Capítulo 51: Quem sou eu?
Em Tactur-2, no laboratório da polícia, Raphael manipulava com seus dedos longos e marcados um pequeno cubo negro, marcado por riscos dourados quase invisíveis a olho nu. Um de seus lados exibia conectores prateados.
— Então isso é o cérebro da coisa? — perguntou, a voz grave, para o calculador policial que estava ao seu lado.
— Exatamente. Seu modelo é único. Não temos como rastrear onde foi montado, nem mesmo concebido. Uma coisa que, Honestamente, nunca vi igual.
Ele tomou o cubo das mãos de Raphael com delicadeza, e, vestindo luvas brancas, levou a peça para debaixo de uma grande lupa de bancada.
— Esses circuitos todos são feitos de aether puro. — Virou-o para o lado dos conectores e apontou uma pequena janela translúcida. — Dentro dela há gás de aether. É uma arquitetura diferente de tudo que usamos. Não é coisa nossa.
— Está me dizendo que isso é de onde estou pensando que é?
— Bem, se estiver pensando que são de além do Véu, sim. Estou sim.
A expressão do inquisidor ficou séria. Apenas a presença daquela peça era heresia suficiente para purificar todo esse planeta.
— Temos como saber o que tem aí dentro?
— Bem, até temos. Mas é um risco bem alto.
— Risco? Maior que já estamos correndo?
— Ah Sim… podemos liberar uma I.A. hostil e alienígena em nossos sistemas. Não sei se nossos firewalls estão preparados para lidar com esse tipo de coisa.
Raphael ergueu a cabeça, o cenho franzido. Já sentia o peso da obrigação: teria de comunicar aos superiores, não seria uma conversa agradável.
Alina pigarreou, chamando atenção. O braço em gesso plástico, apoiado numa tipoia, ela ostentava o ferimento com um misto de vergonha e orgulho.
— É só isso que têm para a gente?
— Não, senhora Matriarca — respondeu o calculador. — Descobrimos várias outras coisas.
Ele caminhou até uma maca de aço inoxidável. Sobre ela, as metades separadas da criatura.
Acendeu o LED de uma lupa de bancada e apontou.
— Veem alguma coisa?
Raphael se inclinou. Alina também.
— O que deveríamos estar vendo? — perguntou Raphael.
— Notem como o brilho das duas partes é diferente.
Ambos assentiram. Após serem direcionados, agora viam com clareza.
— São feitos de materiais distintos. Outra liga metálica. E apresentam níveis de desgaste diferentes também.
— E o que isso significa? — perguntou Raphael. Mas foi Alina quem respondeu.
— Significa que ele não foi feito… pelo menos não como pensamos. Ele “cresceu”. Usou materiais diferentes para reconstruir o próprio corpo. Quando perdia um pedaço, substituía com o que encontrava.
— Exatamente. Nosso palpite é nanotecnologia. É como se fosse um organismo vivo, repondo as partes que se perdiam e desgastavam.
— Isso é perturbador… — disse Alina.
— Na verdade, perturbador é o que descobrimos aqui — disse o calculador fazendo sinal para que o seguissem.
Ele caminhou até uma gaveta da parede, digitou uma senha. A gaveta deslizou com um chiado, liberando o ar frio de uma geladeira.
Lá dentro, o corpo da mulher encontrada morta na cama.
— Nossos legistas detectaram alterações grotescas no útero dela. Seu sangue era uma mistura de ferro e aether. Pelo relatório, ele estava experimentando nela. Tentando fazê-la dar à luz… a algo.
Retirou um recipiente que repousava entre as pernas da vítima. Dentro dele, uma massa disforme de órgãos, tubos e fragmentos metálicos.
O cheiro escapou, acre, ácido.
— Ela… meio que gestou isso — disse o calculador, fazendo careta. — Mas nossas análises não conseguiram determinar o que, isso deveria ser.
Raphael sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
— Devaneios de lunáticos heréticos… — murmurou. — Seguiram o coelho branco muito além do buraco da árvore.
— Tem mais uma coisa. A última.
Raphael e Alina trocaram olhares tensos. O calculador engoliu em seco.
— Sabem que os calculadores são todos propriedade da guilda. Por lei, somos proibidos de realizar autópsias em seus corpos. A guilda acabou de devolver o relatório.
— Certo… — murmurou Raphael, já esperando mais más notícias.
— O calculador que acompanhava a seita apresentava alterações profundas em seu córtex de processamento. Era como se tivesse sido reformatado. A programação original foi arrancada… substituída por outra.
— Mas calculadores não são programáveis… — disse Alina.
— Exatamente.
O silêncio que se seguiu parecia sufocar o laboratório.
De repente, Raphael desferiu um soco seco contra a mesa de aço, o estalo ecoando entre os instrumentos. Endireitou as costas, os olhos faiscando como lâminas quando encarou Alina, o calculador e os demais técnicos.
— Terminem os relatórios. Empacotem tudo. Pra ontem. — A voz saiu dura, metálica. — Vou levar isso imediatamente para a Arquidiocese. Eles precisam saber de tudo, com máxima urgência.
Ninguém ousou contestar.
Sua expressão era de pedra. Alina sabia: quando Raphael decidia, não havia retorno.
