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    Raphael estava sentado diante de uma mesa metálica, o frio do material não representava o calor que ele sentia por dentro. O relatório já havia sido entregue ao Arcebispo, e agora restava apenas esperar pela resposta oficial. O silêncio da sala era denso, quebrado apenas pelo tilintar distante de sinos e pelo som abafado de passos nos corredores da Arquidiocese.
     

    Alguns minutos depois, a porta se abriu. Caldway retornou, acompanhado por outro homem. Pelas vestes pretas e austeras, e pela faixa roxa sagrada que lhe cobria os olhos, Raphael reconheceu de imediato a figura de um dos oráculos.
     

    — Vossa santidade — disse o inquisidor, levantando-se de imediato, a reverência marcada no gesto.
     

    — Não vamos nos prender a formalidades, inquisidor Raphael. É assim que prefere ser chamado, não? — a voz do oráculo soou calma, mas havia dureza sob a superfície. Ele fez sinal para que o inquisidor se sentasse novamente.
     

    — Sim. — Raphael voltou ao assento, sem ousar levantar os olhos por muito tempo.
     

    — Você nos trouxe notícias preocupantes — disse Caldway, o Arcebispo, o tom grave reverberando pela sala. — Se entendi bem, deixamos que algo além do Véu se infiltrasse em nossa sociedade. De alguma forma, passou pelos campos de batalha e pela vigilância das Legiões. Agora espalha a palavra de um dos Reis Demônios, fortalecendo sua crença e subvertendo a ordem do Demiurgo com heresias da carne e da tecnologia. São capazes de infectar até mesmo calculadores.
     

    — Exatamente. — Raphael manteve o tom firme, mas sentiu a garganta secar. Colocado assim, os fatos faziam a espinha do inquisidor gelar.
     

    — Isso é, de fato, muito preocupante — comentou o oráculo. Sua voz era baixa, mas carregada de uma autoridade que não precisava ser afirmada. — Não sabemos a extensão dessa heresia. Não conhecemos seu plano. Esse tipo de manifestação raramente se limita a gangues ou contrabando. Revelar-se assim, de forma tão direta… é estranho.
     

    — Acredito que sua revelação foi acidental — ponderou Raphael. — Não creio que o assassinato de Jonas e da matriarca Elina tenha sido premeditado. Foi acaso. Estavam no lugar errado, no momento errado.
     

    O Arcebispo sustentou o olhar sobre ele, os olhos pesados, como se quisesse penetrar até a alma do inquisidor.
     

    — Não que eu esteja reclamando — disse, por fim. — Li o relatório do legista sobre ambas as mortes. Li o seu sobre a criatura robótica. Não consigo imaginar nenhuma situação em que você e suas matriarcas poderiam ter sobrevivido. — O tom traía uma preocupação que não conseguia esconder.
     

    O oráculo interveio antes que o silêncio se tornasse acusação.
     

    — Se pensa que ele está comprometido, não está. Nem ele, nem as matriarcas. Posso senti-los através da ligação que compartilham. Passaram juntos por provações de vida e morte. Não há mácula além do Véu.
     

    — Então como derrotaram a criatura? — a pergunta ficou suspensa no ar.
     

    — Sorte — respondeu Raphael. Havia algo escondido em sua voz. — Providência do Demiurgo.
     

    O oráculo apenas se virou para Raphael, prolongando o silêncio, por fim, continuou.
     

    — Sem essa sorte, não saberíamos o que enfrentamos. Seja grato, Caldway. — A voz do oráculo foi cortante, encerrando a dúvida. — A providência do Demiurgo está conosco, de fato.
     

    O Arcebispo baixou a cabeça a contragosto.
     

    — Precisamos de uma força-tarefa. Inquisidores, matriarcas, oráculos… talvez até uma Legião — disse o oráculo, em tom sereno, mas cada palavra pesava como sentença. — Vamos esquadrinhar todos que tiveram ligação com os hereges. E, se a coisa tiver saído de controle, purificações em massa podem ser necessárias. Até mesmo em escala planetária.
     

    Um arrepio percorreu a nuca de Raphael. Havia anos que não ouvia falar de medidas tão extremas. Sabia o que aquilo significava.
     

    — Temos registros de todas as remessas feitas pela “Mandu Transportes Planetários”, usada pela criatura — disse Raphael, tentando recuperar a firmeza. — Eu e Alina já estamos cruzando referências, investigando cada dado.
     

    O Arcebispo ergueu o rosto, estreitando os olhos ao perceber a escolha de palavras. Raphael havia se referido à sua matriarca pelo nome, não pelo título. A ligação entre eles estava ficando estreita demais.
     

    O oráculo, porém, pousou a mão sobre o braço do Arcebispo.
     

    — Deixe. Não há nada aí.
     

    Em seguida voltou-se para Raphael. Mesmo atrás da faixa sagrada, o inquisidor sentiu como se estivesse nu diante de um olhar que não precisava de olhos para ver.
     

