Capítulo 59: Mudança de planos
A porta do apartamento funcional se abriu, e Aedena entrou em silêncio. Usava uma toalha branca para enxugar o rosto e a nuca, ainda úmidos do treino intenso com Lyra. O corpo quente pulsava no ritmo de seu batimento, sob a roupa justa, e ela respirava fundo, controlando o ritmo antes de entrar.
Já faziam pouco mais de três meses desde que iniciara aquele regime contínuo, e o progresso da garota era, sem dúvida, espetacular. Lyra tinha excelente coordenação, reflexos apurados e uma adaptação quase instintiva ao desconforto, uma característica rara até entre soldados veteranos. Tudo o que Aedena lhe impunha, o corpo respondia, aprendia e superava com uma velocidade estonteante. Seria aquilo resultado de sua constituição especial? Aedena não sabia ao certo, mas era bom. Em apenas três meses, parecia ter treinado a garota por mais de um ano inteiro.
Agora, a menina já dominava a percepção de perigo e a leitura de intenções dirigidas a si; sentia a presença de organismos vivos com precisão; erguia barreiras mentais firmes e flexíveis; e já manifestava formas básicas de telecinese. Estavam também aprimorando sua imposição de voz, um talento ainda bruto, mas promissor.
Fora isso, Aedena se certificara de que Lyra memorizasse o essencial das artes marciais ensinadas por Paul Zachary. Ainda havia um longo caminho pela frente, mas as bases estavam solidamente plantadas. Bastava disciplina, e tempo.
Depois de respirar fundo, Aedena retomou seu ritual de rotina. Passou os dedos sob as bordas do espelho, verificou as frestas da janela, inspecionou a luminária, os rodapés, e por fim a tomada próxima à cama. Só quando teve certeza de que não havia câmeras nem escutas, relaxou o ombro e se dirigiu ao painel lateral do armário. De lá, deslizou um compartimento oculto e retirou uma pequena caixa metálica, de aparência antiga.
Na semana anterior, havia mexido nela quase por impulso. Sua verdadeira missão ali, no Domatorum, seguia em segundo plano: a 4ª Legião a enviara para rastrear indícios de uma relíquia perdida, escondida em algum ponto do planeta. O comunicador ficara meses em silêncio absoluto, até a mensagem inesperada que chegara dias atrás.
“A missão talvez esteja comprometida. Fique atenta para mais informações.”
Aedena mordeu o lábio inferior, pensativa. Lyra ainda precisava dela. Era cedo demais para abandonar o posto.
Abriu a caixa. O comunicador, marcado com o emblema prateado da 4ª Legião, piscava discretamente. Uma nova mensagem. Seus olhos correram sobre as palavras e sentiu o coração bater mais forte.
“Temos um problema. A missão corre perigo, assim como você. Resuma seus trabalhos e desapareça. As Legiões vão fechar o planeta. Um Inquisidor e uma Matriarca estão a caminho. Seu disfarce corre risco. Você tem uma ou duas semanas, no máximo.”
— Droga… — sussurrou entre os dentes.
Guardou o aparelho com um movimento brusco, depois retirou de dentro da caixa um pequeno sensor de dados e o deixou em cima da mesa. Fechou tudo de novo, com precisão cirúrgica.
Puxou uma mala, colocou-a sobre a cama e começou a empilhar as roupas com gestos automáticos. Cada dobra era um lembrete do que precisaria deixar para trás, rotina, o disfarce, a aluna.
Foi até o banheiro e ligou o chuveiro. A água quente caiu sobre os ombros tensos, levando o suor, mas não o peso que sentia no peito. Amanhã seria o último dia de Lyra sob sua tutela direta. Precisaria deixar o regime de treinos pronto, sistematizado, previsível.
Depois disso, a garota estaria por conta própria.
Pelo menos, por enquanto.
