Índice de Capítulo

    Os dias passaram, impiedosos e contínuos.
    Acordava cedo, o corpo pesado e os ossos grudados ao sono, e se atirava aos treinos com vontade total. Os músculos queimavam, tremiam, recusavam-se a obedecer, e os pulmões ardiam. Quando acabava, se voltava para os livros, estudando até os olhos latejarem e a cabeça doer. Mas a pausa era breve: mal a dor diminuía, já era hora de se entregar à Aedena novamente. Cada sessão era um combate silencioso; a mestra a empurrava sem piedade, moldando corpo e mente com firmeza e precisão, como quem dobra metal quente.
     

    O corpo começava a mostrar sinais de mudança. Em um sparring, um colega maior tentou segurá-la. Lyra escapou do aperto, desviando com a velocidade de músculos que começavam a obedecer à vontade, e o lançou ao chão com uma torção de pulso que misturava força e técnica. O impacto ecoou pelo ar, vibrando nos ossos, enquanto a adrenalina queimava nas veias. Por um instante, um sorriso fugaz iluminou seu rosto, breve, infantil, que desapareceu quando Amir, o instrutor, a observou com uma mistura de surpresa e respeito contido. Aedena lhe avisara: não devia chamar atenção para suas habilidades.
     

    A mente também se moldava. Às vezes, pressentia pessoas antes que a porta do quarto se abrisse. Um arrepio na nuca a fazia virar a cabeça no instante exato em que um olhar hostil a buscava ou quando um golpe surgia sem aviso. E uma vez, um bastão de treino caído no chão retornou às suas mãos, como se obedecesse à sua vontade. Telecinese, ainda imperfeita, mas suficiente para que Aedena erguesse a sobrancelha em aprovação silenciosa, um gesto curto e pesado de significado.
     

    Apesar de tudo, tentava manter a rotina com seus colegas de dormitório. No fundo, eram uma equipe, frágil, ruidosa, mas presente. Para não se perder, Lyra recorria ao estado de serenidade, um refúgio mental que mantinha seus pensamentos focados e a afastava do que não importava.
     

    Mas Tyla não desistia de sondar:

    — Você anda estranha comigo… aconteceu alguma coisa?
     

    Lyra desviava. Um “nada demais”, um corte brusco de assunto, a voz curta, sem abrir espaço para perguntas. Mas a verdade latejava em silêncio no peito: ciúmes e uma grande incerteza. Empurrava esses sentimentos para as sombras, onde ninguém poderia tocá-los. Não tinha coragem de nomear o que sentia. Como poderia explicar para Tyla algo que nem mesmo entendia? Melhor fingir que nada havia mudado. Melhor deixar que o progresso no treinamento  falasse por ela.
     

    Cansada, Tyla começou a se aproximar mais de Peter, o tributo que ela havia beijado no luau. Lyra os viu, uma tarde, rindo juntos depois da aula. Peter inclinava-se para ouvir algo que Tyla dizia, e o brilho nos olhos dela era claro demais, íntimo demais. Antes que pudessem notar sua presença, Lyra virou o rosto e saiu.
    “É melhor assim…” tentou se convencer, embora a frase soasse frágil, quebradiça, uma tentativa inútil de colocar ordem na confusão dentro do peito.
     

    Naquela hora, seguiram todos  juntos para a aula da professora Nadine. Tyla lhe ofereceu um sorriso breve, leve, cheio de um carinho contido. O conteúdo continuava sendo Biologia de Feraethers, mas agora era mais que teoria. Pela primeira vez, a arena do ginásio seria sua sala de aula. Todos estavam empolgados.
     

    O prédio ainda guardava cicatrizes da fera amarela. As reformas tinham reerguido paredes e pintado fissuras, mas os corredores carregavam um ar de lugar remendado, com o cheiro recente de tinta e ferro soldado. Surpreendentemente, Calder não os guiou até a entrada principal. Seguiu pela esquerda, contornando a grande cúpula do ginásio. Depois de alguns metros, pararam diante de uma porta industrial larga, aberta como uma boca escura, convidando, ou desafiando, os alunos a entrar.
     

    No interior, alguns degraus levavam até uma arena menor que a principal, parecia nova, sem uso até aquele momento. Do lado da entrada, uma arquibancada simples, mas sólida, de concreto, podia abrigar umas cento e cinquenta pessoas. No centro daquela área, a professora Nadine aguardava. Acenou quando os recém-chegados entraram. Alguns alunos já ocupavam os assentos ou circulavam pelo espaço.
     

    Lyra e seus colegas desceram, juntando-se ao grupo. Nadine fez um gesto de apresentação.
     

    — Este é Luke, este é Brian — disse, apontando para dois veteranos postados ao seu lado. Ambos trajavam as armaduras de batalha do Domatorum, idênticas às que Lyra tinha visto no dia em que Logan liderara os treinos no ginásio. — Eles vão nos auxiliar na prática de hoje.
     

    Os dois veteranos abriram sorrisos amplos e amistosos. Pareciam duros, mas abertos à aproximação.
     

