Naquela noite, Lyra teve muita dificuldade para dormir. O Kocka parecia ser um animal de hábitos noturnos, e seu instinto de vigília lutava contra a exaustão da garota.

    O corpo se revirava no cama estreita, inquieto.
     

    — Pare de se mexer tanto, Lyra — murmurou Calder, sonolento. Os outros residentes do dormitório oito permaneciam em silêncio, embalados pelo sono. — Sei que no começo é difícil controlar esses pensamentos intrusivos… mas todos queremos descansar.
     

    Lyra franziu o cenho, ofendida pela repreensão, mas então percebeu que o desconforto não era só seu. Uma presença estranha dentro dela sussurrava intenções alheias. O Kocka queria lutar pela dominância do dormitório, e usava a mente dela como veículo.
     

    “Essas fêmeas são minhas.”
     

    A frase explodiu em sua consciência com a mesma naturalidade de um pensamento próprio. O calor subiu-lhe às faces, a vergonha queimando como se tivesse sido pega em flagrante. Aquilo não era dela. Não podia ser.
     

    — Só me faltava isso… — resmungou baixinho.
     

    Respirou fundo. As lições de Aedena voltaram-lhe à memória: o estado de serenidade, o vazio protetor. Ela tentou envolver-se nesse silêncio interior, empurrando para longe o rugido possessivo do feraether. Talvez, por uma noite ao menos, pudesse se afastar daquela estranha fusão de vontades.
     

    O sono veio aos poucos.
     

    Na manhã seguinte, foi despertada pela sirene que convocava ao culto campal em honra ao Império e ao Demiurgo. Era domingo, o único dia livre das atividades formais do Domatorum. Lyra sabia que teria de usar esse tempo para começar a domar não apenas o corpo ágil do Kocka, mas também os impulsos que ameaçavam dominá-la.
     

    Após a celebração, Imara ostentava um sorriso enigmático. Não disse nada enquanto o grupo seguia para o refeitório, mas quando os demais se afastaram, permaneceu para trás.
     

    — Não se preocupem. Estarei no gramado em frente à administração. Espero vocês lá, depois.
     

    Russel apenas deu de ombros, indiferente. Kara, porém, lançou dois olhares seguidos para Imara, como se duvidasse da disposição real da garota.
     

    — Você sabe alguma coisa sobre isso, Kara? — perguntou Tyla, baixando a voz. — Não tem a ver com aquele legado que passou a semana inteira atrás dela, tem?
     

    — Quem? — Lyra se surpreendeu. O tempo no hospital a tinha deixado de fora de tudo. Ao notar que Kara e Russel caminhavam de mãos dadas, percebeu o quanto havia perdido.
     

    — Tyler — respondeu Kara. — Ele cercou a Imara para pedir um encontro.
     

    — Ela ficou louca? — explodiu Lyra. A lembrança vívida do legado erguendo Imara no ar voltou como uma lâmina. — Eu sei o que é viver dominado por hormônios. Ela está se colocando em perigo.
     

    — Calma — disse Kara, tentando amenizar. — Ele falou que deu um jeito de não tomar os remédios essa semana.
     

    Lyra arregalou os olhos, incrédula.
     

    — Eu achei que a Imara tinha escolhido uma feraether violenta só pra encher ele de cicatrizes…
     

    — Esse era o plano. — Kara suspirou. — Mas ela ficou com pena. Ele lhe disse que nunca mais ia vê-la, que semana que vem volta pras Legiões. Diferente da gente, o curso deles termina assim que fazem o vínculo inicial… afinal, já vêm treinados e prontos do front.
     

    Lyra baixou a voz, mas a tensão em seu tom era palpável:
     

    — Mesmo assim… isso é preocupante.
     

    Dentro de si, algo se agitou. A raiva veio crua, sem lógica, como se tivesse brotado de fora dela.
     

    “A fêmea é minha.”
     

    O sussurro do Kocka ecoou com força, cobrindo por um instante seus próprios pensamentos. Ela balançou a cabeça, forçando-o para longe, como quem tenta acordar de um pesadelo.
     

    — Eles vão fazer um piquenique — completou Kara, sem perceber o turbilhão em Lyra. — Estão esperando a gente depois do café.
     

    Um pouco depois, o grupo caminhava pelo caminho de pedras em direção ao gramado defronte à administração. O dia estava agradável, como sempre, abaixo do domo que os protegia. Apenas Calder não estava com eles.
     

