Capítulo 53: O que move o mundo
Rin deixou a catedral em companhia de Higgs. Seus dedos se esfregavam uns nos outros, nervosos, enquanto um frio ácido lhe corroía o estômago.
— Tome minha oferta e prova de renascimento… — murmurava, repetindo em voz baixa a liturgia que lhe fora ensinada, como quem se agarra a um feitiço contra o abismo que o aguardava.
Uma nave da Igreja os esperava na doca. O veículo sagrado os levaria até a cúpula de habitação erguida no hemisfério lunar oposto à pirâmide do Mausoléu.
O trajeto parecia curto quando visto das janelas da estação, mas no espaço as distâncias enganam. Duas horas inteiras se alongaram em silêncio, apenas o zumbido baixo dos motores quebrando o vazio. Rin mantinha os olhos fechados, repetindo a liturgia.
Quando a escotilha de desembarque se abriu, não conteve o suspiro.
— Uau…
— É uma vista e tanto mesmo — concordou Higgs, com um sorriso no rosto.
Acima deles pairava a Terra, berço da humanidade, um disco azul e branco suspenso no negro. Mais próxima, a estação espacial de onde viera projetava sua sombra, salpicada de pontos de luz artificiais.
Eles estavam na Lua. O deque de aterrissagem se espalhava diante deles, recoberto pelos sinais da Igreja. Era um lugar vedado a civis, dominado pela presença eclesiástica. Uma cúpula transparente gigantesca cobria toda a região, sustentada por colossais pilastras de aço e ligas raras que se entrecruzavam como uma teia de aranha. O plexiglass fechava os vãos, mantendo a atmosfera controlada.
Rin deu um passo hesitante. O peso do corpo parecia estranho, leve demais. Esquecera que não estava em uma estação com gravidade artificial. Seus músculos se descoordenaram nos primeiros movimentos, mas logo se adaptou, encontrando um ritmo instável mas eficiente. Higgs o observava com um leve sorriso, seus passos já firmes.
— Vai se acostumar. — disse. — A gravidade nos Poços é a mesma daqui.
À frente, uma série de construções de aspecto industrial marcava a superfície lunar. Quase sem janelas, feitas de concreto bruto e aço reforçado. As cores eram funcionais: uma viga amarela, uma inscrição na parede, símbolos da Igreja entalhados com solenidade nas superfícies cinzentas. Nada ali era decorativo; cada pedra parecia servir apenas ao culto ou a sua finalidade.
Do outro lado, um portal solitário erguia-se à beira de uma vasta cratera. Não tinha adornos, apenas um arco de concreto nu. Guardava, de forma quase insolente, a entrada para o abismo. Não havia grades, barreiras ou sinalizações. Apenas a boca aberta da cratera.
Quando se aproximaram, Rin percebeu que dentro do arco havia uma plataforma suspensa, como um atracadouro projetado para dentro do vazio lunar. Ao atravessar o portal, o chão pareceu girar sob seus pés. Uma vertigem súbita o atingiu, e ele cambaleou. Higgs segurou-lhe o ombro com firmeza, como quem já esperava a reação.
— Forte, não é?
Rin não conseguiu responder. O impacto era esmagador. Uma torrente psíquica emanava da cratera, como um rio invisível e ensurdecedor. Ele havia sido preparado para isso, instruído sobre o que iria sentir, mas nenhuma descrição fazia jus à intensidade.
O Poço era um funil cósmico. Toda a energia psíquica da humanidade, espalhada em incontáveis mentes, convergia para ali. Como se o inconsciente coletivo fosse sugado por aquela garganta lunar. De lá, a corrente era direcionada ao Mausoléu, para ser recebida pelo Demiurgo. Era através dele que as aspirações humanas ganhavam forma, e a vontade da espécie encontrava um caminho.
Rin sentiu o estômago se contrair violentamente. Aquela maré de impressões, de desejos e angústias humanas, era forte demais. E ele teria de atravessar até o centro, até o ponto zero, onde nada existia, apenas o vazio absoluto.
Um lugar onde até mesmo o pensamento se desfazia.
Higgs deu um passo até a beira da cratera. No chão, repousava uma lanterna. Apesar de contar com os benefícios da modernidade, células de energia, botão de acendimento, a sua aparência era arcaica, como se tivesse sido arrancada de outra era.
Ele a pegou, acendeu, e aproximou da escuridão. A chama artificial parecia mínima diante do abismo. Em seguida, entregou-a a Rin.
— Bem, Rin… agora é somente com você. Não posso estar aqui quando ele chegar. Boa sorte.
Virou-se e foi embora, sem sequer olhar para trás.
Restou apenas Rin, a lanterna em mãos e a boca negra da cratera diante dele. Engoliu em seco.
Alguns minutos se arrastaram, até que do fundo da noite emergiu uma plataforma metálica flutuante, pesada e silenciosa. Rin sorriu, aliviado: esperava um barco de madeira podre, uma alegoria macabra. A visão da plataforma lhe trouxe uma estranha confiança, a noção de realidade em meio ao sonho febril.
O barqueiro estava nela. Um velho alto e magro, de postura ereta, cabelos brancos ralos, pele marcada por manchas senis. As mãos ossudas se apoiavam em uma bengala simples. Mas eram seus olhos que mais prendiam atenção: cinzas, límpidos, observadores, como se atravessassem camadas de carne e pensamento.
Quando Rin fez menção de subir, a bengala ergueu-se diante dele, bloqueando o caminho.
— Ponha a lanterna no chão, garoto.
Rin obedeceu. Então levou a mão ao peito e começou a recitar:
— Ó Barqueiro…
— Pare com isso. — interrompeu o velho, seco. — Não preciso de suas palavras ensaiadas. Só me dê o pagamento. O que importa não é o som de palavras ensaiadas, mas aquilo que você vai deixar comigo.
