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    Vida aguardava em uma sala hermética no interior do Matriacharum, na estação espacial, onde permaneciam isoladas enquanto se definia o rumo de suas ordens. Já fazia dois dias que ela e Alina não viam, nem sequer falavam, com Raphael. O silêncio e a ausência pesavam.
     

    Tinha sido interrogada sobre os acontecimentos em Tactur-2. Havia respondido com sinceridade: não se lembrava de nada. Essa falta de memória era, para ela, como uma sombra que não desaparecia.
     

    Alina descansava em um sofá estreito, trajando um pijama leve feito de tecido sintético. Estar livre da armadura, por um lado, era uma benção; por outro, para Vida, a ausência dela trazia desconforto. A armadura, o véu e até mesmo a máscara em produção eram mais que objetos, eram âncoras de identidade. Ultimamente, qualquer detalhe que reforçasse quem ela era se tornara essencial para não se perder.
     

    Sem perceber, Vida se abraçou, tentando conter a ansiedade.
     

    — A superiora vai nos receber mais tarde. Não se preocupe, Vida — disse Alina, a voz carregada de firmeza estudada, como quem sabia exatamente o tom reconfortante que devia usar. — Vamos descobrir o que está errado contigo.
     

    A mais nova olhou para a superiora e amiga, suspirando fundo. Queria acreditar, queria se agarrar àquela certeza, mas algo dentro dela dizia que o caminho seria mais difícil do que Alina deixava transparecer.
     

    Horas depois, já vestidas com seus mantos e máscaras usuais, percorreram os corredores austeros do complexo até a sala da Matriarca Bispal.
     

    O ambiente era simples e severo. Uma mesa antiga de madeira escura ocupava o centro, ladeada por um terminal de computador de linhas modernas. Na parede, o símbolo do Matriacharum repousava ao lado do emblema do Demiurgo, o olho que não dorme, sempre atento.
     

    Sobre a mesa, cuidadosamente disposta, estava uma nova máscara. Era belíssima: moldada com traços finos, adornada por detalhes e afrescos dourados que reluziam à luz fria do ambiente.
     

    Vida soltou um suspiro quase infantil, de surpresa.

    — É minha? — murmurou. — É linda… mas…
     

    — Mas? — perguntou a superiora, observando-a com interesse.
     

    — Não tenho permissão de usar detalhes dourados.
     

    A Matriarca Bispal tomou a máscara nas mãos enluvadas e a virou contra a luz, examinando-a como se fosse uma relíquia.

    — É, de fato, bela. Pegue — disse, oferecendo o objeto. — É sua.
     

    Vida hesitou, mas por fim estendeu as mãos e recebeu a máscara. O peso era diferente, simbólico.

    — Significa… o que estou pensando?
     

    — Sim. Você já pode operar sem supervisão. A partir de agora, usará o véu azul — confirmou a Matriarca Bispal.
     

    Vida engoliu em seco. Olhou para o lado, para Alina, buscando cumplicidade.

    — Você sabia?
     

    Alina sorriu por trás do véu, inclinando a cabeça.

    — É claro que sim. Eu mesma recomendei sua promoção. Queria que fosse uma surpresa.
     

    — E que surpresa… obrigada — respondeu Vida, emocionada, abraçando a companheira.
     

    O momento, no entanto, foi logo interrompido pela voz calma e firme da superiora.

    — Agora, sei que há outro assunto conosco. Qual é o problema?
     

    Vida respirou fundo e se adiantou. Não escondeu nada. Relatou as falhas de memória, os remédios antipsicóticos que vinha tomando, as doses de aether que a mantinham em equilíbrio, suas oscilações e até mesmo as angústias mais íntimas que a assombravam à noite. Não havia espaço para segredos ali.
     

    A Matriarca Bispal escutou em silêncio absoluto, sem qualquer interrupção. Seus dedos apenas tamborilavam o tampo da mesa, num compasso constante, como se marcassem o ritmo da confissão. Quando Vida terminou, o silêncio ainda permaneceu, denso, incômodo.
     

    Vida se inclinou um pouco à frente, quase pedindo uma resposta.
     

    A superiora tocou a tela do computador e começou a digitar. Passou alguns minutos em silêncio, os olhos fixos nas informações que surgiam diante dela. Vida percebeu o gesto de querer falar, mas antes que pudesse se pronunciar, Bispal levantou a mão, pedindo paciência.
     

    Vida se calou e esperou.
     

