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    A plataforma deu um tranco seco e começou a deslizar. Rin se sobressaltou, os pés sem apoio, as mãos sem onde se agarrar. Sua mente se dividia entre as sensações de seu corpo físico e a projeção psíquica que habitava.

    Com os olhos da forma astral, percebeu que o espaço à frente não era sólido: tremeluzia como vidro em brasa. Correntes psíquicas se entrelaçavam, unindo-se e desfazendo-se em espasmos, como águas revoltas de um rio enfurecido.
     

    Hostilidade vibrava nelas, uma pressão que ressoava direto em seu peito. Então uma risada baixa e arrastada cortou o silêncio.
     

    — Percebeu, não é? — disse a voz. — Energias ditas boas — amor, esperança, compreensão — quase não existem. O que abunda é ódio, inveja, dor, desilusão. Essa é a verdadeira face da humanidade. Algo que apenas nós conseguimos enxergar.
     

    Rin tremia. As correntes agitadas afetavam sua forma astral, que parecia se rasgar em farrapos. Ele não queria acreditar. Como sacrificar-se por isso? Se a humanidade era apenas aquele pântano de sentimentos podres, não havia razão alguma.

    A plataforma seguia firme, indiferente àquela energia sufocante que os cercava.
     

    O desespero explodiu dentro dele. Rin gritou e levou as mãos ao próprio rosto. A ânsia era arrancar a própria face, destruir aquela máscara que o prendia ao sofrimento. Por um instante esqueceu tudo o que aprendera com os sacerdotes, com Higgs. Foram apenas as unhas cravadas em sua carne que o despertaram, a dor devolvendo um mínimo de lucidez.
     

    O velho ao seu lado gargalhava, saboreando o espetáculo.
     

    “Na hora mais escura, volte seu pensamento ao Demiurgo…”
     

    A frase ecoou em sua mente. Rin agarrou-se a ela. O simples ato de invocar o Demiurgo trouxe-lhe um fiapo de paz. O tremor cessou. Suas mãos caíram devagar. Ele ergueu os olhos, fitando o vórtice psíquico como quem encara o abismo. Do outro lado da lua, erguia-se o mausoléu.
     

    — Se ele se sacrificou, quem sou eu para questionar? — murmurou, sentindo o peso sair de seu peito. — Só me resta apoiar sua decisão.
     

    Ainda havia dúvidas, sim, mas Rin empurrou-as para o fundo. Forçou-se a lembrar do que a humanidade já tivera de belo: seus feitos, suas conquistas, os lampejos de altruísmo. Recordou-se dos amigos no Domatorum, do calor de pequenos gestos.
     

    Seu peito aqueceu, mas logo o desespero apagou a centelha. Ao redor, nada daquilo restava. Só cobiça, inveja, ódio cru.
     

    Foi então que voltou ao Demiurgo. E nele encontrou firmeza. O coração se encheu de força, de amor. O Demiurgo via a humanidade despida, em toda a sua miséria, e ainda assim escolhia amá-la, escolhendo suportar aquilo por milênios. Esse era o sacrifício supremo.
     

    A compreensão o invadiu. Agora sabia quem era o Demiurgo e o que ele carregava. Lágrimas desceram pelo rosto astral de Rin, misturando-se ao sangue que escorria dos cortes feitos por suas próprias unhas.
     

    O barqueiro o observava. Não havia mais ironia em seu olhar, mas respeito. Sentia a transformação no rapaz. Rin havia entendido. Estava pronto para se tornar um porta-voz do Demiurgo.
     

    — Não se iluda. — A voz do barqueiro voltou, grave. — É apenas o primeiro passo.
     

    Rin assentiu. Ele sabia.
     

    Ancorado na confiança no Demiurgo, deixou de sentir as correntes como ameaça. Agora estava fixo em algo sólido, algo eterno. Pela primeira vez em sua vida breve, sentia chão.
     

    A plataforma deu outro solavanco. Uma dor aguda atravessou sua forma astral, como se o próprio ar o dilacerasse.
     

    — Estamos na metade da travessia, o trecho mais turbulento — avisou o Barqueiro. — Você já pagou para iniciar. Agora deve sacrificar para prosseguir. Ofereça o que o prende. Culpa. Desejo de ser compreendido. Se não destruir, o rio o despedaçará.
     

