Capítulo 50: Luau
A semana do luto oficial passou rápido demais, como se o próprio Domatorum tivesse pressa em enterrar suas dores. Agora era domingo outra vez, e no dia seguinte a vida retomaria sua rotina de treinos, aulas e disciplina severa.
Lyra aproveitara cada instante. Quando não estava com Aedena, absorvia matérias com Tyla, memorizando as disciplinas e repassando conteúdo até que as letras se embaralhassem diante de seus olhos. Repetia exercícios até o corpo latejar em protesto, até os músculos tremerem sozinhos. Explorava também as habilidades estranhas de seu kocka, fascínio e medo entrelaçados sempre que sentia aquela consciência dupla pulsar dentro dela, partilhando instintos e percepções que não eram totalmente suas. A cada dia, a sensação de ser mais do que apenas humana se aprofundava.
Imara passara quase todos os dias ao lado de Tyler, agarrando-se a cada minuto como quem tenta impedir a água de escorrer pelos dedos. Amanhã ele voltaria à sua Legião, e a ausência já pesava antes mesmo de acontecer.
Kara e Russel, entre brigas, reconciliações e risadas, pareciam ter encontrado um ritmo só deles. Estudavam juntos, treinavam juntos, discutiam e faziam as pazes com a mesma facilidade. Até o vínculo com as feraethers de ambos parecia mais sólido, alimentado pela intensidade da relação.
Branth e Calder, sempre aplicados, mergulharam em estratégias militares e no manejo prático de suas feras. Os dois falavam pouco, mas dividiam uma disciplina que os aproximava mais do que qualquer conversa longa poderia fazer.
Em uma sala trancada, longe de olhos curiosos, Aedena treinava Lyra.
— Precisa mesmo ir? — perguntou a mestra, repetindo o movimento. Sua voz soava calma, mas a pressão do golpe que ela lançava era certeira. — Devia focar no treino. É o último antes das aulas retornarem.
Lyra, de olhos vendados, ergueu a mão e desviou o ataque em direção ao rosto, conforme o movimento correto.
— Eu sei — respondeu, ofegante. — Mas prometi que iria na despedida do Tyler.
Aedena suspirou baixo, mas a intensidade dos movimentos não cedeu.
— Não vá beber, Lyra. Sua sensibilidade psíquica está muito desenvolvida. Ainda não tem controle. Pode sofrer uma sobrecarga emocional.
A lembrança de Rin surgiu sem aviso. O corpo dele se contorcendo no chão, a dor estampada em cada músculo. Um arrepio gelou a espinha de Lyra.
Além de posturas, defesas e ataques, Aedena vinha conduzindo-a pela estranha trilha da percepção psíquica. Lyra agora era capaz de detectar intenções hostis, pensamentos como lâminas invisíveis, e até perceber a presença de organismos vivos através de paredes. Um dom que beirava o absurdo.
O mais inquietante era que ela não precisava de palavras para sentir o estado emocional da professora. Ali, vendada, sabia que Aedena estava contente com o fato de Lyra ter amigos, irritada pela interrupção do treino e, ao mesmo tempo, resignada porque sabia que insistir seria inútil. Para bloquear a leitura da aluna, a mestra precisava erguer barreiras mentais ativamente.
Era incrível. Mas também perigoso.
Segundo Aedena, aquela sensibilidade tinha acabado de nascer dentro dela. No início, o fluxo bruto de informações poderia esmagar sua mente, causar desorientação ou até colapsos. Com o tempo, o cérebro aprenderia a filtrar o que importava e descartar o resto. Era uma habilidade típica das Matriarcas, rara e sempre mantida sob o véu da Igreja. Usá-la fora dos muros sagrados era considerado heresia.
Lyra mordiscou o lábio. Se tivesse dominado aquilo antes, na briga com Helena jamais teria sido ferida com a faca.
E mesmo essa coisas, eram apenas a ponta do iceberg. Aedena mostrava técnicas de combate, de manipulação do corpo e da mente, que Lyra sequer sonhara que pudessem existir. Cada treino era como abrir uma porta para um mundo secreto. Cada gesto da mestra reforçava a sensação de que havia um passado imenso e perigoso atrás daquela mulher. As menções a Paul Zachary já não pareciam devaneios loucos.
Exausta, Lyra pegou uma toalha e enxugou o rosto molhado de suor. Aproximou-se de Aedena, inclinou-se e pousou um beijo rápido em sua face.
— Obrigada por entender. Se quiser, volto depois…
Aedena manteve a expressão séria, mas os olhos suavizaram.
— Não. Vá. Divirta-se com seus amigos.
Lyra sorriu, sincera, e deixou a sala.
Depois de um banho rápido, vestiu um macacão limpo e ajeitou o cabelo ainda úmido. Partiu atrás de seus amigos até um dos gramados do Domatorum.