    — Sei de sua fidelidade e da seriedade com que conduz sua missão. Sou grato por isso, verdadeiramente. Continuem investigando. Nós, daqui, faremos o mesmo. Manteremos contato. A velocidade será crucial para isolar essa heresia antes que crie raízes.
     

    Raphael assentiu em silêncio.
     

    — Vá, meu filho. Está dispensado.
     

    Levantou-se. As pernas estavam bambas, o peso da conversa ainda impregnado em sua carne. Sentia as costas molhadas de suor sob as roupas pesadas.
     

    — Ah, Raphael — disse o oráculo, antes que ele alcançasse a porta. — Você e suas matriarcas não deixem a estação. Podemos precisar de vocês a qualquer momento.
     

    O inquisidor apenas inclinou a cabeça em aceitação e saiu, levando consigo a sensação de que acabara de escapar de um julgamento que ainda nem sequer começara.
     



     

    Na arena lateral, a professora Nadine ergueu a voz:

    — Troca.
     

    Era o aviso para a entrada da equipe de Lyra. A formação atacante anterior havia falhado e, como regra, agora precisavam assumir sua posição.
     

    Lyra respirou fundo e se colocou entre Branth e Tyla. O suor escorria por suas palmas, colando os dedos. A ansiedade lhe percorria eriçando os pelos da nuca.
     

    A equipe que deixava a arena ao menos trazia uma vantagem: uma das feraethers defensoras havia sido abatida, forçada a retornar ao núcleo de seu domador para se recuperar. Não voltaria antes de alguns dias. A disputa agora seria equilibrada, treze contra treze.
     

    Diante deles, a fortaleza se erguia como um quebra-cabeça de possibilidades: eram três pontos de invasão. Um acesso pela esquerda, rente ao solo, lembrando a entrada de um fosso; a porta central, larga e reforçada; e, acima, uma sacada suspensa. O objetivo não era apenas vencer, era pensar, calcular, usar cada criatura no limite de suas capacidades.
     

    — Atenção — disse Nadine, firme. — Liberem suas feraethers.
     

    Lyra fechou os olhos, concentrou-se em seu kocka e o trouxe à arena. Ele surgiu rente à lateral esquerda. O que podia fazer? Ela esperaria os primeiros passos para rabiscar uma estratégia mental.
     

    Logo o espaço se encheu de presenças pulsantes. O canired de Tyla surgiu primeiro, coberto de escamas azuladas que refletiam a luz da arena. O falcoar de Calder desdobrou as asas prateadas com elegância, soltando um grito agudo que ecoou pelas arquibancadas. O garral de Imara, pequeno em estatura mas desmedido em fúria, avançava batendo as garras serrilhadas contra o chão como se desafiasse qualquer obstáculo. Kawa, o felino de Branth, deslizou com graça sua silhueta arredondada; Sava, o macaquinho inquieto de Russel, tremia de energia, sempre próximo de disparar em todas as direções; e Agudo, o porco-espinho de Kara, já eriçava os espinhos em antecipação, vibrando como se cada fibra de seu corpo estivesse à beira do ataque.
     

    Ao seu lado, a outra equipe atacante também chamava suas feraethers. Entre elas, destacou-se de imediato um crocodiliano de escamas enegrecidas, o corpo massivo arrastando-se com uma calma que não escondia a promessa de violência. Bastava olhá-lo para entender que não era uma criatura de muitos amigos.
     

    Lyra aprofundou o vínculo com seu kocka. Sentiu a areia nos pés dele, a tensão em seus músculos líquidos, a ânsia por agir. Aquela criatura era mais astuta do que qualquer instinto animal. Ela sabia que, em parte, estava lidando com uma vontade própria.
     

    — Ativando visão compartilhada — avisou Calder.
     

    Os olhos do falcoar brilharam, e sua percepção se abriu sobre todo o campo de batalha. Para os atacantes, era como ter a visão completa de tudo. Era fácil visualizar a movimentação de todos.
     

    Do lado da defesa, a estratégia era clara. Três criaturas-tanque bloqueavam as entradas, cada uma imóvel como muralha. Acima da fortaleza, uma coruja marrom voava em círculos. De repente, dividiu-se em duas réplicas idênticas, cada qual pousando em pontos distintos da muralha. Sentinelas alertas, prontas para avisar qualquer brecha.
     

    Entre os atacantes, os mais fortes avançaram primeiro. O crocodiliano de escamas escuras, dentes longos, impôs respeito apenas ao caminhar rumo à porta principal, alguns o seguiram de perto. O garral de Imara ergueu-se sobre as patas traseiras, agitando suas garras serrilhadas no ar antes ddê-se dirigir para o fosso.

    Lyra, sentindo a oportunidade, em silêncio, dissolveu seu kocka em lama, fazendo-o deslizar furtivo atrás do pequeno brutamontes.
     

    Na sacada, entre os defensores, um símio de ombros largos moldava blocos de pedra nas mãos, lançando-os em sequência. Era um “fuzilamento” nas criaturas que atacavam. O canired de Tyla usou seu corpo escamoso de escudo, absorvendo os impactos. O agudo de Kara disparava espinhos em resposta, forçando o macaco a esquivar-se sem parar, prejudicando sua precisão.
     