    Por fim, a superiora falou:

    — Bem. Existem algumas possibilidades. Algumas seriam simples de resolver… mas não acredito que seja o seu caso.
     

    Seus olhos se moveram para a espada de Vida, encostada ao lado da cadeira. O olhar foi tão incisivo que a jovem quase instintivamente quis escondê-la.
     

    — Me conte a história dessa espada — ordenou, a voz baixa, mas inescapável. — Desde o início.
     

    Vida sentiu o peso da ordem. Respirou fundo, o coração acelerado, e começou a contar. Lembrou-se da missão antes do Axioma Primordial, da seita dos Yeh’Isus, da mulher de meia-idade que brandia a arma com um fervor insano dentro da catedral do planeta agrícola. Contou como ela e Alina a haviam derrotado, e como a espada ficou sob sua posse desde sua vitória.
     

    Enquanto ouvia, a superiora mantinha o mesmo gesto de antes: os dedos tamborilando na madeira, secos e compassados. O coração treinado de Vida batia forte, mas não pela disciplina, e sim pelo medo.
     

    Ao final do relato, a Matriarca Bispal ergueu o olhar para as duas mulheres diante dela.
     

    — Existem registros de uma habilidade psíquica muito antiga — começou, a voz grave e cadenciada. — Extremamente rara. Eu mesma jamais vi com meus próprios olhos. Apenas ouvi sussurros, lembranças de uma era em que o Império ainda se erguia. Alguns poucos Praetorii, talvez escolhidos diretamente pelo Demiurgo… dizem que eram capazes disso. Hoje, caiu no reino das lendas.
     

    Fez uma pausa breve. O ar da sala pesava.
     

    — Mas há relatos — continuou. — De heréticos poderosos que despertaram essa técnica de forma natural, instintiva. Ainda que seja algo tão absurdo, tão contrário à razão, que mesmo diante de evidências, eu hesito em acreditar.
     

    As duas Matriarcas permaneceram em silêncio. Esperavam a conclusão.
     

    — Sequestro psíquico — disse por fim.
     

    Vida e Alina se entreolharam. Nenhuma das duas conhecia aquele termo.
     

    — É uma habilidade que permite a um psíquico inserir sua própria essência em outro ser… substituindo-o. Não apenas controlar, mas ocupar. Tomar. A vítima desaparece, e o invasor permanece, vivendo em sua pele. Há registros de que algumas hereges sobreviveram por séculos usando esse dom amaldiçoado. Entre os Yeh’Isus, dizia-se que era uma arma secreta, usada quando queriam preservar suas sacerdotisas mais antigas.
     

    Vida engasgou, a garganta seca. Alina tremia levemente.
     

    — Mas entendam — prosseguiu a Matriarca, firme — se vocês realmente tivessem cruzado com um desses monstros de eras passadas, não estariam aqui. Ela teria despedaçado vocês como se fossem de papel. E é aí que nada se encaixa.
     

    — Talvez seja… algo intermediário? — arriscou Vida, com voz contida. — Afinal, eu ainda sou eu.
     

    A Matriarca fechou os olhos por um instante, ponderando.
     

    — Talvez. De todo modo, precisamos ter certeza. Será necessário realizar uma busca psíquica em você. Se houver algo dentro da sua mente, não se deixará ser expulso sem luta. Peço que se entregue, Vida. Até a chegada das Matriarcas Papais, permanecerá sob custódia. Elas têm autoridade e poder para concluir o exame.
     

    Vida baixou a cabeça, resignada. A prisão era um preço pequeno diante da chance de se libertar daquilo que a ameaçava.
     

    Um botão foi acionado, e a porta se abriu. Duas figuras de véus vermelhos adentraram a sala. Matriarcas Cardinais, solenes e imponentes. Alina permaneceu imóvel, a mente um turbilhão. Vida, sem protestar, pegou a espada e a entregou nas mãos da companheira.
     

    — Cuide dela até que eu volte, está bem? — murmurou, a voz indicava que aceitava seu destino.
     

    — Conte comigo — respondeu Alina, firme, mas com o coração em nó.
     

    Vida se deixou levar, desaparecendo entre as guardiãs de vermelho.
     

    O silêncio se alongou. Então, a Matriarca Bispal voltou-se para Alina, o olhar como lâmina.
     

    — Agora, minha filha… me conte, com toda a verdade, qual é exatamente a sua relação com o inquisidor Raphael. O testemunho dele levantou certas dúvidas que não posso ignorar.
     