O grupo estava reunido em torno de pequenas lanternas e de uma fogueira improvisada, cujas chamas dançavam. Era uma pena que o ambiente fechado não permitia brisas. O cheiro de madeira queimada se misturava à comida que ocupava uma mesa de armar. O brilho quente do fogo iluminava rostos exaustos, mas leves, como se a semana inteira tivesse servido de respiro.
Não eram apenas seus amigos. Lyra contou pelo menos cinco legados espalhados por ali, além de vinte ou vinte e cinco tributos, atraídos pela luz, pela música e pela promessa de esquecimento. Russel dedilhava um violão com energia, arrancando risos de Kara, que acompanhava batendo palmas fora de ritmo.
Lyra respirou fundo. Pela primeira vez em dias, sentiu que podia se permitir relaxar.
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, uma figura saltou em sua direção. Imara, visivelmente alterada, com as bochechas vermelhas, e Tyler vinha logo atrás dela, sorridente.
— Lyra! Que bom que veio! — exclamou Imara, abraçando-a com força.
— Não ia perder, né? — respondeu Lyra, ainda surpresa.
— Só espero que uma ave gigante não interrompa nossa festa — disse Imara, rindo sozinha.
O comentário caiu pesado. Lyra congelou por um instante. Ainda era recente demais. Ela culpava o álcool na amiga por tamanha insensibilidade.
— Imara… — murmurou Tyler, reprovando. — Isso não foi legal.
Imara fez um gesto displicente com a mão, quase tropeçando. — Bah, esqueçam. Vou pegar mais bebida.
Tyler olhou para Lyra e sorriu de forma conciliadora. — Bem, se divirta. Tem comida e ponche perto da fogueira.
Lyra seguiu em direção às chamas. À medida que se aproximava, os impulsos psíquicos começaram a atingi-la em ondas. Olhares pousavam sobre ela, e seus pensamentos vinham junto: alguns cheios de desejo, outros apenas de curiosidade. Apenas um carregava hostilidade.
Ela virou-se, buscando a origem. Reconheceu a garota imediatamente: alta, musculosa, os braços cobertos de tatuagens. Era a mesma que enfrentara no teste de luta desarmada. A hostilidade deu lugar à curiosidade quando a jovem acenou. Lyra, surpresa, devolveu o gesto.
O violão de Russel preenchia o ar, animado, enquanto Kara batia palmas e cantava fora de ritmo, arrancando risadas.
Então Lyra a viu. Tyla. Os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, olhos fechados, o corpo movendo-se livre ao som da música. Um sorriso iluminava seu rosto. Quando abriu os olhos e encontrou Lyra, o sorriso se ampliou ainda mais. Ela correu até a amiga, radiante.
O impacto psíquico foi imediato. Da aura de Tyla vinham impulsos claros, ternura, amizade… mas havia algo mais, algo que latejava escondido no fundo: desejo. Lyra engoliu em seco, sentindo o rosto corar.
— Lyra! Que bom que veio! Vem, toma um ponche e dança com a gente!
A voz de Tyla era calorosa, envolvente. Lyra percebeu que a amiga, assim como Imara, estava alterada pelo álcool.
Ela deixou-se ser puxada até a mesa, onde Tyla se serviu de um jarro.
— Ponche de frutas. Tá batizado, mas fraquinho. — disse com um sorriso travesso.
Apesar do alerta de Aedena ecoar em sua mente, Lyra aceitou o copo. Tyla virou o dela de uma vez só e, sem esperar, agarrou-lhe a mão.
— Vamos dançar.
Elas voltaram para a fogueira. Russel, notando a dupla, caprichou nas cordas. Tyla dançava solta, olhos brilhando, enquanto Lyra apenas tentava acompanhar, deixando o corpo ir no ritmo.
Mas estar no centro da roda, ao lado de Tyla, atraiu ainda mais olhares, e com eles, mais pensamentos. Cobiça, luxúria, inveja, curiosidade… tudo se chocava contra sua mente ao mesmo tempo. A pressão se intensificava, latejando como uma marreta em seu crânio.
Lyra sentiu a cabeça rodar, o estômago se contrair em náusea. Precisava sair dali antes que tivesse um colapso psíquico.
— Tyla… preciso… respirar um pouco. — disse, com a voz falhando.
A amiga não percebeu, perdida na dança.
Lyra se afastou, tropeçando pelos limites da roda até encontrar um canto escuro do gramado. Afastou-se da luz e do barulho, até que pôde se sentar e encolher-se.
Apoiou a cabeça entre os joelhos, tentando bloquear os impulsos que ainda ecoavam em sua mente como ondas quebrando sem fim.
Sentiu uma presença se aproximando. Curiosidade, animação, amizade.
Quando ergueu o rosto, se assustou. Era o legado da armadura amarela do primeiro dia, o do sorriso perfeito.
— Olá, tributo. Tudo bem? — disse ele. — Lyra, não é? Tyler falou muito de você.