    No portão, o caos. O crocodilo avançava com brutalidade contra uma tartaruga colossal, que mantinha a passagem bloqueada. Sobre seu casco, uma centopeia metálica corria, desferindo cortes com mandíbulas de lâmina. O réptil parecia resistente, mas os outros atacantes já começavam a acumular feridas.
     

    Eram as corujas que ditavam o ritmo da defesa. A cada piado, redistribuíam forças, deslocando reservas. Calder, por sua vez, guiava os ofensores, mantendo o ataque organizado, sem pressa de se lançar em um último movimento.
     

    No fosso, o garral encontrou guardiões à altura: uma lagarta enorme, inchada e multicolorida, pingando um líquido corrosivo, e ao lado dela, um sapo verrugoso, de olhos amarelados.
     

    Quando o garral se aproximou, a lagarta cuspiu ácido. Ele saltou, atingido de raspão, mas transformou a dor em fúria. Rugiu e se atirou contra a criatura. No instante em que a alcançaria, o sapo abriu a bocarra e, com um estalo, prendeu-o na língua viscosa, engolindo-o inteiro.
     

    Foi a distração perfeita. Dissolvido em lama, o kocka esgueirou-se sem ser notado para dentro da passagem.

    Mas o garral não se deu por vencido. Dentro do sapo, urrou. Garras serrilhadas rasgaram a pele por dentro, emergindo pela barriga do animal. Ele abriu caminho na violência, mas também saiu mutilado, ossos expostos e carne corroída. Apenas raiva e determinação. Não houve tempo de reagir: a lagarta disparou outro jato, atingindo o que restava do sapo e o próprio garral.
     

    Ambos explodiram em fagulhas douradas, retornando aos núcleos.
     

    Imara urrava na arquibancada, as mãos transformadas em garras imaginárias, saliva escorrendo pelo canto da boca. Só se calou quando o vínculo foi rompido pela derrota.
     

    A luta não arrefeceu. Pelo contrário, cada minuto mais próximo do final aumentava a pressão sobre os dois lados. As corujas marrom mantinham-se em vigília, piando sempre que algum ponto da defesa vacilava. Era como se os olhos da fortaleza jamais piscassem.
     

    O kocka, no entanto, movia-se como uma sombra dentro da terra úmida do fosso. A cada passo, testava os limites de sua forma, até que decidiu arriscar. A lama começou a se erguer, moldando penas, asas e garras delicadas. Em segundos, a criatura havia se metamorfoseado em uma das próprias corujas defensoras.
     

    Ele subiu em voo curto, pousando no parapeito de pedra. Então, imitou o piado.
     

    O som ressoou alto, inconfundível, idêntico ao das verdadeiras sentinelas. O efeito foi imediato. Os defensores deslocaram-se em massa para reforçar o lado errado da fortaleza, obedecendo ao falso alarme. A muralha abriu brechas.
     

    — Agora! — gritou Calder.
     

    Tyla lançou o canired, que se fechou em uma bola e disparou, girando rapidamente, feroz, suas escamas ricocheteando estilhaços de pedra. Kara acompanhou, e o agudo espalhou saraivadas de espinhos, limpando o caminho. Ambos atravessaram a abertura e já estavam dentro do perímetro interno.
     

    Na mesma hora, um dos atacantes arriscou uma jogada ousada. Um insetoide de asas finas e corpo cintilante tomou altura, sobrevoando a confusão. Ele mirava a bandeira erguida no centro da fortaleza, em voo direto, rápido, quase triunfante.
     

    Mas o perigo invisível mostrou sua face. Do nada, uma fera voadora translúcida, até então imperceptível, investiu contra ele com uma bicada devastadora. O insetoide foi partido ao meio no ar, dissipando-se em fagulhas antes mesmo de alcançar o objetivo. O recado era claro: não havia atalhos. A bandeira só seria tomada com inteligência e sacrifício.
     

    O choque fez a disputa ganhar um tom desesperado. Criaturas se engalfinhavam no portão, presas no impasse. A sacada, parcialmente invadida, ainda cuspia pedras. Dentro, os corredores estreitos se enchiam de garras, presas e espinhos.
     

    E, enquanto todos se ocupavam do caos, o kocka manteve sua ilusão. Fingindo-se de coruja, voou para dentro, atravessando os pontos cegos da defesa. Chegou perto do mastro central. Ali, dissolveu as asas e retomou a forma amorfa de lama viva. Avançou rastejando, silencioso, enquanto a batalha rugia em torno.
     

    No último instante, quando a atenção estava voltada para o portão em colapso, o kocka deslizou pela base da bandeira e a envolveu em seu corpo líquido. A estática do vínculo percorreu Lyra como um raio.
     

    Ela ofegou, os olhos arregalados.
    — A bandeira… é nossa!
     

    Um clarão percorreu a arena, sinalizando o fim do combate.

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