Capítulo 6: Responsabilidades
Lyra retirou o capacete e se sentou pesadamente à mesa improvisada do refeitório, inspirando o ar rarefeito de Glasurith como se precisasse provar que ainda estava viva. O cheiro metálico, a poeira carregada de partículas e a sensação de ar reciclado não a confortavam, mas ao menos não era o ar de lá debaixo. Estava enojada, mas era o que tinha.
Ergueu os olhos. O horizonte era um campo morto, quebrado apenas pelo crepúsculo púrpura que tingia o céu. Acima, dominando metade da abóbada celeste, o gigante gasoso que orbitavam impunha sua presença com um tom avermelhado e ciclópico. Impossível não se sentir pequena sob aquilo.
À sua volta, os outros homens da Casa faziam o mesmo. Retiravam os capacetes, afrouxavam as travas dos trajes, se deixavam cair em bancos, caixotes ou diretamente no chão. O refeitório havia virado um QG improvisado. E aquele era o momento de silêncio, entre o horror e a decisão.
Ciel se aproximou e se sentou ao seu lado.
— Quando aquele cara… o do altar… começou a falar, senti minha deformidade formigar — disse ele, com a voz hesitante.
Referia-se às marcas negras que surgiram em sua pele quando Lyra o salvou, dias antes. Marcas que ainda ninguém compreendia totalmente. Deformidades causadas por exposição excessiva ao aether.
Lyra olhou para ele, sentindo a exaustão nos músculos, mas tentando manter o tom firme.
— É só sua cabeça pregando peças — respondeu. — Eu usei uma dose de aether lá embaixo pra me acalmar, e não senti nada. Dentro da nossa tolerância, ele não causa dano imediato… tirando a dependência, claro.
Ciel assentiu, buscando conforto nas palavras da prima. Ela parecia saber o que estava fazendo. Era mais fácil acreditar nisso.
Do outro lado do refeitório, Rob e Saluh estavam a sós numa das mesas, conectando os sensores da nave de transporte ao sistema de comunicação de longa distância. Tentavam estabelecer contato com Caine, do outro lado da lua.
Lyra se levantou, ainda zonza, e se aproximou. Como se sua presença trouxesse sorte, a tela finalmente se acendeu. O rosto de Caine apareceu, austero e cansado.
— Qual é a situação? — perguntou, direto, com urgência na voz.
Rob e Saluh trocaram olhares breves, antes de responder.
— Eles foram expostos a uma alta concentração de aether. — Rob falou com firmeza. — Temos mutantes aqui. Eles já estão delirando… já estão na fase herética.
Lyra se sobressaltou. “Fase herética”? O modo como ele disse aquilo, com frieza clínica, indicava que esse tipo de coisa já havia acontecido antes. Existia até uma nomenclatura. E ela… ela nunca ouvira falar.
Caine baixou a cabeça, respirou fundo, depois ergueu os olhos para a tela. Sua voz era baixa, com um peso contido.
— É uma droga mesmo… eu conhecia pessoalmente os Martins e os Cobbs. Trabalhavam aí. Gente simples, honesta. Servos leais. Nunca imaginei esse fim pra eles.
Fez uma pausa e perguntou:
— Sobreviventes?
— Alguns — respondeu Saluh. — Ainda não inspecionei com detalhes, mas ficaram expostos por tempo demais. A chance de reversão é mínima. Mas… milagres existem, certo? Com a graça do Demiurgo.
Lyra sentiu o estômago virar.
Aquela frase, “com a graça do Demiurgo”, dita com um tom burocrático, mais parecia sarcasmo do que fé. E ouvir seus tios e pai falarem daquelas pessoas como números, como resíduos descartáveis, foi demais.
Ela se virou. Vomitou no chão. Não conseguiu segurar.
Varios dos homens olharam para ela. Deviam se sentir assim também.
Rob colocou a mão em seu ombro, ajudando-a a se erguer novamente, como se aquele gesto fosse suficiente para restaurar sua força. Ofereceu-lhe um lenço.