Estendeu-lhe a mão enorme. A palma parecia uma placa de aço, e a presença dele era tão imponente que chegava a assustar. Conseguia ser ainda mais massivo que o namorado de Imara.
— Não precisa ter medo de mim — disse, rindo baixo. — Não mordo.
Meio desconfortável, Lyra apertou a mão dele.
— Não é isso que você está pensando. Não tenho interesse em você. — Ele apontou para Imara e Tyler, rindo. — Pelo menos, não dessa forma.
Respirou fundo antes de continuar, como se estivesse escolhendo as palavras.
— Desde que vi você, alguma coisa em mim dizia que era especial. Um sexto sentido, talvez. No dia do refeitório tive certeza. Nunca tinha ouvido uma voz de comando tão forte. Depois, nunca consegui falar contigo… você sempre fugia de mim.
Os olhos dele faiscaram no reflexo da fogueira.
— Nós, legados, sabemos quem é nosso pai, nossas mães. O povo comum não faz ideia de quem somos, do que somos. Dentro de uma Legião, somos todos irmãos. Uma família, pelo menos entre os legados.
Lyra estreitou os olhos, tensa. Não sabia onde a conversa iria.
— Quando começaram os boatos sobre você, fiquei ainda mais curioso. Acabei ligando os pontos. É verdade, não é? Você também é filha de um Praetor Primus? — perguntou, mas a sua voz indicava que já sabia a resposta.
Lyra engoliu em seco.
— Mas… você sabe, não é? Meu pai não é da Oitava… — disse Lyra.
— Sou da Nona. — Ele corrigiu com firmeza. — Eu e Tyler somos da Nona. — Apontou com o queixo para outro rapaz, sentado perto da fogueira. — Aquele ali, Kalr. Ele é da Quarta, o único da Quarta aqui nesse Domatorum. Ele sim é seu irmão de sangue.
O estômago de Lyra afundou. Kalr tinha cabelos lisos e negros, olhos escuros e um rosto impecavelmente bem-feito. O sorriso discreto dele brilhava na luz do fogo. Um sorriso que agora parecia distante, intocável. Ele era seu meio-irmão. De verdade.
— Ele sabe? — perguntou, quase sem voz.
— Não. Só eu. Não contei a ninguém. Eles só ouviram os boatos… mas não ligaram os pontos. Poderia ser perigoso para você. Você não deveria existir, não aqui fora, pelo menos.
A risada do legado veio profunda, carregada de algo que soava mais como fatalismo do que alegria.
— A gente não conhece nada além da Legião. Nada além de viver pelo Império e pelo Demiurgo. Crescemos acreditando que fomos moldados apenas para matar. Máquinas perfeitas. — Ele balançou a cabeça, o sorriso se tornando quase melancólico. — Mas ainda somos humanos. E ser humano é questionar. Você, Lyra, só de existir, me deu muito em que pensar. Me mostrou que talvez não estejamos presos ao destino que nos impuseram.
Lyra não soube o que dizer. Sentia-se invadida, exposta, e ao mesmo tempo orgulhosa de ser um modelo.
— Sou Cyrus, a propósito. — Ele se levantou, sacudiu a grama do uniforme e esticou as costas. — Aposto que não imaginava que a gente podia pensar por si mesmo. Foi um prazer conhecer você.
Sorriu uma última vez e se afastou, deixando-a ali, sozinha com o peso da revelação.
Lyra respirou fundo e também se levantou, ainda atordoada. A luz da fogueira a chamava de volta.
Quando se aproximou, percebeu que o músico agora era outro. Um tributo de pele escura que não lembrava de ter visto antes. Ele terminou a canção, olhando fixamente para Tyla, e devolveu o violão a Russel.
Tyla estava ali, ao lado dele, esperando, um sorriso grande nos lábios. Os olhos brilhando.
O coração de Lyra falhou uma batida. Não sabia por quê. Mas viu o moreno enlaçar a cintura da amiga com naturalidade. Tyla sorriu e se entregou ao gesto, como se já esperasse por aquilo.
Lyra congelou. Não conseguiu desviar o olhar quando as bocas deles se encontraram num beijo quente, lascivo, sem pudor.
As pernas dela quase cederam, moles como gelatina. Sentiu o mundo ao redor desaparecer. Um vazio subiu pelo peito, queimando, uma chama amarga que lhe roubava o ar. Não sabia por que doía tanto, mas não queria mais estar ali. Queria apenas sumir, voltar para o dormitório.
E então veio a invasão.
Seu kocka rugiu nas entranhas, uma presença voraz que arranhava os ossos por dentro.
“A fêmea é minha.”
A voz primal ecoou na mente como uma garra rasgando, mas dessa vez, Lyra soube: não era apenas o pássaro. Ela também sentia aquilo.
Com lágrimas sorrateiras que escapavam dos olhos, Lyra abandonou o calor e a alegria da festa, sem ninguém perceber ou notar sua falta.
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