia nada de relevante no corpo da Matriarca. Passaram então a Jonas. O inquisidor já estava nu. A morte não distinguia cargos; não havia tabus ali. O corpo era magro, inchando lentamente, e diferente do de Elina, saturado de aether, o dele carregava apenas o peso rançoso da decomposição.
     

    A legista ofereceu bálsamo para Raphael e Kelsi passarem sob as narinas.
     

    — O cheiro é forte — avisou.
     

    Ligou o gravador:
     

    — Homem, caucasiano, aproximadamente um metro e oitenta, cabelos castanhos. Marcas arroxeadas de luta nos nós dos dedos e antebraços…
     

    Recolheu material sob as unhas.
     

    — Provavelmente orgânico. Registrado no recipiente 01.
     

    O exame avançou sem revelar a causa da morte. Ao virar o corpo, Raphael ergueu a mão, interrompendo-a:
     

    — Pare. Deixe-me ver algo.
     

    Ele foi direto na axila direita do cadáver. Um detalhe que tinha passado batido à mulher. Uma incisão arroxeada chamou sua atenção. Os visores da legista se ajustaram; ela se inclinou, estudando.
     

    — Bordas sem cicatrização. Foi feita post mortem — concluiu.
     

    A incisão era triangular, com cerca de dois centímetros de cada lado. Raphael gelou. Os instintos martelavam que havia algo errado.
     

    — Rápido. Deixem o cadáver. Todos para trás. Vamos imediatamente para fora — falou num tom baixo mas urgente.
     

    Se haviam deixado uma armadilha no Oculae, nada impediria de esconder outra em Jonas. A ideia de usar o cadáver como isca o enojou.
     

    Ele carregou Alina nos braços e se afastaram. Kelsi e a legista o observavam sem compreender.
     

    — Vocês têm algum cirurgião robô? É só um palpite… mas prefiro não brincar com heréticos extremistas.
     

    — Temos, mas a solicitação pode demorar algumas horas.
     

    Raphael exibiu o distintivo.
     

    — Use isso. Adiante o máximo possível. Só continuamos com a presença do robô. Espero que meu instinto esteja errado.
     

    Quase uma hora depois, o robô-cirurgião chegou. Uma máquina quadrada, de lagartas rangentes, com dois braços articulados repletos de instrumentos. A câmera transmitia o campo de atuação. A legista assumiu o controle, o olhar fixo no visor.
     

    — Faz tempo que não opero um desses. Desculpem se parecer desajeitado.
     

    Raphael apenas assentiu, permanecendo do lado de fora da porta, arma em punho.
     

    O bisturi laser iniciou a incisão no abdômen de Jonas. O corte mal havia sido concluído quando um som estranho ecoou, não o estalo da carne, mas um silvo úmido, metálico. Um instante depois, algo explodiu para fora.
     

    Uma cobra metálica, prateada, saiu como uma lança viva. Em um segundo saiu do cadáver e perfurou o robô médico como se fosse feito de papel. Faíscas choveram. O metal se retorceu com a força do ataque.
     

    Raphael aplicou aether, sentiu as veias queimarem, respirou, e entrou na sala. O mundo desacelerou. A criatura sentiu no mesmo instante, abandonou a carcaça do robô e investiu contra ele. O primeiro disparo explodiu o chão a centímetros da fera. Era rápida demais, veloz como pensamento.
     

    A cobra diminuiu a distância e se lançou ao peito dele. O inquisidor fechou os olhos em uma prece rápida, preparando-se para a dor.

    Mas o que veio foi o clangor de aço contra aço.
     

    Vida havia interceptado o bote com a espada, a lâmina faiscando ao contato. O impacto lançou a cobra contra a parede.

    Ela se contorceu e preparou novo ataque. Raphael reagiu primeiro: dois tiros precisos. A coisa tremeu e caiu. Vida, sem hesitar, partiu o corpo metálico em duas metades limpas. Era melhor se certificar.
     

    O silêncio voltou, pesado.
     

    — Obrigado — murmurou Raphael, as mãos e pernas ainda trêmulas.
     

    — Nada além da minha função — respondeu Vida, retomando fôlego. — Se não fosse seu instinto, estaríamos todos mortos. Ainda não é hora de se aposentar, velhinho.
     

    Raphael a encarou por um instante, mas não rebateu a provocação. Não agora. Ainda havia trabalho a ser feito.
     

    Levantou-se devagar e estendeu a mão para um saco de evidências na mesa da legista.
     

    Com calma meticulosa, recolheu os fragmentos da serpente metálica, ainda manchados de sangue e partes mecânicas e eletrônicas quebradas, os depositou dentro do invólucro.
     

    — Mande o laboratório analisar isso — disse a Kelsi, sem desviar o olhar do saco lacrado, como se a coisa pudesse se mover novamente a qualquer instante.
     

    Só então voltou-se para a legista, a frieza endurecendo sua voz:

    — Vamos descobrir o que pudermos com o corpo de Jonas. — Fez uma pausa breve, como se pesasse as palavras. — Embora eu não tenha muita esperança de achar algo importante.

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