O coração de Rin disparou. Tinha pensado muito nesse momento. Sabia que a travessia custaria algo íntimo, algo precioso: a oferenda de sua verdade mais profunda.
— E então? — perguntou o Barqueiro, impaciente.
Rin respirou fundo. Abriu sua mente, projetando uma imagem psíquica de si mesmo que se desprendia do corpo. A pele translúcida, o duplo etéreo, os olhos mais vivos do que no mundo físico. Do outro lado, o velho também se projetou, mas no reflexo era jovem, robusto, cheio de vigor.
— Disseram-me para oferecer aquilo que eu tinha de mais precioso — começou Rin. — A verdade mais profunda de quem sou.
Seus olhos vacilaram, mas manteve a voz firme.
— Eu poderia entregar lembranças do amor de casa, mas nunca as tive. Poderia oferecer amigos, mas não foram verdadeiros, os que foram, não duraram. Tudo o que me moldou foi este dom que carrego… este fardo. Eu sempre o considerei uma maldição.
Ele ergueu o rosto, encarando o Barqueiro.
— É isso que entrego. Meu dom. Que seja arrancado de mim, mesmo que eu nunca mais sinta a emoção de outra pessoa.
O silêncio pesou. Então a projeção do valho ergueu a mão e a pousou sobre a projeção da alma de Rin.
O toque ardeu como gelo. Rin arfou, um grito preso na garganta. Sentiu algo sendo puxado de dentro de si, não ers apenas uma emoção, mas sim, um alicerce, um nervo invisível que ligava sua existência ao mundo. Foi como se o centro de seu ser fosse desfiado fio por fio.
— Ugh…
Vazio. Oco. Um espaço onde antes havia um calor tênue agora era apenas silêncio.
— Pois bem. — disse o Barqueiro, recolhendo a mão. — No fim da travessia, pesarei a verdade de suas palavras.
Rin mal conseguiu assentir.
— Entre. — ordenou o velho. — E fique aqui, no plano psíquico. Quero ver como sua alma reage quando for tocada por toda dor e angústia do mundo, e outras…
Lyra segurava dois bastões curtos. Os dedos estavam suados, os braços em chamas. Os antebraços já exibiam hematomas roxos, pulsando a cada batida do coração. Aedena, diante dela, também empunhava bastões.
— Lembre-se, Lyra. — disse suavemente, mesmo enquanto golpeava — os bastões são adagas. Eu já teria arrancado ambas as suas mãos.
O estalo seco do impacto atravessou o punho de Lyra. Um dos bastões escapou de seus dedos e caiu no chão com força.
— Argh…! — rosnou, a dor misturada à frustração.
— Serenidade, Lyra. — murmurou Aedena.
— Fácil falar… não é você quem tá sendo espancada!
Aedena parou. A voz perdeu qualquer traço de ternura.
— Acha mesmo que estou te espancando? Solte o bastão, Lyra.
Hesitou, mas obedeceu. O bastão tocou o chão, e esse foi o sinal.
Aedena explodiu.
— Defenda-se!
O ataque veio como uma tempestade furiosa: socos, cotovelos, joelhos, a lâmina dos pés. Cada parte de seu corpo era uma arma. Lyra tentou esquivar, tentou bloquear, mas para cada golpe defendido, outros três atravessavam sua guarda. Eram os primeiros golpes que Aedena não segurava sua força verdadeira.
O ar saiu dos pulmões de Lyra com o primeiro soco no estômago. O segundo golpe, uma joelhada no fígado, trouxe uma dor aguda, paralisante. O terceiro, um calcanhar nas costelas, quebrou ossos com o som nítido de galhos partindo. Vieram mais: uma chuva de golpes secos, rápidos, implacáveis.
Lyra caiu. O sangue borbulhou na boca, escorreu pelo queixo. Tentava respirar, mas cada inspiração era um incêndio dentro dela.
Aedena se agachou ao seu lado. Trouxe o rosto para perto, sem emoção, sem ternura, sem raiva.
— Isso, Lyra. Isso é espancar alguém.
O olhar de Lyra tremia, perdido. Aedena continuou:
— Você já viveu bastante para alguém da sua idade. Mais do que a maioria. Mas ainda não entendeu o que sustenta este mundo.
O sangue formava uma poça vermelha sob a boca da aprendiz. Ela só conseguia gemer.
— O mundo é simples. — disse Aedena, cada palavra como um corte. — Poder. É disso que tudo é feito. Violência. Sexo. Dinheiro. São só ferramentas diferentes. Molas que movem a existência.
A mão da professora apalpou bruscamente os seios de Lyra, invadindo seu corpo, sua intimidade. Não havia desejo em seus olhos, apenas frieza.
— Está vendo? Você está à minha mercê. Os homens inventam leis, regras, mas é só isso que importa: poder. Quem tem, manda. Quem não tem, obedece.
Lyra fechou os olhos. Sentiu as mãos de Aedena novamente sobre ela. Mas desta vez, o toque trazia calor. A energia psíquica fluía em seu corpo, costurando rupturas, estancando hemorragias, alinhando ossos quebrados. A cura não apagava a dor, apenas garantia que ela sobreviveria para aprender sua lição.
Quando conseguiu se mover, levantou-se devagar, as pernas trêmulas. Fitou o rosto da mestra: os olhos de Aedena estavam marejados, mas a voz era firme.
— Não pense que gostei do que fiz. — disse. — Está dispensada por hoje.
Lyra, mancando, caminhou até a porta. Antes de sair, murmurou:
— Me desculpe, mestra. Eu vejo agora… e eu a desculpo também.
As palavras pesaram no ar. Então saiu, levando consigo a dor e a lição.
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