    Quando todos os alunos já estavam reunidos, a professora limpou a garganta. Sua voz ecoou firme pela arena.
     

    — Hoje teremos um jogo de ataque e defesa. A equipe vencedora permanece; a perdedora cede lugar à próxima.
     

    Ela fez uma pausa breve, percorrendo os rostos, contando mentalmente.
     

    — Vamos formar as equipes com dois dormitórios. Representantes, à frente, por favor.
     

    Assim se organizou o sorteio. Lyra acabou integrada à equipe formada pelos dormitórios oito e vinte e um, todos ali eram tributos.
     

    Nadine caminhou até um painel lateral e acionou uma sequência de comandos. O chão tremeu sob os pés. Paredes e plataformas emergiram com estrondo metálico, moldando uma fortaleza irregular, com corredores estreitos, passagens ocultas e pontos elevados de defesa.
     

    — Será um jogo de cerco — explicou. — Uma equipe defende a bandeira dentro da fortaleza por dez minutos, enquanto a outra ataca.
     

    Novo silêncio, a expectativa crescendo.
     

    — Na primeira metade, vocês usarão apenas suas feraethers, sem presença física. Na segunda, lutarão junto delas, empregando também as habilidades compartilhadas.

    Ela fechou o painel com um estalo seco.

    — Vamos começar.
     

    As equipes foram numeradas. A primeira e a segunda já se posicionaram nos extremos da arena. A equipe de Lyra recebeu o número cinco. Ainda teriam algum tempo para observar antes de serem chamados.
     

    Havia um espaço na extremidade de cada lado da arena reservado para as equipes. O grupo atacante, com quatorze domadores, ocupava o campo aberto, ajustando a respiração e trocando olhares rápidos entre si. Do outro lado, atrás da fortaleza mas ainda com boa visão do terreno, o time defensor, com treze domadores, também se posicionava. Lyra pôde ouvir um deles dizer:
     

    — Basta controlarmos os pontos de acesso…
     

    Um silêncio breve se impôs no ginásio, cortado apenas pelo zunido mecânico das paredes e plataformas móveis. Nadine levantou a mão, indicando o início.
     

    — Liberem as suas feraethers!
     

    O ar brilhou de imediato. Partículas douradas surgiram à frente dos domadores. Flutuaram até a arena para se condensar em suas feras. Era sempre um espetáculo que impressionava, ainda mais com todos fazendo isso juntos.
     

    Na equipe atacante, a primeira feraether a se manifestar foi um tipo de raposa de pelagem cinza-escura, olhos âmbar reluzentes. Seu dorso faiscava com centelhas, como se a cada passo acumulasse eletricidade. Logo ao lado dele, ergueu-se um inseto alado do tamanho de um gato, asas transparentes que reverberavam num tom agudo; gotas de ácido pingavam de suas mandíbulas serrilhadas.
     

    Um a um, as criaturas tomavam forma: um caranguejo de patas largas, coberto de placas metálicas que tilintavam ao se encaixar; uma serpente de escamas azuladas, o corpo marcado por luzes fracas que pulsavam em sincronia com o domador; um pássaro de plumagem dourada, pequeno mas veloz, que piava de forma estridente. Ao todo, catorze feras se alinharam diante da equipe atacante. Eram suas feraethers iniciais. Lyra lamentou ter perdido a data da escolha, seu kocka sentiu e reclamou em sua mente.
     

    Na fortaleza, os defensores evocavam as próprias companheiras. Uma ursa pequena que parecia de pelúcia, de pelo marrom denso, que se erguia nas patas traseiras com um rugido infantil. Um felino negro de olhos verdes, ágil, que já corria para tomar posição em uma varanda improvisada. Dois rapinantes de garras afiadas surgiram juntos, traçando círculos acima da bandeira central. Havia ainda um porco selvagem compacto, presas baixas, cujas patas batiam contra o chão produzindo faíscas.
     

    Lyra, sentada nas arquibancadas ao lado de seus colegas, inclinou-se para frente. A respiração dos tributos ao redor estava presa, quase ninguém piscava. Todos queriam ver as estratégias que seriam empregadas.
     

    — Interessante — murmurou Calder, sentado duas fileiras abaixo. — São muitas feras de impacto direto. Vai ser um massacre no início.
     

    Lyra não respondeu. Os olhos dela acompanhavam cada detalhe: a sincronia hesitante dos ataques, a postura dos defensores tentando aparentar segurança, mas traindo a tensão no modo como esfregavam as mãos ou mordiam os lábios.
     

    Nadine desceu alguns degraus, posicionando-se ao lado da arena.
     

    — Dez minutos. Comecem.
     

    O comando soou como um tiro de partida.
     

    A raposa cinzenta foi a primeira a avançar, disparando em linha reta. A eletricidade acumulada em sua pelagem se espalhava em pequenas fagulhas, deixando um rastro luminoso. Quase ao mesmo tempo, o inseto alado de asas translúcidas levantou voo, zumbindo alto, tentando sobrevoar os muros. O caranguejo metálico seguia logo atrás, arrastando suas garras pesadas, abrindo caminho pela frente.
     

