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    Ao virar a página do dossiê, Alina ergueu os olhos para Raphael, sentado do outro lado da mesa. Ele parecia uma estátua: sério, corpo rígido, a mão percorrendo a testa com movimentos repetidos, como se buscasse clareza naquele gesto. Seus olhos devoravam cada linha de texto, impiedosos, como se esperassem encontrar algo escondido ali.

    — Estamos apenas revisando — comentou ela, tentando suavizar o peso nas costas dele. — Já não chegamos ao planeta que interessa?
     

    — Aham… — murmurou Raphael, entre os dentes, sem erguer a cabeça. A caneta riscou a margem do relatório em movimentos firmes, deixando pequenos blocos de anotações. — Quero ter certeza absoluta antes de levar isso ao Arcebispo. Se nossa situação fosse realmente boa, não estariam nos segurando aqui. Teriam nos liberado, ou nos dado outra missão.
     

    Alina ficou em silêncio. Ele tinha razão. Ainda que ele não soubesse da condição de Vida, assunto interno das Matriarcas, havia algo de errado em permanecerem ali, parados, sob vigilância velada.

    No fundo, ela entendia a lógica dos superiores: ela, Raphael e Vida haviam estado por tempo demais entre os hereges, seguindo pistas, infiltrados em lugares onde a fé se desfazia fácil. Muitas mentes frágeis teriam sucumbido. Mas não eles. Não Raphael. Não ela. A dúvida, no entanto, sempre rondava, e o isolamento apenas a tornava mais óbvia. Tinham liberdade, mas ela sabia que tudo o que faziam, era monitorado.
     

    Raphael, como sempre, se refugiava no trabalho. Decidira usar aquele tempo de espera para espremer até a última gota dos dados que tinham. E a obstinação dele tinha dado frutos: depois de pouco mais de um mês, haviam finalmente chegado a algo concreto.
     

    Nos arquivos que lhes restava em mãos,  deveria haver algum segredo. A “Mandu Transportes Planetários” operava em várias rotas, cobrindo uma rede extensa de mundos. A princípio, negócios legais, nada chamava atenção. Mas, com a chegada da Omnit Enterprises, algo havia mudado. O contrabando passou a correr por dentro da Mandu, oculto entre remessas comuns, insidioso, contaminando o que parecia normal.
     

    Com paciência e cruzando informações dispersas, descobriram um padrão: noventa por cento das entregas que envolvia a Omnit, sempre de forma indireta, terminavam no mesmo destino. E não era um planeta qualquer.
     

    Tartarus.
     

    Um mundo bastante isolado, administrado pelo Conselho das Legiões. Campo de treinamento de domadores imperiais. Laboratório vivo para pesquisa com feraethers e desenvolvimento de tecnologias. Um planeta cercado de segredos e, agora, manchado por suspeita.
     

    Era a terceira vez que revisavam aqueles dados, linha por linha. A cada releitura, a mesma certeza se impunha: não havia erro. Os heréticos tinham se infiltrado onde menos deveriam. No coração do Domatorum. O que restava descobrir era quais eram e até onde iam seus planos.
     

    Raphael fechou as pastas de repente, o estalo seco ecoando na sala silenciosa. Ajeitou os documentos com duas batidas contra a mesa e levantou-se, decidido.
     

    — Vou levar isso aos superiores. Ver se eles têm alguma informação para compartilhar.
     

    Alina apenas assentiu. Observou-o sair e fechar a porta, o som metálico da trava parecendo mais pesado do que deveria. Fechou os olhos por um instante e murmurou, quase sem voz:
     

    — Que o Demiurgo nos guie… vamos precisar.
     

    Depois se levantou também. Tinha outro objetivo em mente: notícias de Vida. As últimas informações diziam que as Matriarcas Cardinais  esperadas estavam prestes a chegar à estação. Talvez já estivessem ali, caminhando por aqueles mesmos corredores.
     