    **
     

    Os cabelos de Lyra pingavam, sua respiração ainda entrecortada. Estava caída sobre a areia fria da arena, sentindo o calor do corpo ser sugado pelo chão.
    Na disputa em que entraram pessoalmente para compartilhar os dons dos seus feraethers, o time havia ido bem… mas falhara no fim.

    Ainda assim, um sorriso largo se abriu em seu rosto. Conseguira usar a habilidade do kocka de absorver impacto em forma amorfa, mas em si mesma. Quando o golpe a atingira, seu corpo se deformara para conter a violência. Doeu tanto que quase perdeu os sentidos, mas não havia ossos quebrados.
     

    Um dos auxiliares de Nadine se aproximou e estendeu a mão.
     

    — Parabéns, Lyra. É Lyra mesmo, não é?
     

    — É sim — ela riu, aceitando a ajuda para se levantar. — Prazer.
     

    — Luke — disse ele, com um sorriso confiante.
     

    Era um rapaz atlético, dois anos mais velho talvez, cabelos escuros penteados para trás, olhos verdes profundos e sorriso perfeito.
     

    — Achei incrível o que você fez com o kocka. Usar algo visto como inútil para virar uma partida não é pouca coisa. E agora, na arena, sua criatividade com os poderes… fugiu do trivial de ataque e defesa. Isso mostra uma mente afiada. Parabéns.
     

    Lyra corou, sem saber como lidar com o elogio.
     

    — Obrigada… eu acho.
     

    — Vamos, Luke — chamou Nadine. — Precisamos preparar a próxima disputa.
     

    — Tenho que ir. Até logo, Lyra.
     

    Ele se afastou, mas não tirou os olhos dela até se ocupar com a nova partida.
     

    Na saída da arena, tudo o que Lyra queria era um banho.
     

    Já no vestiário, o cheiro de sabão e vapor preenchia o ar, e as garotas comentavam a aula.
     

    — Foi incrível mesmo — disse Kara, ensaboando os cabelos. — Meu agudo fez aquele macaquinho dançar.
     

    — E ele fez seu agudo chorar com as pedras — provocou Imara.
     

    Risos ecoaram.
     

    — Todos fomos bem — disse Lyra. — De verdade.
     

    — Mas quem roubou a cena foi você, Lyra — brincou Tyla. — Aquela manobra para enganar todos e pegar a bandeira foi genial.
     

    Lyra sorriu. Estava cada vez mais à vontade com Tyla. Quase não sentia mais ciúmes… ou ao menos, assim pensava.
     

    — O que vão fazer depois daqui? — perguntou Imara.
     

    — Refeitório — disse Kara. — Estou faminta.
     

    — Eu também — concordou Lyra.
     

    — Eu combinei de encontrar Peter… ele tem dúvidas em… — começou Tyla, mas Kara cortou, sarcástica:
     

    — Duvidas em Biologia, aposto.
     

    Todas riram. Tyla corou. Lyra apertou os punhos. Talvez o ciúme ainda estivesse lá, afinal. Mas então, lembrando do sorriso de Luke, relaxou.
     

    — Não somos como você e Russel — rebateu Tyla. — Pensamos em outras coisas além de namorar.
     

    — Eu sinto falta do Tyler… — murmurou Imara, fazendo beicinho.
     

    — Falando em Tyler… — disse Kara, com expressão maliciosa. — Como era que vocês… sabe… faziam?
     

    Imara ficou vermelha, mas respondeu com altivez:
     

    — Uma mágica jamais revela seus truques.
     

    Todas gargalharam. E assim, terminaram o banho e seguiram para o refeitório.
     

    Chegando ao refeitório, Lyra o viu de imediato, sem procurar.

    Luke estava sentado com dois colegas, conversando animado. As garotas pegaram suas bandejas, e Tyla logo se despediu para se juntar a Peter.
     

    Kara, Imara e Lyra seguiram até onde Calder, Russel e Branth já estavam. Mas antes de se sentar, uma voz atrás dela chamou:
     

    — Oi, Lyra. Quer se sentar comigo?
     

    Era Luke.
     

    Lyra olhou rapidamente para Tyla e Peter, depois voltou os olhos para o rapaz. Um meio sorriso lhe escapou.
     

    — Por que não?
     

    Sob os olhares curiosos dos ocupantes do dormitório oito, Lyra e Luke então se sentaram em uma das muitas mesas vazias ali.
     

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