    — Preciso comparecer ao centro de treinamento militar. — explicou, ajeitando a postura. — Querem me nomear monitor.
     

    Bastante gente ocupava o gramado naquela manhã. Alguns grupos simplesmente aproveitavam o tempo livre para conversar e rir, estendidos sob o sol. Mais adiante, alguns domadores se dedicavam ao treino de suas feraethers, atraindo olhares curiosos quando faíscas de poder ou movimentos sincronizados chamavam atenção. Havia ainda aqueles que, despreocupados, corriam atrás de uma bola, mergulhando em uma alegria simples e despreocupada.
     

    Foi nesse cenário que os jovens avistaram, de longe, a figura colossal de Tyler. O gigante estava sentado na grama, o corpo imenso contrastando de maneira quase absurda com a garota pequena ao seu lado. Ambos riam como se nada mais existisse no mundo além deles dois, trocando gestos desajeitados de carinho e partilhando algo que parecia secreto e leve.
     

    O contraste daquela cena era tão forte que fez Lyra perder, por um instante, a linha de suas próprias preocupações. Tudo aquilo que a atormentava, segredos, pressões, lembranças recentes, pareceu se dissipar ao ver a simplicidade daquele riso partilhado.
     

    A toalha estendida sobre a grama estava com alguns de petiscos e bebidas, guardados em um carrinho térmico. Onde Tyler tinha conseguido aquilo, ninguém sabia, era apenas mais um dos muitos mistérios do grandalhão.
     

    Ele oferecia pequenos quadradinhos de comida, que quase sumiam entre seus enormes dedos, direto na boca de Imara. A garota se divertia com a atenção, e a cena só ressaltava a comparação absurda entre eles. Imara não chegava a cinquenta quilos e mal passava de um metro e meio. Tyler, por outro lado, era uma muralha viva: mais de dois metros de altura, músculos esculpidos, mais de duzentos quilos de pura presença. Era como ver Davi sendo paparicado por Golias.
     

    — Fiquem à vontade! — disse o grandalhão ao notar o grupo se aproximando. Sua voz era um trovão amistoso. — Trouxe comidas e bebidas para todos nós. Fui eu mesmo quem preparei.
     

    Russel e Branth se adiantaram, cumprimentando-o com apertos de mão antes de se sentarem. Kara, preguiçosa como sempre, meio que se largou, meio que se acomodou no colo de Russel, arrancando dele um riso resignado. Tyla sorriu para Lyra, retirou as botas e se sentou de pernas cruzadas sobre a toalha, como se fosse algo natural. Um calor inesperado subiu ao rosto de Lyra, que acabou seguindo a amiga.
     

    O gelo inicial se quebrou rápido. Tyler, apesar da aparência intimidadora, mostrou-se um rapaz tímido, cuidadoso em cada palavra, quase ansioso para agradar os novos colegas do oitavo dormitório.
     

    Russel foi o primeiro a liberar sua feraether. Uma nuvem de centelhas douradas saiu de seu peito, formando uma criatura ágil, de membros finos, lembrando um pequeno macaco com uma crista branca que se estendia pela cabeça até as costas. Lyra observou com atenção, ainda não conhecia as feraethers de seus amigos.
     

    Branth foi o seguinte. O animal que surgiu ao seu lado parecia um gato vermelho, mas maior, mais encorpado, com o corpo arredondado que transmitia uma força contida. Em seguida, Tyla chamou seu Canired de eacamas azuladas, que ergueu a cabeça elegante e emitiu um som agudo.
     

    Lyra não quis ficar para trás e deixou que Kocka se materializasse. Como sempre, Curioso não tardou em agir: aproximou-se do Canired e, num lampejo, moldou sua própria cabeça até imitá-lo, as orelhas e o focinho alongados em uma caricatura quase perfeita.
     

    — Que legal! — exclamou Kara, encantada.
     

    — Inútil pra combate — resmungou Russel, cruzando os braços.
     

    — É mesmo… — concordou Lyra, embora houvesse um leve sorriso em seus lábios.
     

    O grupo riu com a cena, e a conversa foi se espalhando em pequenas ondas. Algum tempo depois, em meio ao vai e vem das brincadeiras, Tyler soltou um comentário que quebrou a leveza por um instante:
     

    — É uma pena que seu amigo tenha sido transferido — disse de repente, lembrando-se de Rin. — Oráculos não são exatamente… normais.
     