    Os defensores reagiram rápido. O porco avançou, saindo da proteção dos muros em uma investida lateral, encontrando a raposa no meio da corrida. O choque levantou sangue. O felino negro saltou das plataformas, mirando o pássaro dourado atacante que tentava ganhar altura.
     

    — outro que abandona a defesa para partir para o ataque — murmurou Calder, atento.
     

    Nas arquibancadas, alguns alunos prenderam a respiração. Lyra sentiu um arrepio ao notar o nível de concentração dos domadores em ação: olhos fechados, expressões tensas, foco absoluto. As feraethers moviam-se em resposta a comandos mentais, seus instintos animais domados à força. O jogo não era apenas de poder bruto, mas de controle, quem perdesse a mente, perdia o vínculo.
     

    A raposa, mesmo empurrada e ferida pelo porco, girou o corpo e mordeu a lateral do adversário. As faíscas elétricas se espalharam pelas patas do suíno, que recuou com um berro grave. O inseto alado mergulhou em seguida, cuspindo gotas de ácido sobre as pedras falsas da muralha. O material começou a corroer, mas o urso marrom apareceu de dentro, golpeando o inseto com a pata. O som da colisão foi seco; o inseto rodopiou no ar, perdeu equilíbrio, e se dissipou em partículas douradas. Seu domador praguejou.
     

    — Primeira baixa — comentou Nadine em voz alta. — Bom reflexo.
     

    O caranguejo metálico finalmente chegou à muralha, fincando as garras. Com esforço lento, começou a escalar, ignorando os golpes dos rapinantes que tentavam afugentá-lo. Cada bicada arrancava faíscas, mas o casco metálico aguentava.
     

    Dentro da fortaleza, dois domadores coordenaram suas feras juntos: a ursa e o felino. Enquanto a ursa atraía a atenção do caranguejo com golpes pesados, o felino deslizava pelas sombras, saltando em direção às patas traseiras do crustáceo. As garras do animal encontraram uma brecha entre as placas, e o caranguejo soltou um estalo de dor, liberando um sangue azul.
     

    — Estão coordenando — disse Brian, um dos veteranos ao lado de Nadine. — Não é comum em iniciantes.
     
    Lyra apertou os punhos, fascinada. O jogo de ataque e defesa se transformava diante de seus olhos em algo maior do que simples treino.
     

    Do outro lado, os atacantes não recuavam. A serpente azulada começou a deslizar pelo terreno, contornando a muralha. Seu corpo emitia um brilho pulsante, e quando alcançou uma fissura, escorregou por dentro. Alguns defensores tentaram reagir, mas a serpente já estava avançando pelas passagens estreitas em direção à bandeira.
     

    Um grito abafado escapou de um dos defensores, não de dor, mas de concentração perdida. O felino negro que o obedecia dissolveu-se em partículas após ser atingido, voltando ao núcleo. Lyra percebeu o erro: ele havia se distraído observando a serpente e perdeu o controle sobre o vínculo.
     

    O pássaro dourado atacante aproveitou a brecha. Num voo rápido, penetrou pela mesma abertura, seguindo a serpente. O combate dentro da fortaleza agora estava em duas frentes: a briga pesada junto aos muros, e a infiltração silenciosa que avançava pelas entranhas da estrutura.
     

    A ursa recuou mancando, chamando atenção demais. O caranguejo metálico, mesmo ferido, conseguiu fincar uma garra no topo da muralha, puxando-se para cima. Quando alcançou o parapeito, abriu as mandíbulas em um clique metálico, impondo sua presença no alto.
     

    A disputa estava no auge, e Nadine ergueu o braço, sinalizando os minutos restantes:
     

    — Cinco.
     

    O tempo apertava. Os defensores, mesmo com menor número, resistiam com disciplina. Mas a serpente e o pássaro já se aproximavam da bandeira. As feras que a guardavam, dois rapinantes menores, tentaram bloquear a passagem, mas a serpente enrolou-se em volta de um deles, esmagando com força suficiente para que a criatura se desfizesse em partículas. O outro, desesperado, mergulhou contra o pássaro dourado, mas foi tarde demais.
     

    O pássaro voou baixo, roçando as asas na bandeira presa ao pedestal. O contato era o suficiente: o tecido vibrou e o painel da arena acendeu em vermelho, indicando captura.
     

    Um rugido coletivo explodiu das arquibancadas. Uns vibravam, outros xingavam.
     

    — Ataque bem-sucedido — anunciou Nadine. — Equipe um vence a primeira rodada.
     

    As feraethers começaram a se dissolver, retornando aos núcleos de seus domadores. Restava no ar apenas a poeira dourada, que brilhava alguns segundos antes de sumir.
     

    Lyra se recostou no banco, sentindo o coração acelerar como se ela mesma tivesse participado.
     

    — Isso foi… — murmurou.
     

    — Real — completou um dos colegas ao lado, ainda boquiaberto.

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