    Rin sabia. A Litania dizia o mesmo. Outra pontada atravessou sua alma, como lâminas cortando fibras invisíveis. Para passar, precisava abrir mão de algo que o amarrava à humanidade, essa mesma humanidade que agora lhe despertava repulsa.
     

    Então lembrou-se de Lyra. Do jeito sincero com que tentou ser sua amiga, do modo transparente com que deixava as emoções fluírem. Algo nele avisava que havia mais, algo que estava esquecendo. Mas decidiu. Ela era sua âncora. Enquanto se mantivesse preso a ela, sua alma se desfaria, pouco a pouco, nas águas.
     

    — Ó Demiurgo, que abdicastes da condição humana, guia-me ao vazio… — sussurrou, entregando a lembrança de Lyra ao rio.
     

    A lembrança se adensou, tomando forma diante de seus olhos. Primeiro, apenas vultos retorcidos na corrente. Depois, uma imagem grotesca e cruel.
    Lyra, boiando em águas negras, a pele pálida refletindo a luz mortiça. O cabelo desgrenhado se espalhava como algas mortas, enquanto lâminas psíquicas cortavam a superfície, zunindo como navalhas. Cada vez que passavam, abriam fendas em sua carne, arrancando tiras inteiras, que o rio devorava sem piedade.
     

    — Rin… — a voz dela veio fraca, engasgada. — Me ajude… por favor…
     

    Os olhos dele se arregalaram. Por instinto, a mão de Rin se ergueu, como se pudesse puxá-la para fora da corrente. A lembrança parecia tão real que quase sentiu a aspereza da pele dela roçar seus dedos.
     

    Por um instante, ele quis saltar. Quis agarrá-la, arrancá-la dali. Seu corpo astral inteiro gritava para salvá-la.
     

    Mas a voz grave do Barqueiro cortou o impulso como uma lâmina fria.
     

    — Decida.
     

    Rin parou, a respiração presa na garganta. Seus dedos tremiam a poucos centímetros do rosto dela. Lyra o fitava com olhos enormes, rasgados pelo medo. A boca se abria em súplica muda, cuspindo água escura e sangue.
     

    — Eu… — a palavra escapou, sufocada.
     

    Ela estendeu a mão em resposta, os ossos já à mostra sob a pele dilacerada. Ele poderia alcançá-la. Bastava inclinar-se mais um pouco. Bastava querer.
     

    Mas não quis.
     

    Os dedos dele se fecharam no vazio. Rin recuou a mão, deixando o peso da decisão cair sobre o próprio peito como uma pedra.
     

    Lyra afundou. Primeiro o rosto, depois o corpo, engolido pelas águas. Suas súplicas se dissolveram em borbulhas rubras, até restar apenas o silêncio do rio.

    Rin não piscou. Forçou-se a olhar cada pedaço do corpo dela sendo dilacerado, cada músculo exposto, cada osso arrancado em estalos secos, até que não sobrasse nada.
     

    Quando a última centelha da lembrança se desfez, ele percebeu lágrimas ardendo em sua face. Gotas pesadas, quentes, misturando-se ao sangue que ainda escorria de seus arranhões. Mas foram as últimas. Nunca mais choraria.
     

    Um vazio gelado tomou o lugar de sua dor. E nesse vazio havia uma estranha leveza. Pela primeira vez, Rin não se sentia prisioneiro em seu corpo, nem em sua mente.
     

    A plataforma avançava, lenta, e o rio psíquico se tornava mais denso, mais fundo, até que Rin percebeu que não havia mais corrente. Havia apenas silêncio. Um silêncio tão absoluto que feria os ouvidos, como se o próprio vazio gritasse.
     

    Ele ergueu os olhos e então viu.
     

    O Véu.
     

    Um tecido esfarrapado de luz, estendido sobre um abismo infinito. Cada fenda, cada rasgo, deixava escapar não apenas formas, mas universos de tormento. Rin não queria olhar, mas a visão o forçava, como ganchos fincados em sua alma.
     

    E então pode de verdade ver.
     

    Não eram apenas sombras ou bocas disformes. Havia tronos do outro lado, tronos erigidos de ossos e carne, flutuando em mares de sangue coagulado. Sobre eles, formas colossais, cada uma mais incompreensível que a outra. Eram os Reis Demônios, soberanos da podridão.
     

    Um deles, coroado com crânios humanos fundidos, tinha asas formadas por colunas de mãos suplicantes, cada dedo movendo-se em agonia eterna.
    Outro era um corpo sem fim, cujas costelas abertas formavam catedrais invertidas, e dentro delas uma corte de criaturas menores se contorcia em louvores de dor.

    Um terceiro não tinha corpo, apenas um olho ciclópico, maior que uma cidade, rodeado por bocas infantis que choravam e riam ao mesmo tempo.

    E não estavam sozinhos.
     

    Cada Rei era servido por legiões, cortes inteiras de demônios menores.

    Seres com rostos humanos costurados em corpos de fera.

    Mulheres esqueléticas que davam à luz sem parar, cada parto expelindo larvas de almas devoradas.

    Militares deformados, marchando em fileiras, batendo tambores feitos de peles e estômagos.

    Monstros com línguas que atravessavam corpos como lanças, sugando lembranças, memórias, pecados, e cuspindo apenas cascas ocas.
     

    Eles não atacavam. Apenas esperavam. Rin entendeu que esperavam o momento certo. Um único deslize no Véu, uma brecha, e eles viriam. Não para conquistar, mas para alimentar-se da própria essência da humanidade.
     

    O cheiro atravessava até o plano psíquico: ferro de sangue, carne pútrida, incenso queimado de templos profanos.

    O som era pior: orquestras de lamentos, tambores de ossos, risadas infantis que se transformavam em berros animalescos.
     

    Rin quis tapar os ouvidos, fechar os olhos, mas a visão era absoluta.
     

    Ele entendeu.
     

    A humanidade era podre, cheia de dor, ódio e inveja, mas diante daquilo, os pecados humanos eram apenas arranhões na superfície. O verdadeiro horror vinha de fora, dos Reis Demônios e suas cortes famintas.
     

    E o Demiurgo… o Demiurgo sabia disso. Ele não era um idealista. Não era um deus cego pelo amor. Ele era o Guardião. O único entre eles e o abismo. O único a suportar a visão completa do horror e, mesmo assim, decidir proteger os homens.
     

    O peso da revelação esmagou Rin. Ele não suportava mais. Sua psique se rasgou como papel. As lágrimas voltaram, mas agora misturadas ao sangue que escorria dos cantos de seus olhos. Eles ardiam, derretiam. Ele entendia, naquele instante, por que os oráculos eram cegos. Não era nada cirúrgico, não era escolha: era o preço inevitável de ver além do Véu.
     

    E ele viu.
     

    Os Reis Demônios.
    Azhagorr, que devorava sóis.
    N’Kharoth, que moldava cadáveres em colossos.
    Velyth, cuja voz espalhava pestes eternas.
    Gorr’Malthus, cujos espinhos atravessavam mundos.
    Zerathoth, o juiz de mil olhos.
    Ul’Shagar, que dilacerava realidades.
    Kaedryn, o príncipe do silêncio absoluto.
     

    E suas cortes, intermináveis, famintas, urrando e sussurrando promessas em sua alma. Eram incontáveis, roçando sua essência, disputando fragmentos dela como cães ao redor de ossos.
     

    O vazio abriu-se em sua mente, e nele algo entrou.
     

    O silêncio.

    A certeza.

    A vontade do Demiurgo.
     

    Rin ergueu-se na plataforma. Seus olhos haviam queimado, destruídos. Mas ele não precisava mais deles. Havia visto os Reis Demônios, havia sentido suas cortes arranharem sua alma, e sobrevivera.
     

    Não havia arrependimento.
    Não havia dúvida.
    Agora, Rin era um recipiente.
     

    O Barqueiro se curvou levemente, em reverência. Mais uma vez, seus olhos não carregavam escárnio.
     

    Rin tinha se quebrado, mas também se refeito.
    Agora, poderia servir à voz de algo maior.

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