    O silêncio caiu pesado. Ninguém falava de Rin. Lyra era a única que poderia dizer alguma coisa, mas nunca tivera coragem. Queria acreditar que o tempo no hospital a impedira, mas sabia que não era apenas isso.
     

    Tyler não percebeu o desconforto e prosseguiu:
     

    — E você, tributo 1404… perdão, Lyra. — corrigiu-se rápido. — A gente ouviu algumas coisas sobre você entre os legados. Dizem que tem uma tolerância excepcional, dons psíquicos, até mesmo… até mesmo que Logan a protege de um jeito especial. Alguns chegam a sussurrar que você teria ligação com…
     

    Lyra o cortou antes que terminasse, a voz firme. Nenhum dos colegas, nem mesmo Tyla, tinha noção dos segredos que carregava.
     

    — Tyler, não se repetem boatos espalhados sobre uma senhorita.
     

    Ele piscou, confuso. Só quando entendeu que havia cruzado uma linha proibida, arregalou os olhos, calou-se e, em vez de se explicar, encheu a boca com um sanduíche.
     

    — Confessa, grandão! — provocou Kara, divertindo-se com o clima. — O que você quer com a minha amiga? Casar? Ter filhos?
     

    O riso morreu no rosto de Tyler, seus olhos se apagaram. Imara, ao lado, ficou com o copo de refresco parado no ar, hesitando.
     

    — Legados não podem ter família… — respondeu ele, a voz baixa, carregada de um peso estranho. — Vivemos para as Legiões, para o Império e para o Demiurgo.
     

    Mastigou devagar e engoliu.
     

    — Somos presos às Legiões até a morte. Nossa genética pertence ao Império… por isso somos feito estéreis com remédios.
     

    O silêncio ficou denso. Tyler, talvez incomodado com a própria franqueza, ergueu as mãos no ar, como se desfizesse um mal-entendido.
     

    — Não, não! — exclamou, num tom ao mesmo tempo sério e cômico, olhando direto para Imara. — Não é que não… funcione. — Um sorriso tímido escapou. — Na verdade, funcionamos por horas, a gente vive cheio de desejo. Só não podemos constituir famílias.
     

    Russel e Kara explodiram em gargalhadas, quebrando novamente o peso que pairava no ar.
     

    Mas o riso morreu de repente.
     

    Uma explosão violenta ecoou dentro do Domatorum, fazendo o chão vibrar sob seus pés. Instantes depois, uma fumaça espessa e negra começou a se erguer da abóbada acima do ginásio das feraethers, cobrindo o céu com um véu sufocante.
     

    Então veio o rugido.

    Agudo, dissonante, como o grito de uma fera enlouquecida. O som atravessou os tímpanos de Lyra e fez seu estômago se contrair, um arrepio subindo pela espinha até gelar-lhe a nuca. Um mal pressentimento se espalhou por seu corpo, pesado e incômodo.
     

    Todos se voltaram para o mesmo ponto. No alto da cúpula, um buraco recém-aberto fumegava. Dele emergia uma criatura colossal amarelada, forçando passagem para fora do ginásio.

    Lyra piscou, incrédula.

    Era a mesma feraether que vira antes na jaula de contenção, aquela que a tinha observado fixamente no laboratório.
     

    Algo parecia profundamente errado.
     

    A criatura rugiu outra vez. E o impacto não ficou apenas no ar.

    As feraethers ao redor enlouqueceram. O Kocka de Lyra irrompeu em fúria, a mente tomada por uma ânsia cega de atacar qualquer humano próximo. Ela tentou agarrar as rédeas do vínculo, forçar sua vontade sobre ele… mas era como gritar contra uma parede. O pequeno corpo tremia, garras à mostra, pronto para dilacerar.
     

    Um rápido olhar em volta confirmou o pior.

    Todos os outros também lutavam em vão. As feras de seus amigos se debatiam, olhos faiscando, movidas pela mesma onda de instinto selvagem.
     

    O monstro sobre a cúpula abriu as asas imensas, cada batida levantando rajadas de vento que espalharam a fumaça. Com um salto pesado, lançou-se no ar.
     

    Lyra sentiu o coração disparar.

    O destino da fera ficou claro no instante em que ela percebeu sua trajetória.

    Vinha direto na direção deles.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota