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    Os tablets de todos começaram a vibrar ao mesmo tempo, emitindo um zumbido em perfeita sincronia, como se tivessem ensaiado esse momento.

    Lyra estava entre os tributos no refeitório, distraída, o olhar perdido sobre o prato intocado à sua frente. Não estava com ânimo para lidar com mensagens ou comunicados, não depois de tantos dias tentando digerir a ausência repentina de Aedena.
     

    Luke, sentado à sua frente, fazia o possível para animá-la com conversas tolas e piadas que não iam a lugar algum. Ainda assim, quando o tablet vibrou em seu pulso, ele foi o primeiro a pegá-lo, curioso.
     

    — Caramba! — exclamou, erguendo o aparelho para mostrar a tela. — Daqui a duas horas o reitor quer todos reunidos no pátio central. Mudanças importantes, principalmente pros calouros.
     

    Lyra deu um pequeno sobressalto, voltando de seu torpor. O coração apertou. Rápida, olhou para o próprio tablet preso ao pulso, a notificação piscando na tela, iluminando seus olhos.
     

    Ela pressentiu que de alguma forma o anúncio tinha relação com a saída abrupta de Aedena. Sua mente relembrou do pequeno aparelho que lhe tinha sido entregue, e a voz dela ecoou em sua mente: “Acredito que isso tenha a ver com a chave mística que Rin te deixou”. Pelo menos, ela teria respostas, imaginava.
    Todas as atribulações, seu problema com Tyla, o treino com sua mestra, a adaptação ao kocka e as responsabilidades do Domatorum, tinham feito ela esquecer do garoto de cabelos prateados.
     

    Luke notou o brilho súbito nos olhos da garota e chegou a se animar. Sua “amiga… ou talvez namorada” — ele ainda não sabia bem como definir — havia andado tão abatida que aquele lampejo de reação o fez sorrir.
     

    — Bem — disse ela, forçando um sorriso tênue e dizendo mais para si mesma. — Acho que vou descobrir mais tarde como tudo isso se correlaciona.
     



     

    Quando o horário chegou, as primeiras luzes artificiais começaram a se acender sob o grande domo translúcido que protegia o Domatorum. Os primeiros sinais de neve se acumulavam lá fora, sinal da chegada do inverno.
     

    Um palco simples havia sido montado diante dos alojamentos, com um único microfone e amplificadores posicionados de forma improvisada. A multidão de tributos se aglomerava, envolta em murmúrios.

    Lyra estava com seu grupo: Tyla, Imara, Branth, Calder, Kara e Russel. O clima entre ela e Tyla havia melhorado desde a partida de Aedena, a sensação estranha e o ciúme dera lugar a um companheirismo silencioso. Mesmo assim, um nó persistia no estômago de Lyra.
     

    Calder pediu silêncio quando a imponente figura do reitor, Logan Crass, surgiu no palco. O homem, com seu porte duro e olhar estreito, parecia mais sério do que nunca. Parecia verdadeiramente incomodado.
    Ele pigarreou, lançou um olhar de cima a baixo sobre os estudantes e, sem rodeios, começou a falar:
     

    — Atenção. Quero dar alguns avisos importantes. Nosso planeta, como muitos sabem, está sob a jurisdição direta das Legiões Imperiais. Tudo o que fazemos aqui, desde seus estudos, sua formação e o manejo das feraethers, é supervisionado e financiado por elas.
     

    Um murmúrio coletivo se iniciou. Logan deu uma pausa para que assimilassem suas palavras, depois prosseguiu com voz firme:
     

    — E o que isso significa, vocês devem estar se perguntando. Significa que, a partir de amanhã cedo, quando as primeiras naves da flotilha chegarem, o planeta inteiro entrará em quarentena. Nenhum transporte sairá, nenhuma mensagem será enviada. Estaremos em confinamento até que as investigações sejam concluídas.
     

    Lyra sentiu o sangue gelar.

    “Ela sabia.” Aedena sabia disso. Por isso partira tão de repente, para evitar suspeitas, ou talvez algo pior.
     

    Logan continuou:
     

    — E não é só isso. Recebemos informações de que hereges perigosos estão agindo entre nós. A Igreja interceptou sinais de uma seita herética, ativa bem debaixo do meu nariz. Seus objetivos são desconhecidos, assim como suas identidades.
     

    Um silêncio denso e estranho caiu sobre o pátio. Então, Logan fez um gesto e dois novos personagens subiram ao palco.

    Um homem de meia-idade, vestindo um sobretudo de couro gasto, sobre uma armadura pessoal caminhava ao lado de uma matriarca envolta em um manto azul-marinho. Ambos irradiavam autoridade, e perigo.
     

    — Esse é o inquisidor Raphael Montéquio e a Matriarca Alina Veyne. Vieram à frente, estão cooperando com as legiões. Responder às suas perguntas e obedecer às suas ordens, a partir de agora, é lei neste lugar.
     

    Ao ouvir o nome da mulher, Lyra deu um passo atrás e quase caiu. Tyla a segurou de um lado, Russel do outro. A movimentação causou um pequeno alvoroço, e o olhar severo de Logan cortou o ar como uma lâmina.
     

    Ela sentiu o peso do olhar da Matriarca sobre si. Rezou ao Demiurgo para que o treino tivesse sido suficiente que sua mente estivesse verdadeiramente blindada, mas o estrago estava feito. Sua reação tinha chamado a atenção.
     

    Rápida, voltou à formação. Seu corpo tremia, e o suor escorria frio pelas têmporas. O foco absoluto estava em manter o vazio: mente isolada, pensamentos serenos, respiração contida. Ainda assim, a máscara da Matriarca ainda a encarava. Os buracos negros onde deveriam existir olhos pareciam sondá-la, tentando rasgar suas defesas. O coração de Lyra já não obedecia.
     

    “Ela é minha mãe, minha mãe!”
     

    Logan retomou seu discurso ao microfone, mas as palavras se dissolviam, como sons distantes debaixo d’água. Tudo ao redor se tornou abafado. O ar parecia denso demais para respirar. Tyla dizia algo, apertando-lhe a mão, mas Lyra não escutava. Sua consciência flutuava entre o medo, ansiedade e reconhecimento.
     

    No palco, a Matriarca ergueu a mão e fez um gesto breve para Raphael e Logan, que interrompeu a fala. Não romper as defesas da estranha garota  a estava intrigando. O silêncio caiu com peso. Talvez tivessem encontrado o que procuravam.
     

    Saltou do palco e avançou lentamente entre os tributos. O som do salto de suas botas no concreto do piso parecia ecoar direto dentro da cabeça de Lyra.
     

    Ali, incapaz de reagir, ela deixou escapar um ganido baixo. Estava verdadeiramente com medo, sem saber o que esperar desse encontro. Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto enquanto Tyla, sem entender, apenas a segurava firme, como se temesse que a amiga desabasse por completo.
     

    — Lyra, o que está acontecendo? Se acalme, pelo amor do Demiurgo! — sussurrou ela, em desespero.
     

    Mas a Matriarca já se aproximava, passo a passo, desembainhando duas adagas de lâminas negras que absorviam as luzes do domo. Raphael, em guarda, a alguns metros atrás, acompanhava com a arma em punho.
     

    Os tributos recuavam e davam passagem, assustados, até que restaram apenas Tyla e Lyra imóveis no centro.
     

    Alina parou a dois metros da garota. Sua voz ecoou clara, dura, autoritária:
     

    — Deixe-me entrar, garota.
     

    Lyra balançou a cabeça, incapaz de responder.
     

    A Matriarca avançou meio passo.

    — Eu disse: deixe-me entrar!
     

    Tyla apertou a mão da amiga, o coração disparado. Lyra, vencida, fechou os olhos e baixou suas defesas mentais.
     

    Antes que sentisse a invasão psíquica, formou uma única frase em pensamento e a lançou para dentro da mente da Matriarca:
     

    “Sou Lyra Veyne, sua filha.”
     

    O impacto foi imediato.
     

    A mulher estacou. Um leve tremor percorreu-lhe os ombros.
     

    Lyra sentiu uma torrente de emoções atravessá-la, surpresa, medo, reconhecimento, mas nada daquilo se refletia na postura impassível da Matriarca.
     

    “Vamos conversar depois, longe de olhos e ouvidos curiosos… minha filha.”
     

    Lyra sentiu a surpresa na mente da matriarca, e então, a pressão desapareceu. O ar voltou aos pulmões de Lyra num soluço trêmulo. As lágrimas continuaram a cair, mas agora sem som.
     

    Alina se virou, recomposta, e dirigiu-se novamente ao palco.
     

    — Não — disse, com frieza, para Raphael. — Ela não é uma das pessoas que estamos procurando.
     

    E sem mais uma palavra, a matriarca e o inquisidor voltaram para o palco, deixando Lyra imóvel, tremendo, entre a multidão silenciosa que olhava para ela e para Tyla.
     



