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    Quando a sirene tocou indicando o início da manhã de segunda-feira, Lyra já estava desperta havia mais de uma hora. Seu sono fora instável, uma batalha silenciosa entre a dor que não sabia nomear e os instintos primitivos de sua feraether, que não cessavam de se agitar dentro dela. Pouco antes do despertar coletivo, já estava trocada, suada, no pátio, tentando disciplinar corpo e mente. Liberara seu kocka para vagar longe, não queria seus pensamentos ecoando na própria cabeça. Precisava de silêncio.
     

    Aproveitou a solidão para repetir posições que Aedena lhe ensinara, principalmente os movimentos que não fluíam como deveriam. Seu corpo parecia rígido, e a insegurança era um peso constante. Ainda assim, continuava insistindo, com a teimosia de quem não aceitava se sentir fraca.
     

    — Belas poses, tributo — disse uma voz grave às suas costas.
     

    Lyra se virou de imediato. Amir, o instrutor principal de combate desarmado, a observava com um sorriso largo, emoldurado por uma barba grisalha cerrada.
     

    — Ver um tributo animado tão cedo faz meu sangue se agitar — disse ele, já se afastando em direção ao ginásio. — Espero ver você na aula mais tarde.
     

    Com o toque prolongado da sirene, o pátio começou a encher. O silêncio da madrugada foi substituído pelo burburinho apressado de passos e vozes.
     

    A única ausência eram os legados. Haviam partido ainda antes do amanhecer, convocados de volta às suas Legiões.
     

    Lyra não conseguiu evitar o peso da lembrança. Pensou em Cyrus, em Tyler e, inevitavelmente, em Kalr, seu meio-irmão improvável. Estava convencida de que nunca mais os veria. A vida de um legado era curta, banhada em violência e morte.
     

    Antes que o pátio se enchesse, buscou com a mente a presença de sua fera. O kocka respondeu de mau humor: em um canto afastado, uma nuvem de partículas douradas surgiu e logo deslizou até ela, entrando de volta em seu núcleo. Estava indignado, Lyra havia lhe negado, sem querer, um banquete de insetos que ele havia descoberto.
     

    Antes que pudesse se desculpar mentalmente, a voz de Calder a chamou.
     

    — Ei, Lyra, acordou cedo, hein? Tá bem disposta.
     

    Ela apenas assentiu.
     

    Logo viu Imara chegando. O rosto amassado, a expressão de ressaca. Tyla vinha logo atrás, seu estado não era muito melhor. A lembrança da noite anterior atravessou Lyra como uma lâmina: Tyla rindo, se agarrando a outro garoto, trocando beijos com a despreocupação de quem não pensava em consequências. Porque sentia ciúmes de sua amiga? Deveria se sentir feliz por ela, mas não, sentia-se traída.
     

    O estômago vazio de Lyra se revirou, como se estivesse prestes a vomitar um conteúdo que não existia. Sem hesitar, pegou um dos injetores e cravou no braço. O estalo do dispositivo e a ardência inicial da substância percorrendo as veias a fizeram prender a respiração.
     

    O efeito veio rápido, como sempre: uma onda breve de euforia, quase agradável, seguida pelo distanciamento gelado que tanto desejava. Era como mergulhar em águas escuras e geladas, onde o mundo inteiro ficava distante e quieto. As emoções perdiam o peso, a cor, a importância. Só restava a racionalidade limpa, cristalina, sem ruído. Exatamente o que precisava.
     

    — Bom dia, Lyra — disse Tyla, sonolenta, os olhos semicerrados. — Não te vi mais na festa…
     

    — Bom dia. Não estava me sentindo bem. Culpa do meu treino novo. — Lyra forçou um sorriso neutro. — Se me dá licença, preciso focar nas atividades da manhã.
     

    Não queria conversa. Não queria lembranças.
     

    Até o kocka parecia aprovar. O vínculo transmitia uma satisfação calma, como se ele também se aquietasse no mesmo silêncio frio. Ele também ansiava por paz, foco, disciplina. Sentimentos eram apenas distrações inúteis.
     

    Naquele dia, como prometido, Logan reuniu os tributos para uma bateria de avaliações. Os testes foram brutais: físicos, de habilidades, de tiro, combate corpo a corpo. O esperado era que não tivessem regredido. Lyra, mesmo com os treinos perdidos durante a hospitalização, manteve o desempenho. O foco artificial do aether transformava seus movimentos em algo mecânico, certeiro, como se fosse uma marionete de si mesma. Não havia espaço para hesitação ou dor.
     

    À tarde, Augustus Silak, um dos professores mais rígidos do Domatorum, aplicou uma sequência de provas escritas. As horas se arrastaram em silêncio, apenas o som das canetas digitais e o respirar pesado dos tributos. Lyra sentia a frieza do aether guiando sua mente como uma lâmina, clara, analítica, sem deixar escapar emoções que pudessem atrapalhar.
     

    Mas o tempo não esperava. Quando finalmente foram dispensados, o céu já se tingia de violeta. O corpo de Lyra pesava mais a cada passo. Sentia o efeito do aether se dissipando. Primeiro, a clareza começou a embaçar; depois, vieram os tremores nas mãos, uma tontura leve, e a dor latejante atrás dos olhos. O vazio se instalou como uma pedra no estômago, sugando qualquer energia restante.
     

    Procurou nos bolsos, desesperada. Encontrou apenas um último invólucro usado, frio, sem vida.
     

    — Droga… — murmurou, a respiração acelerada. Havia queimado toda a cota semanal em um único dia.
     

    — O que está acontecendo? — perguntou Tyla, franzindo a testa. — Pra que isso, Lyra? Você não precisava ter usado tanto aether assim.
     

    — Não quero ser mal-educada, mas eu sei o que preciso ou não — retrucou, fria. — É um assunto pessoal.
     

    Tyla ficou parada, confusa, enquanto Lyra se afastava apressada em direção ao almoxarifado. Precisava de mais doses. Muitas mais.
     

    Chegando lá, encontrou uma atendente de coque alto e farda por trás de uma janelinha de vidro.
     

    — Preencha a requisição na tela, tributo.
     

    Lyra digitou rapidamente, aguardando. A resposta veio seca.
     

    — Requisição negada. Sinto muito.
     

    — Como?
     

    A mulher suspirou, olhando-a de cima a baixo.
     

    — Não tenho nada a ver com os seus problemas, ok? Mas se precisa mesmo, pode se candidatar a serviços gerais. Ganha créditos extras. — Ela apontou para uma seção piscando na tela da ficha. — Aqui, ó.
     

    Lyra mordeu a língua, os dentes cerrados. Os trabalhos listados tomariam todo seu tempo livre. Isso significava uma coisa: não poderia treinar com Aedena.
     

    E então a lembrança caiu sobre ela como um peso. Tinha esquecido completamente do compromisso com sua mestra.
     

    Saiu correndo pelos corredores, sem olhar para trás, agradecendo rápido à atendente. O coração martelava no peito, acelerado, cada passo ecoando como se fosse um lembrete cruel. A mente repetia em círculos uma única frase amarga:
     

    “Essa semana eu tô fodida.”
     

    Quando chegou à sala de Aedena, a porta se abriu quase sozinha diante de sua pressa. A mestra já a esperava, imóvel como uma estátua, mas seus olhos a analisaram em segundos. Notou de imediato o descontrole — os padrões emocionais de Lyra transbordavam como um rio em cheia, sem disciplina, como se não tivesse treinado um único dia sequer.
     

    — Lyra. — Aedena ergueu a mão, firme. — Primeiro de tudo, se acalme. Segundo, respire.
     

    A garota obedeceu, puxando o ar em golfadas rápidas até que o ritmo começou a desacelerar.
     

    — Agora. O que aconteceu? — perguntou a mestra, sem desviar o olhar.
     

    — Eu… — Lyra hesitou, mordendo o lábio. — Eu usei muito aether. Acabei com minha cota semanal. A abstinência vai vir forte, eu sei que vai… tô com medo.
     

    — Por quê? — a voz de Aedena permaneceu calma, mas firme. — O que aconteceu?
     

    Lyra não conseguia articular. O coração acelerava de novo, os pensamentos caíam em desordem. Aedena suspirou e, com naturalidade, entrou em sua mente. A sensação foi de mãos invisíveis guiando sua consciência, arrumando as gavetas reviradas. Palavras não seriam suficientes, então a telepatia se impôs.
     

    Algumas imagens escaparam da barreira mental de Lyra: a fogueira, o rosto de Cyrus, o choque de ver Tyla enlaçada com outro garoto, os lábios unidos no beijo. As emoções explodiam em ondas — ciúme, dor, confusão — e Aedena captava apenas o necessário, o suficiente para montar o quadro.
     

    — Agora, Lyra. — Sua voz soou dentro da mente da discípula, clara como cristal. — Me conte, com calma.
     

    E assim ela contou. Do treino no domingo à festa, da sobrecarga emocional ao mergulho forçado no aether. Falou das dores confusas, da necessidade de fugir delas. Até que Aedena a interrompeu com uma pergunta cortante:
     

    — Ela sabe de seus sentimentos por ela?
     

    Lyra arregalou os olhos. — Não. Você entendeu errado. Ela é minha amiga.
     

    — Hum. — O tom da professora carregava mais dúvida do que reprovação. — Acho que você precisa ser mais honesta com seus próprios sentimentos. Mas esse não é o foco do nosso tempo aqui, não é mesmo?
     