     

    Após esperar por algum tempo, O Arcebispo o recebeu em seu escritório. O cheiro de madeira velha, e incenso ainda era forte ali. O Arcebispo fez sinal para ele se sentar.

    — que as bênçãos do Demiurgo estejam contigo, Santidade — falou Raphael, fazendo o sinal dos três dedos.

    — Que estejam sempre conosco. O que traz você aqui, Inquisidor?

    Raphael colocou as pastas na mesa e empurrou na direção do Arcebispo.

    — eu acho que descobri algo importante sobre o culto herético do Axioma Primordial.

    O Arcebispo se apoiou na mesa, se aproximando. Raphael tinha ganhado sua atenção.

    — eu e a Matriarca Alina traçamos o destino da maior parte do contrabando. Exatamente o que foi contrabandeado, não conseguimos descobrir. Mas temos certeza de pra onde estavam indo.

    O Arcebispo continuou encarando, esperando a conclusão.

    — O planeta se chama Tartarus, onde fica o Domatorum do quadrante adjacente ao nosso. Um planeta controlado pelas legiões.

    — Impressionante… — murmurou o Arcebispo. — não imaginei que persistiriam. Julguei mal seu caráter. Parabéns, mas é uma notícia velha. Já tínhamos descoberto isso. Estávamos na verdade, decidindo o que fazer. As Legiões já foram avisadas.

    Raphael sentiu o corpo vacilar. Ele sentia que estava sendo testado, mas não sabia porque. Sequer sabia o que tinha feito de errado. O Arcebispo sentiu a mudança no inquisidor e sorriu.

    — não fique assim. Já estávamos prestes a liberar você e matriarca. Tínhamos ordens de observar e avaliar vocês. Principalmente por descobrir o potencial que os hereges tinham de infectar calculadores. Tínhamos que ter certeza que estavam limpos. — ele olhou na tela. — mais uma semana e estão livres para partir.

    Ele olhou para as pastas à sua frente, pensativo.

    — acho que tenho uma missão para vocês quando sua quarentena terminar. É justo vocês verem o final de tudo o que descobriram. É justo que façam parte desse fechamento também.

    Raphael balançou a cabeça, ansioso para se provar.

    — estou a disposição para o que precisar.

    — Avise sua matriarca. Estejam prontos para partir. A missão será de vocês.
     



     

    Bem longe dali, em uma imensa nave conhecida como Villagio, um dos secretários de Lady Aliah, terceira filha da Casa Sylaris, conduzia dois visitantes até a presença de sua patroa.
     

    O primeiro era um homem de pele escura, alto e esguio, os longos cabelos presos em tranças que desciam em dreadlocks até o meio das costas, reunidos em um rabo de cavalo. Um sorriso elegante, reforçado por um cavanhaque bem aparado, suavizava sua postura fria. Ambos os olhos haviam sido substituídos por próteses tecnológicas, capazes de alternar entre múltiplos espectros de visão, um recurso que lhe rendia respeito no submundo.
     

    A segunda visitante contrastava brutalmente com o primeiro. Mulher de cabelos curtos, raspados em estilo militar, tinha o corpo moldado pela violência: músculos rígidos, pescoço largo e um rosto de traços grosseiros, quase sem atrativos. Quase todo o seu corpo havia sido substituído, braços, pernas, e até a coluna vertebral reforçada por uma estrutura metálica exposta. Uma criatura de guerra, forjada para suportar e causar destruição.
     

    Quando entraram no jardim interno da nave, nenhum dos dois se deixou impressionar pela opulência do espaço, ou disfarçavam bem. O teto translúcido deixava passar feixes de luz artificial que alimentavam árvores ornamentais, fontes e esculturas em mármore. A mulher, porém, estalou a língua ao ver Lady Aliah os esperando, trajando um vestido translúcido que revelava mais do que escondia. O companheiro ergueu a mão, sutil, como quem ordena silêncio. O secretário notou o gesto, mas permaneceu em silêncio.
     

    — Lady Aliah, Herdeira — anunciou o secretário, fazendo uma reverência medida. — O senhor Fantasma e a senhorita Bulk estão aqui para vê-la.
     

