Capítulo 47: Memorial
O corpo de Lyra pingava. O macacão de treino estava encharcado de suor, colado à pele como se fosse outra camada, pesada e incômoda. Cada passo parecia arrastar toneladas. A respiração era melada, presa na garganta, e seu peito subia e descia com dificuldade. Aedena, ao contrário, mantinha-se impecável: nem uma gota de suor, nem um músculo fora de lugar. Parecia que a mestra apenas caminhara alguns metros sob o sol da manhã, não que tivesse forçado sua aprendiz até o limite.
Todo o treino que Lyra fizera até aquele dia no Domatorum, desde os exercícios, as aulas, até mesmo os combates, pareciam brincadeira de criança diante do que acabara de suportar. Os músculos de suas pernas e costas queimavam e se recusavam a obedecer; a cada tentativa de movimento, uma pontada cruel de dor surgia. Em poucas horas, tivera tantas cãibras que já perdera a conta. Até o abdômen latejava como se tivesse levado socos por dentro. A sensação era de que seu corpo estava à beira do colapso.
Aedena a submetera a poses e contorcionismos que Lyra nunca acreditara serem possíveis de um corpo humano. Seus ossos estalavam como cordas esticadas demais, e os músculos gritavam para manter movimentos e posições que pareciam insultos à lógica. Ainda assim, cada vez que pensava em desistir, Aedena a empurrava mais fundo, exigindo mais. Se não fosse o aether, pensou.
— É apenas a primeira etapa. — A voz de Aedena soava firme, fria. — Se seu corpo não estiver apto, não vai conseguir aprender o que precisa. É a ligação da mente e do corpo, Lyra. — Ela a observava sem piscar, como se pudesse medir a força de vontade apenas no olhar da discípula. — Já perdeu a sua resolução?
Lyra quis dizer sim. Quis deitar no chão e nunca mais se levantar. Mas lembrou-se da facada. Da impotência que sentiu diante de Helena. A memória, fez sua boca se contrair num rosnado:
— Nunca.
Aedena apenas riu, satisfeita.
Um alarme sonoro do tablet interrompeu o momento.
— Acho que acabou nosso tempo, Lyra. — Aedena observou a garota despencar no chão, incapaz de sustentar a última postura. — Em vinte minutos será a solenidade do memorial dos alunos que faleceram na tragédia de ontem. Temos que comparecer.
Lyra assentiu, ainda arfando, sem forças para falar. Sabia que não era apenas uma obrigação: era algo importante, uma lembrança que o Domatorum exigia de todos.
— Vá tomar banho e se trocar. Rápido. Amanhã continuamos. — Aedena já se virava, como se para ela aquele treino fosse apenas o início de algo muito maior.
Lyra se despediu com um aceno fraco e saiu tropeçando, cada passo lembrando que ainda havia muito caminho até estar pronta.
Cinco minutos antes do início do memorial, Tyla e os outros residentes do dormitório oito já estavam perfilados no campo de exercícios matinais. Aquele lugar, normalmente cheio de gritos e movimentos, agora parecia outro. Os postes de luz banhavam o espaço com um brilho frio e artificial, e todos os alunos estavam lá, reunidos em um silêncio expectante. Os macacões pretos, vermelhos e beges se misturavam, formando uma massa de cores sóbrias. Havia muitos rostos novos — veteranos que raramente se mostravam estavam presentes, como se a tragédia tivesse arrancado cada um de seus esconderijos.
Tyla, inquieta, buscava reconhecer rostos conhecidos. De relance, viu Helena Sylaris, postura arrogante, acompanhada do tributo dos Orsini. Os cabelos loiros dele estavam penteados para trás, em contraste com sua expressão dura. O outro rapaz que andava com ela, o de cabeça raspada, aquele que havia esfaqueado Lyra, não estava ali. Boatos diziam que tinha sido rearranjado. Helena, no entanto, estava ali, fingindo normalidade, e como sempre, parecendo indiferente.
— Hipócritas… — murmurou Tyla entre os dentes.
Um movimento na multidão chamou sua atenção. As pessoas abriam espaço como se alguém quisesse passar. Tyla sabia quem era: Lyra se aproximava. Havia um cansaço profundo em cada traço de sua expressão, mas também uma energia renovada, trazida pelos cabelos ainda molhados, o cheiro de xampu denunciando o banho apressado. E, sobretudo, havia o belo sorriso. Sempre o sorriso. Mesmo esgotada, mesmo sem perceber, Lyra sorria. E Tyla gostava disso nela: era uma chama que nunca apagava. Sentiu seu peito se aquecer.
— Achei que não ia aparecer… — comentou, quase no mesmo instante em que Logan e os professores subiam no palanque erguido às pressas.
— Como achou a gente? — Tyla acrescentou, vendo que Lyra se posicionava perto deles.
O palanque estava adornado com os símbolos do Império e do Domatorum, cintilando sob a iluminação. Muitos professores presentes eram desconhecidos à Lyra e Tyla; seriam tutores de períodos futuros, mas agora estavam lá, também compartilhavam a dor.
— Vocês são os únicos tributos que têm um legado junto. — respondeu Lyra, apoiando levemente o ombro em Tyla e lançando um olhar rápido para trás. Tyler e o legado de dentes perfeitos se juntavam ao grupo. Imara parecia radiante ao segurar a mão do gigante.
O legado acenou para Lyra. Sem graça, ela retribuiu.
— Esse aí faz questão de ser seu amigo… — provocou Tyla.
— Ele me dá arrepios, isso sim. — A resposta veio curta, firme. Tyla não sabia, mas aquela sensação em Lyra era nascida do peso dos acontecimentos e do momentos em que ela pisara no Domatorum pela primeira vez. Talvez nem a própria garota tivesse consciência disso.
O microfone chiou quando Logan o testou com duas batidas. O som ecoou pelo campo, trazendo um silêncio ainda mais pesado.
O reitor trajava sua farda oficial, impecável apesar dos ferimentos recentes. Seu braço mecânico estava ausente, e a falta pesava como uma ferida aberta diante de todos. Curativos ainda marcavam seu rosto, e ele mancava discretamente, mas não escondia a postura ereta.
— Estamos aqui, esta noite, para homenagear aqueles que caíram tentando ajudar seus companheiros e sua escola. — A voz grave carregava uma seriedade que esmagava até o ar.
Ele fez uma pausa. O silêncio que se seguiu não era vazio: era um silêncio cheio de nomes, de lembranças, de ausências.
— Temos trinta e seis baixas. — disse, cada sílaba cortante. — Isso mesmo. Um de seus colegas, que estava em estado grave, também se foi. Trinta e seis heróis que desafiaram o impossível para que muitos aqui pudessem continuar vivendo.
Um murmúrio correu pela multidão, rapidamente silenciado.
— A feraether que enfrentaram escapou do nosso laboratório. Ainda estamos investigando os porquês. — Logan apertou o punho que lhe restava contra a mesa. — Tenham certeza de que iremos descobrir se houve sabotagem. Nunca, em toda a história do Domatorum, um acidente como esse aconteceu.
Ele olhou para os professores e oficiais no palanque. Nenhum deles ergueu os olhos.
— Nosso Domatorum não é alheio a mortes. O processo é duro, impiedoso. Mas quando a morte nos visita dessa forma, levando nossos talentos antes do tempo, não posso aceitar. Se houve falha, seja de quem for… eu descobrirei.
Os professores abaixaram a cabeça em uníssono. O peso da culpa se espalhava.
— Não quero me alongar. — prosseguiu Logan, o tom agora mais frio. — A partir de agora, até a próxima segunda-feira, estamos em luto oficial. Usaremos este tempo para investigar e reparar os danos sofridos.
Respirou fundo, então acrescentou:
— Usem este tempo para estudar. Para treinar. Para corrigir os próprios pontos fracos. Na segunda-feira mesmo avaliaremos cada um de vocês. Não quero vadiagem.
A multidão permaneceu em silêncio, mas Tyla sentiu a raiva embutida nas palavras. Não era apenas a fúria contra o acidente. Logan estava furioso consigo mesmo, com a instituição, com o universo inteiro. Era o tipo de raiva que não tinha alvo certo, mas que sempre acabava recaindo sobre alguém. Tyla estremeceu só de imaginar quando isso acontecesse.
Bem longe dali, no coração do Império, uma gigantesca estação espacial orbitava a Terra. Uma obra-prima erguida pelos nossos ancestrais, ainda desafiadora mesmo diante da tecnologia moderna. Dela partia um elevador orbital, um cordão de aço e engenhosidade que ligava o planeta ao céu. Foi o primeiro passo para que a humanidade ousasse alcançar as estrelas, e, mais tarde, conquistar as galáxias.
Primeiro veio um brilho. Depois, uma cicatriz rasgando a escuridão do espaço. E então, como se tivesse se materializado no nada, uma nave colossal emergiu. Suas blindagens traziam os símbolos do Império, mas o destaque eram os sinais da Igreja: o olho que tudo vê, irradiando raios de aether.
Aquela nave transportava gente poderosa, senadores, alta patente das legiões, oficiais de altissima hierarquia da igreja. Mas mais importante do que isso, trazia consigo aether em quantidades monstruosas, combustível essencial para que o Imperador-Demiurgo mantivesse sua vigília eterna… e para que as engrenagens do Império não parassem de girar.
— Impressionante… — murmurou Rin, sem fôlego, se é que uma manifestação etérea podia respirar.
Pela primeira vez, via com seus próprios olhos espirituais o centro de onde o Demiurgo governava. Apesar da distância monstruosa, do plano psíquico ele podia enxergar, podia sentir.
O mausoléu erguia-se como uma pirâmide ciclópica na superfície da Lua. Do seu topo, uma corrente de energia dourada subia em coluna, densa e infinita, perdendo-se no vazio escuro do cosmos. Aquilo não era apenas luz: era pura matéria psíquica. Rin sentiu o peso dela. A pressão o esmagava mesmo dali, e sabia que, se sua forma etérea ousasse se aproximar, seria desfeita num instante, como se nunca tivesse existido.
— É do mausoléu que o Demiurgo protege nosso plano material — explicou William, o sacerdote que o acompanhava em corpo espiritual, recompondo sua alma ao mesmo tempo em que o instruía. — Ele impede que a influência dos Reis Demônios alcance os homens. Eles nos farejam e nos desejam, Rin. Sentem fome de nossas almas, e se alimentam da essência humana.
— Ele… sai dali alguma vez? — perguntou o garoto, sem conseguir tirar os olhos da coluna dourada.
— Não, jovem — respondeu William com um sorriso triste. — Entrar no mausoléu foi a maior escolha de sacrifício que um homem já fez. Quando as rupturas aumentaram, ele sozinho não conseguia mais conter o avanço da influência além do Véu. Então trouxe o mausoléu, uma relíquia perdida, para perto de nós… e ao entrar, deixou de ser homem. Tornou-se mais. Tornou-se nosso Deus. Nosso Demiurgo. Para nos proteger.
Rin estremeceu.
— Incrível…
— Incrível, e terrível. — William baixou a voz, como se temesse ser ouvido. — Ele precisa de toda a sua força mental para manter a barreira que protege a realidade. É por isso que não governa mais de forma direta. Para isso… existem os Oráculos.
Fez um gesto amplo em direção ao mausoléu.
— O Demiurgo sonha, Rin. Seus ecos e desejos transbordam dessa rede psíquica. Poucos são capazes de recebê-los e interpretá-los. Esses são os Oráculos. E se Ele permitir… você será um deles. O Oraculum Primus é a mais alta dessas vozes. Ele preside a Igreja e o Senado imperial. A sua palavra é a própria vontade do Demiurgo.
Enquanto William falava, Rin estremeceu de novo. No meio daquela abundância esmagadora de energia, percebeu algo diferente. Um vazio. Uma ausência que o chamava.
Olhou para o lado oposto da Lua e o viu: um buraco sem luz, um abismo que parecia drenar até mesmo o espaço ao redor.
— O que… o que é aquilo? — perguntou, trêmulo, como se o ar lhe faltasse.
— É para onde você vai. — A voz de William se fez grave. — Os Poços da Lua. O extremo oposto do mausoléu. É lá que os Oráculos são criados. E treinados.
Rin sentiu cada fio de sua pele espiritual se eriçar. Não queria se aproximar. Uma repulsa instintiva tomou conta dele.
— Não se preocupe — disse William, tentando soar tranquilo. — No plano material é menos assustador. Apenas escuro… e silencioso.
Mas as palavras não trouxeram consolo algum. O contraste era brutal: a abundância dourada do Demiurgo contra aquele vazio absoluto.
— Antes de irmos — continuou William — vamos devolver sua alma ao corpo. Você já se recuperou do choque. O que resta é trauma. Não se lembra do que aconteceu?
— Não… — respondeu Rin, a voz pequena.
— Na hora certa, se lembrará.
No mundo físico, os sacerdotes já haviam desembarcado. Empurravam duas cadeiras de rodas, uma com o corpo de Rin, outra com o de William. O destino era a catedral monumental no interior da estação espacial, de torres agudas e vitrais que contavam histórias antigas, do início do Império.
William se voltou para ele uma última vez, solene:
— Prepare-se, Rin. Estamos chegando.
Com um último suspiro, o garoto apenas olhou para seu destino.
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