    Lyra desviou o olhar, o peito apertado. Ainda assim, se surpreendeu em como a simples presença de sua mestra a acalmava. A pressão no peito diminuía, os pensamentos se reorganizavam, como se alguém tivesse varrido a bagunça da mente.
     

    Aedena parecia adivinhar a reflexão da garota. Tocou o ombro dela com suavidade e disse:
     

    — É muito por causa da nossa ligação. E como deve ser. Confiança, Lyra. Agora, esvazie sua mente. Respire. Vamos aproveitar o tempo que temos para treinar. Depois disso, veremos juntas o que podemos fazer para que a abstinência não acabe com você durante a semana.
     

    Lyra respirou fundo. Sentiu um nó se desfazer dentro de si e, apesar do medo ainda latejante, assentiu com um pequeno sorriso.
     



     

    A porta da cela onde Rin passara os últimos dias em silêncio, oração, meditação e jejum, estava aberta. O ar ali dentro ainda cheirava a incenso queimado, misturado ao suor seco da disciplina autoimposta. Ele havia suportado as provas de conhecimento impostas pelos sacerdotes e agora restava apenas o último passo: os Poços. Teria ali a provação da travessia, da purificação, e do recebimento.
     

    Seu futuro era claro. Ou emergiria dali como um oráculo, a serviço da fé e do Império, ou não emergiria nunca mais.
     

    Desde que se tornara um tributo, Rin aceitara o destino. O desapego lhe fora ensinado não como virtude, mas como inevitabilidade.
     

    Diferente desde o nascimento, Rin viera ao mundo em berço de privilégio. Filho de uma das famílias mais poderosas do quadrante, proprietária de cadeiras no Senado, influência em uma Legião e monopólio sobre rotas de comércio de aether. Sua linhagem carregava séculos de prestígio, mas também de responsabilidades sufocantes.
     

    Mas nasceu diferente. Sensível às flutuações emocionais dos outros. Acabou se fechando cada vez mais em si mesmo. Com sete anos tinha parado de falar completamente.
     

    Foi a própria mãe quem decidira entregá-lo como tributo, como quem corta um galho para salvar a árvore. Uma das condições que ela exigira do Império fora que ele fosse enviado a um lugar distante, onde ninguém jamais soubesse seu verdadeiro nome.
     

    E assim aconteceu. Com um só gesto, sua mãe apagara suas origens e o empurrara ao esquecimento.
     

    Foi desse modo, com um corte frio e calculado, que Rin chegara aos abrigos imperiais,  de lá, para o Domatorum, e agora, aqui, nos Poços.
     

    Desde então, sua vida não lhe pertencia. Nunca mais pertencera.

    Não havia porque se revoltar. Não havia para onde voltar, ou porquê.
     

    Estranhava que depois de ter a alma refeita pelos sacerdotes, seu dom parecia mais contido. Tinha voltado a falar com os outros.
     

    Um som seco quebrou seus pensamentos. Higgs, o oráculo que o acompanhava no processo, bateu suavemente na moldura da porta.
     

    Rin sentiu uma estranheza incômoda. Aquele lugar era saturado de impressões psíquicas fortes, marcas deixadas por incontáveis mentes que ali se quebraram ou se iluminaram, mas dos próprios oráculos não vinha nada. Higgs, assim como os outros, parecia um vazio ambulante, uma casca sem identidade. Nem um lampejo de emoção, nem uma fagulha de vontade. Até quando demonstrava algum afeto, ou se divertia com as conversas com Rin, não havia nada. Apenas vazio.
     

    Na mente de Rin só havia duas hipóteses: Ou eram vasos perfeitos da vontade de algo maior, algo que falava através deles, ou eram hipócritas tão consumados que escondiam seus sentimentos com barreiras intransponíveis.
     

    Ambas as possibilidades o assustavam.
     

    — Está na hora, Rin. — A voz de Higgs era plana, quase desprovida de humanidade. — O Barqueiro já o espera. Você se lembra dos procedimentos?
     

    Rin assentiu. Sim, lembrava. Como esquecer? O rito fora martelado em sua mente repetidas vezes. Iria fazer finalmente a travessia. Um dos muitos testes que ainda o aguardavam.
     

    O velho ancião responsável não vivia nem aqui, nem lá. Era um guardião de passagens, um mediador do abismo. Um destino pior que a morte na opinião do garoto.
     

    A travessia não era apenas um caminho físico, era um rito. O último ato de desapego de Rin. Se o Barqueiro o julgasse indigno, deixaria que a corrente psíquica que circulava os Poços o despedaçasse até não restar nada.
     

    Rin sentiu a boca seca. Sua voz, quando saiu, não refletia suas verdadeiras convicções, mas mesmo assim ressoou firme:
     

    — Eu estou pronto.
     

    Higgs ergueu a cabeça apenas o suficiente para encará-lo.
     

    — Então vamos, criança.

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