    O homem negro avançou um passo, curvou-se brevemente. Não apreciava essas cerimônias, mas sabia jogar o jogo.
     

    Aliah indicou um banco de mármore ao lado de uma fonte, onde uma estátua de criança rechonchuda jorrava água em arco. Sentou-se com elegância estudada e acenou para que fizessem o mesmo.
     

    — Desejam algo para beber? — perguntou, a voz macia e insinuante.
     

    — Estamos aqui para negócios, herdeira, não para distrações — respondeu Fantasma de imediato, cortando a tentativa de amenizar o ambiente. — Por que razão deveríamos trair o acordo que firmamos com Syan? No nosso ramo, palavra vale mais que dinheiro.
     

    Aliah estreitou os olhos, mas manteve o sorriso. Gastara uma pequena fortuna para descobrir quem eram os mercenários contratados para recuperar a relíquia que Syan tinha descoberto. Aquilo não podia chegar às mãos do rival; era imperativo que fosse dela. Somente assim ganharia a confiança do pai e teria chance de ser nomeada Primeira Herdeira, enterrando de vez as pretensões de Syan, um bastardo sem direito legítimo de sangue.
     

    — Eu lhes darei dois motivos — disse, a voz mais baixa, carregada de convicção. — Primeiro: vocês estão aqui, não estão?

    A herdeira sorriu, eles já tinham lhe dado o benefício da dúvida, mesmo sem saber.
     

    — Segundo: Syan enxerga vocês apenas como ferramentas descartáveis. Eu, por outro lado, ofereço algo permanente. Não apenas pagamento, mas lugar de comando nos exércitos pessoais da Casa Sylaris. E títulos, para você, Fantasma, e para sua fiel braço direito.
     

    O silêncio que se seguiu foi pesado. Ambos se remexeram no banco. A oferta era generosa demais para ser ignorada.
     

    Fantasma manteve a expressão neutra, mas pensava rápido. Aquilo não era uma simples disputa entre nobres, era um jogo interno de sucessão. Escolher errado poderia significar a glória ou o abismo.
     

    Aliah inclinou-se levemente, percebendo a hesitação.
     

    — Syan pode até ser um dos favoritos de meu pai, mas não tem direito à herança. Eu sou a terceira filha legítima: tenho títulos próprios, posses fora do patrimônio comum da Casa. A ascensão dele depende inteiramente do sucesso desta missão; se não conseguir entregar a relíquia ao meu pai, está acabado. Eu, por outro lado, mesmo que a relíquia não venha parar nas minhas mãos, posso honrar as promessas que faço. Ele não. Para ele há apenas um caminho, para baixo.
     

    Aliah afastou uma mecha de cabelo, forçando uma pausa calculada, e retomou em voz baixa, controlada:
     

    — Ele se comprometeu com meu pai nessa entrega. Os planos do meu pai dependem disso. Se não trouxer o que quer, culpará Syan. E Syan, por sua vez, os culpará — falou lentamente, para que as palavras caíssem, uma a uma, criando raízes. — Eu, por outro lado, não me prendo a acordos com ninguém. Entregar a relíquia é um prêmio; não entregar também será vantajoso porque elimina Syan do tabuleiro. Em qualquer dos cenários eu ganho: cumpro minhas promessas com vocês e seguimos adiante.
     

    A tensão marcou os mercenários. Havia verdade na fala da herdeira. Bulk cerrou a mandíbula; o olhar dela voltou, por instinto, ao vestido translúcido de Aliah. Fantasma manteve a expressão impassível, mas os dedos tamborilaram na pedra fria do banco, traindo sua falsa tranquilidade.
     

    Aliah sorriu de leve, satisfeita, o medo versus a recompensa, um binômio que nunca falhava. Aproximou-se um pouco, fingindo que aquiescia com os olhares que Bulk lhe lançava, como se fossem parte do jogo.
     

    “Animais”, pensou, calma. Animais que em breve estariam sob sua rédea.

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