     

    Depois do anúncio, os tributos estavam em polvorosa. A tensão do discurso havia se dissipado, transformando-se em uma euforia coletiva. Pelos corredores e no refeitório, grupos se formavam em torno das mesas, rindo alto, comentando teorias e fazendo planos. O som de talheres, passos e risadas ecoava pelo recinto, abafando qualquer resquício do medo inicial.
     

    A grande maioria tinha voltado ao refeitório para comemorar. As bandejas deslizavam no aparador do balcão, e o cheiro forte de comida quente misturava-se ao burburinho animado. O próprio Logan, logo depois do episódio com Lyra, havia retomado o microfone, com a voz firme e uma calma estudada, para justificar o chamado. Além dos avisos de do confinamento, explicara sobre uma condição meteorológica excepcional que o planeta Tartarus enfrentaria esse ano e, por conta disso, a tradicional caçada de feraethers seria adiantada em alguns meses.
     

    Os veteranos, empolgados, comentavam que iriam buscar feras de nível intermediário, criaturas fortes o suficiente para uso em guerra, enquanto os calouros, finalmente, teriam a chance de encontrar suas primeiras feras básicas.
     

    — Estão adiantando alguns meses — comentou Calder, mexendo a comida com o garfo, sem olhar para ninguém. — Era para sairmos em busca das feraethers só no início da primavera.
     

    — Pra mim tá ótimo assim — disse Kara, entre uma garfada e outra, o sorriso aberto. — Quanto mais cedo, melhor.
     

    — Ainda sequer acostumamos com as feras iniciais — lembrou Imara, arqueando as sobrancelhas. — Eu mesma me perdi na fúria do meu garral naquele treino em conjunto.
     

    Kara fez um som indeciso, concordando em parte. — É… tem isso também — murmurou.
     

    Russel riu, batendo levemente na mesa. — Vai ver é o jeito deles de separar quem aguenta da turma dos que desistem.
     

    As risadas se espalharam pelo grupo, até que Calder voltou o olhar para Lyra.
     

    — E você, o que acha disso, Lyra?
     

    Ela demorou alguns segundos para reagir. Estava ali, mas não estava. O barulho do refeitório parecia distante, abafado por uma névoa espessa de lembranças. A imagem da Matriarca ainda dançava em sua mente, aquele olhar escondido sob a máscara, o véu azul esvoaçante, sua imponência. Ela tinha sentido um pontada de carinho no pensamento dela, sim, tinha certeza que sentira.
     

    — Hã? — murmurou, piscando rápido, tentando focar no rosto de Calder.
     

    — A caçada — repetiu ele, sorrindo. — O que acha de já ter uma feraether básica?
     

    Lyra baixou o olhar. — Não sei… não pensei nisso ainda.
     
    O grupo trocou olhares, alguns riram de leve, mas havia algo na voz dela, uma nota tensa, distante, que calou o riso rápido.
     

    Tyla a observava em silêncio desde o início da conversa. Agora, levantou-se de súbito, o semblante decidido.
     

    Pegou a mão da amiga e a puxou, obrigando-a a levantar. — Venha comigo. Já deu, Lyra. — A voz dela era firme, mas havia preocupação no tom. — Vai me contar o que está acontecendo. E é agora!
     



     

    Não muito longe dali, Helena Sylaris recebeu a mensagem que esperava, um alerta discreto vindo de sua tia, Lady Aliah. O visor do comunicador vibrou uma vez, frio; a tela exibiu o texto curto e cortante:
     

    “Prepare-se. No dia da caçada das feras, inscreva-se no setor B-33. Um grupo meu irá encontrá-la. Mantenha os olhos neles por mim, depois de cumprirem minha missão, use-os para se vingar da garota Veyne.”
     

    Junto à mensagem, um recibo de depósito: uma soma de créditos imperiais fora depositado na conta oculta de Helena, dinheiro suficiente para corromper guardas, subornar pilotos e comprar o silêncio de quem fosse preciso. E um segundo recado: o envio de um dispositivo do tamanho de uma unha, um rastreador discreto que Aliah já tinha enviado e já devia estar disponível para retirada. A garota poderia manter seus inimigos sob vigilância constante.
     

    Helena leu, sorriu sem muita alegria e tocou o rosto onde Lyra a havia quebrado. Sentiu o prazer frio da conspiração subir pelo corpo. Guardou o aparelho sob o forro do casaco e confirmou para Aliah com um único comando curto no visor: Recebido.
     

    A vingança, pensou, deixaria de ser apenas ideia. Seria metódica, limpa, e ninguém suspeitaria dela.

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