Mas quem falou foi Caine, pela tela.
— Lyra… não pense que não sentimos. A dor deles pesa sobre nós também. A merda já aconteceu. Não podemos voltar atrás. Só podemos evitar que se repita — disse com uma calma artificial, como se explicasse uma conta simples. Mas sua voz tremia. — Temos protocolos. Temos que acionar os superiores. O que aconteceu aqui é um erro grave. Pode nos custar tudo. As minas, o contrato… podemos ser rebaixados. Voltar pras plantações.
Rob reagiu com um estalo seco:
— Não! — cortou, firme. — Não vamos fazer nada disso. É uma mina pequena. Não vai impactar as cotas mensais. E Lyra descobriu um novo veio, perto do abismo. Aquele veio pode render mais que toda a cota do semestre. Temos a chance de resolver isso… sem chamar atenção.
Saluh ergueu o rosto.
— O que você está propondo, Rob?
— Que não acionemos ninguém. Que cuidemos disso entre nós. Ainda temos explosivos nos depósitos. Podemos selar tudo, enterrar o que restou e seguir em frente.
Lyra arregalou os olhos, sem fôlego.
— Mas e os sobreviventes? — protestou.
— Eles estão condenados — respondeu Rob, sem mudar o tom. — Não dá pra sobreviver sem mutações ou insanidade numa exposição como essa. Mesmo que voltem… não vão escapar da execução. Se os Sylaris vierem, os inquisidores virão juntos. Você sabe o que fazem com hereges. É o fim deles, de qualquer forma.
— Você não sabe disso! — insistiu Lyra, quase gritando.
Mas então sentiu a mão de Saluh tocar seu ombro. Gentil, mas firme.
— Sim, Lyra… ele sabe. Já aconteceu antes. Sabe como chegamos até aqui? — Ele encarou a garota nos olhos. — A Casa anterior a nós deixou uma mina grande se contaminar. Todos os mineiros foram levados pelos inquisidores. A Casa foi dissolvida. Varreu-se o nome da linhagem. É por isso que estamos aqui, ocupando o lugar deles.
Um silêncio pesado caiu sobre o grupo.
Não havia resposta. Nem consolo.
Só o eco de uma verdade dura demais para ser digerida.
Lyra olhou para o horizonte novamente. O céu ainda brilhava em tons púrpura, mas agora parecia mais escuro. O gigante gasoso seguia ali, como um olho cego, testemunha muda da tragédia.
E o tambor… mesmo distante, ainda parecia soar dentro dela.
Os braços e as pernas se recusavam a obedecer.
Lyra permanecia imóvel, ajoelhada próximo à entrada da mina, enquanto lágrimas silenciosas turvavam sua visão. Assistia, impotente, os homens se afastarem, um a um, saindo dos túneis escurecidos. Haviam instalado as últimas cargas de explosivos.
Ela entendia o porquê. Mas não aceitava. Não podia aceitar.
Ciel, sujo de poeira e suor, estava com a pá cravada no chão. Respirava com dificuldade. Havia passado a última hora cavando sepulturas ao lado de Saluh.
Infelizmente, a previsão se cumprira.
Os sobreviventes resgatados haviam piorado rápido. Muito rápido. Mera, a mulher que tomara do cantil de Rob, já não respondia a ninguém. O olhar estava vazio, completamente ausente. Espinhos ósseos surgiam por sua coluna como se algo dentro dela tentasse escapar.
Outros tremiam, balbuciando palavras desconexas. A pele começava a se romper em fissuras.
O fim deles veio rápido. E indolor.
Um tiro na nuca, cada um. Executados com precisão e sem hesitação.
Rob fez isso pessoalmente. Nenhum dos outros teve coragem.
Lyra queria gritar, queria impedir. Mas não gritou. E não impediu.
As palavras dele ecoavam em sua mente: “É minha responsabilidade.”
Era. E ele a carregava como um fardo que já conhecia bem demais.