A nave deslizava pelo vazio do espaço em velocidade de cruzeiro. Do lado de fora, o manto negro estrelado permanecia imóvel, indiferente, mas nos sensores cada ponto de luz era registrado e rastreado como se pudesse se mover a qualquer instante. Os pilotos da nave de Raphael já tinham fixado as coordenadas para Matherath, uma estação orbital da Arquidiocese, não tão distante de Tactur-2. A viagem levaria apenas cinco dias, pouco tempo no calendário das distâncias interestelares, mas longo o suficiente para que dúvidas, silêncios e medos pudessem fermentar.
No compartimento de carga da nave havia algo que não deveria existir. Provas de uma conspiração que, a cada camada desvelada, se mostrava mais intrincada, mais herética, mais perturbadora. Raphael sentia o peso daquilo. O que carregava não era apenas valioso, era perigoso demais.
As pastas do caso estavam abertas à sua frente, espalhadas sobre a mesa como um quebra-cabeça incompleto. Jonas, inquisidor veterano, morto. Elina, uma Matriarca respeitada, assassinada. O que começou como um caso de investigação se tornou uma trama cheia de segredos que assustava Raphael.
Raphael esfregou os olhos com os dedos longos. Ainda havia pontos soltos demais. Sabia que fanáticos heréticos não precisavam de lógica para agir, mas, em algum lugar, havia um padrão, um porquê oculto. Só precisava encontrá-lo. Só precisava ligar as peças que ainda estavam diante dele.
Queria Alina ao seu lado naquele momento. A mente dela era afiada, paciente, sempre enxergando além das camadas de caos.
Digitou alguns comandos no terminal, mudando de tela em tela até parar na que desejava. Uma das salas de treino. Lá estavam Alina e Vida, enfrentando-se em combate amistoso, mas cada golpe denunciava algo mais profundo.
A mais velha ainda carregava o braço imobilizado, preso ao corpo, amarrado, mas nem isso a impedia de se mover como uma predadora. Raphael os observava, atento. Aquilo não era apenas treino, era quase uma sessão de confissão.
As imagens da noite em que Vida destruíra o autômato ainda queimavam em sua memória. O que acontecera ali não era natural. Podiam tentar esconder, disfarçar como mero excesso de energia, mas Raphael não era ingênuo. Sabia reconhecer quando algo estava fora de lugar. Tinha ficado quieto ate agora.
Manipulou os controles para captar o áudio. Ouviu a respiração pesada das duas combatentes. A de Alina, levemente distorcida pela máscara. A de Vida, abafada, vindo através dos véus sagrados que agora ocultavam seu rosto. Sua máscara original se partira no confronto, e até então não conseguira outra. Máscaras eram íntimas, únicas, feitas sob medida pela Igreja. Usar o véu diretamente sobre o rosto era quase uma afronta, mas também uma confissão de fragilidade.
— Não adianta tentar esconder, Vida — disse Alina, deslizando em círculos, mantendo-se sempre em um ponto cego, fora do alcance dos golpes diretos.
— Já disse que não sei o que aconteceu! — rosnou Vida. A irritação pulsava em cada músculo tenso.
Ela girou de repente, dobrando o corpo como um felino, a perna arqueando para trás como o ferrão de um escorpião. Um golpe preciso, letal — mas inútil. Alina deslizou por baixo, esquivando-se com a calma de quem já previa o movimento.
— Eu sei que você fala a verdade. — A voz de Alina saiu entrecortada pelo esforço. — Mas não toda a verdade.
Vida parou, arfando. O suor escorria pelo pescoço, brilhando sob a luz fria da sala de treino.
— Eu não sei sequer explicar…
— Tente.
Vida respirou fundo, quase dolorosamente.
— O que você vê quando olha pra mim?
— Vejo uma jovem Matriarca. Que já foi mais impulsiva, mais rebelde. Mas que está amadurecendo. Que aprende a ouvir.
— Eu não sinto isso. — A voz de Vida quebrou. — Principalmente depois do que aconteceu. Sinto como se eu não fosse eu. Gostos, manias, pensamentos… tudo está mudando.
Alina estreitou os olhos.
— Parece sinal de psicose.
Vida não deixou terminar. Tirou do bolso um frasco de comprimidos e sacudiu-o diante da sênior.
— Já estou tomando. Não adianta. Quer dizer… melhora por algumas horas, mas depois volta. — A respiração dela ficou trêmula. — Estou ouvindo coisas, Alina. Risadas. E vejo coisas no espelho… coisas que não sou eu.
O silêncio caiu pesado.
— Sei que sou nova demais pra apresentar esses sintomas. Sei que minhas necessidades de aether estão controladas, abaixo do limiar crítico. Isso não deveria acontecer. Não tem explicação. — As palavras saíam rápidas, quase em desespero.
Alina ia falar, mas Vida continuou, a voz embargada:
— Eu me sinto assombrada. Como se algo estivesse me vigiando o tempo todo. Como se alguém… estivesse mexendo em mim, mudando meus pensamentos, gota a gota, até que um dia eu acorde e não seja mais eu mesma.
As lágrimas desceram sem que ela tentasse escondê-las.
— Você se lembra das balinhas de menta e gengibre?
— As que você detesta?
Vida sorriu sem alegria.
— Não detesto mais. Agora… não consigo ficar sem. Como se fosse vício. — A voz dela se quebrou de vez. — Estou com medo, Alina. Medo de desaparecer dentro de mim.
Alina respirou fundo, contendo o próprio desconforto.
— A nave está indo para uma estação da Igreja. Vamos falar sobre isso no Matriacharum. E vamos resolver. Você não está sozinha.
Vida ergueu os olhos marejados. Queria acreditar. Precisava acreditar. Mas no fundo do peito, o medo ainda queimava como uma brasa que não apagava.
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