Longe dali, Alina observava a estação espacial tornar-se um ponto distante, engolido pelo negrume do espaço. Apertou os punhos com força, como se o gesto pudesse conter o incômodo que sentia. Desta vez, a viagem seria apenas ela e Raphael. Vida ficara sob a supervisão do matriacharum, e até o momento, ninguém havia chegado a uma conclusão sobre a natureza de seus sintomas.
Alina não queria tê-la deixado para trás. Apegara-se à jovem, e, em momentos mais íntimos, cogitava se ela e sua própria filha que não tinha conhecido não seriam parecidas. Havia algo reconfortante naquele papel de mentora, uma sensação quase maternal que, para sua surpresa, lhe trazia um tipo estranho de paz.
— Pensando em Vida? — perguntou Raphael, sem desviar o olhar do visor.
— Não tenho como negar — respondeu ela. — Estou preocupada com o que está acontecendo com ela.
— Não estou em posição de dizer nada — disse ele, em tom contido. — Tenha fé.
— Eu tenho sim — encerrou ela o assunto com serenidade. — Qual é a missão agora?
Raphael lançou um olhar breve aos pilotos que ajustavam as coordenadas da viagem, como se aquele simples movimento o ajudasse a organizar os próprios pensamentos.
— Estamos na mesma missão, Alina — ou melhor, na conclusão dela.
Ela inclinou levemente a cabeça, o suficiente para convidá-lo a continuar.
— Os rastros que descobrimos nos levam até Tartarus — explicou ele, — o planeta-escola dos domadores desse quadrante. O território está sob controle direto da Legião.
— E eles vão permitir que uma Matriarca e um Inquisidor se envolvam nos assuntos deles? — questionou Alina, arqueando a sobrancelha.
— Desde quando não detectaram a heresia debaixo de seus narizes não têm muito como se opor — respondeu Raphael, firme. — Seremos os olhos da Igreja lá dentro. Um de nossos papéis é descobrir se houve alguma facilitação.
— Vamos ser hostilizados — afirmou ela, sem rodeios.
— Somos adultos — replicou ele, com um meio sorriso. — E vamos ignorar isso.
Alina respirou fundo, assentindo.
— Tem razão. Vamos direto para lá?
— Não. Vamos primeiro para um posto da Legião, de lá, eles vão partir, em uma flotilha, para fechar o planeta. Prepare-se, em alguns dias estaremos sob o cuidado deles, e dançaremos sob a música deles.
— entendido. Estarei preparada.
Ainda alheios a tudo o que estava prestes a cair sobre suas cabeças, Aedena entregava os documentos de dispensa a Logan Crass.
Ele se recostou na cadeira, apoiando-se na mesa com um suspiro lento. Entre uma baforada de charuto, a fumaça desenhava redemoinhos sobre a luz branca do escritório.
— Tem certeza disso? — perguntou ele, a voz grave e cansada.
— Absoluta. É um problema familiar que preciso resolver imediatamente. — Aedena manteve o olhar firme. — Não me peça para ficar.
— É uma pena — respondeu Logan, soltando mais uma baforada. — Este período tivemos o menor índice de alunos que não formaram seus núcleos aethéricos. Realmente uma pena.
Folheou o pedido de dispensa com seus dedos metálicos, o som mecânico misturando-se ao zumbido do ar-condicionado.
— Vejo que já se antecipou e reservou saída em uma nave de mantimentos.
— Sim, tenho pressa — disse ela, indicando a mala ao lado da porta com um leve movimento de queixo. — Só preciso me despedir…
— Da garota Veyne, não? — interrompeu ele, arqueando a sobrancelha. — Já imaginava.
Aedena respirou fundo antes de responder.
— De fato, me apeguei a ela. É uma pena não poder concluir o treino.
— A habilidade dela está estável, não? — perguntou Logan, com um meio sorriso. — Isso é o que importa.
— Está sim… — admitiu Aedena, desviando o olhar. — Ela é muito talentosa.
— Esse é meu medo.
Logan apagou o charuto no cinzeiro e se levantou, estendendo a mão.
— Fez um bom trabalho, professora Medini. Se um dia quiser voltar, seu lugar estará garantido.
— Obrigada — respondeu ela, apertando a mão dele com firmeza.
E com isso, Aedena pegou sua bagagem e saiu, deixando Logan Crass sozinho, olhando por alguns segundos para a fumaça que ainda pairava no ar.
Ela caminhou pelos corredores silenciosos do Domatorum. Cada passo ecoava como um lembrete de que algo se encerrava ali. Consultou o tablet preso ao pulso, Lyra estava em aula com o professor Stuart.
Aedena parou diante da porta e bateu levemente antes de se inclinar para dentro.
— Com licença, professor — disse com sua voz melodiosa. — Preciso falar com Lyra Veyne.
O professor Stuart, um Calculador notório por sua impaciência, ergueu os olhos. As sinapses brilhavam sob a pele da testa, num ritmo irregular, denunciando irritação.
Ele demorou um instante para localizar a aluna, a garota de cabelos escuros e sardas douradas, discreta no fundo da sala. O olhar dele foi seco, impaciente, mas permissivo.
“Vá logo”, dizia o silêncio.
Lyra levantou-se, corando sob os olhares curiosos dos colegas, e seguiu a professora até o corredor.
— O que…
Aedena colocou um dedo nos lábios da garota. O gesto bastou. Lyra reconheceu imediatamente o tom grave no olhar da mestra. Algo estava errado.
Sem dizer mais nada, Aedena a puxou pelo pulso e a levou até um pequeno armário de zeladoria. Assim que fechou a porta atrás delas, abraçou Lyra com força, num gesto abrupto, quase desesperado.
— O que está acontecendo? — perguntou Lyra, a voz tremendo.
— Tenho que ir embora, Lyra.
— Por quê?
— Porque sim. — Aedena respirou fundo. — Você sabe quem eu sou, ou pelo menos parte disso. E este lugar vai se tornar muito perigoso para mim. Tenho que ir. Agora.
Lyra arregalou os olhos. As palavras se dissolveram antes de saírem. Lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto, e ela cobriu a boca com a mão, tentando conter o som.
— Não se preocupe — disse Aedena com ternura, pousando a mão na cabeça dela. — Temos uma ligação, e sempre vou te encontrar. Cor pungens.
— Cor cogitans, — sussurrou Lyra, com a voz embargada. — Minha mestra.
— Tome cuidado, Lyra. — Aedena retirou um pequeno dispositivo prateado do bolso e o colocou na mão da aluna. — Não mostre suas habilidades. Principalmente nos tempos que virão. Esse aparelho vai revelar algo escondido aqui, no planeta uma relíquia. Quando sair do complexo, leve-o contigo. Tenho certeza que está ligado à chave mística que Rin te deixou antes de partir.
Lyra apenas assentiu, sem entender metade do que ouvia. A cabeça parecia pesada demais para processar.
— Continue praticando — disse Aedena, com um sorriso que tentava disfarçar o pesar. Tocou-lhe a testa com os lábios. — Na próxima vez que nos virmos, vou saber se você relaxou no treino.
As lágrimas de Lyra voltaram a cair, turvando sua visão. Queria memorizar o rosto da professora, mas já não conseguia focar.
Aedena inclinou-se e encostou brevemente os lábios nos dela. Um gesto de despedida, de afeto puro, sem promessa, sem explicação, apenas conexão.
— Preciso ir — murmurou.
Abriu a porta e saiu, apressada, sem olhar para trás. Demorar não tornaria aquilo mais fácil.
Lyra permaneceu parada por um instante, o corpo imóvel como se o tempo houvesse parado junto com ela. Então, lentamente, se deixou escorregar até o chão. Abraçou os próprios joelhos, encolhendo-se contra o frio metálico do piso, e chorou em silêncio, lágrimas de tristeza, mas também de gratidão.
Nunca, nem em seus sonhos mais distantes, imaginara ter uma mestra como Aedena. E por isso, mesmo entre a dor da despedida, sentia-se grata.
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