Depois de enterrá-los, todos em covas rasas marcadas apenas por estacas de ferro o grupo retornou em silêncio para o transporte. O peso nos ombros era mais do que físico.
Lá dentro, sentaram-se sem trocar olhares. Alguns fecharam os olhos. Outros tremiam. Ninguém falava.
Quando os motores rugiram e a nave começou a se afastar, Rob quebrou o silêncio com apenas uma palavra:
— Fogo.
A ordem foi executada instantaneamente.
Pela escotilha lateral, Lyra observou. Uma sequência de explosões rasgou o solo da Mina 19. Labaredas subiram, seguidas por uma nuvem espessa de poeira e detritos. A estrutura tremeu, colapsando sobre si mesma, engolindo os horrores que havia gerado.
Um túmulo. Um segredo soterrado.
E, pela primeira vez desde que tudo começara…
O tambor estava silencioso.
A porta automática se abriu com um sussurro mecânico.
A Matriarca Zyab se virou lentamente, o véu escarlate oscilando em sua máscara perolada, e observou Lady Aliah sair da sala de interrogatórios.
O corpo dourado da herdeira reluzia sob a luz branca e asséptica do corredor, mas estava salpicado de sangue, especialmente nas mãos e antebraços. O contraste entre a pele reluzente e o vermelho já seco era grotesco. Mas Aliah sorria. Um sorriso satisfeito, infantil.
— Conseguiu o que queria? — perguntou Zyab, com a voz baixa, como uma navalha embainhada.
Aliah riu, com leveza.
— O que acha, Altíssima?
— Acho que você está muito acostumada a ter o que deseja.
O sorriso da herdeira oscilou, por um breve instante. Sentiu o peso do olhar da Matriarca. Desviou os olhos. Respondeu com um tom mais contido:
— Não está errada. Mas sim… consegui o nome que eu queria.
Zyab manteve-se em silêncio. Apenas esperava.
— Glasurith, — disse Aliah, finalmente. — O aether vem de lá.
A Matriarca repetiu o nome em voz baixa, como se o testasse na boca:
— Glasurith…
Havia algo familiar. Um fragmento de memória, talvez um relatório antigo, algo que não conseguia localizar de imediato.
— Uma lua pequena e insignificante, nos limites do Setor ômega — continuou Aliah. — Caipiras, famílias de mineradores, colônias esquecidas. Tenho certeza que você está confundindo com outro nome. A maioria confunde.
Zyab não respondeu. Seu silêncio era um julgamento em si.
— Qual é o plano agora? — indagou, finalmente.
— Vou apresentar os testemunhos dos prisioneiros, especialmente do líder, Wayne — respondeu Aliah, limpando distraidamente a mão com um lenço. — A Altíssima pode validar tudo, sob juramento. Temos provas o bastante. E então, executamos todos. Criminosos, hereges. Sob a benção do Demiurgo, é claro.
— É claro — repetiu Zyab, sem entonação. — E depois?
— Depois… vamos para Glasurith. Descobrir o que realmente está acontecendo por lá. O quanto estão envolvidos. Já enviei uma mensagem oficial.
A Matriarca ergueu uma sobrancelha.
— Avisou que vamos?
Aliah deu uma risadinha, quase musical.
— Não se preocupe. Eles esperam uma gratificação, afinal superaram todas as cotas de mineração nos últimos ciclos. Devem achar que vão receber medalhas. Não desconfiam de nada.
Zyab observou a herdeira por mais alguns segundos.
— Você gosta disso, não?
— Hum? — Aliah se virou, já preparando-se para sair.
— Desse jogo. De brincar com sua presa. De esticar a corda antes de enforcar.
Aliah pensou por um instante. Depois respondeu com doçura falsa:
— Talvez. Ou talvez só esteja fazendo o que é necessário.
Ela já virava o corpo, mas lançou uma última frase por cima do ombro, carregada de certeza:
— Esteja preparada, Matriarca. Teremos mais hereges para julgar em breve.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.