Índice de Capítulo

    Estavam em um galpão lateral ao enorme ginásio. Um espaço dividido por setores circulares, cada um marcado com um campo de segurança e sensores de impacto. O teto era alto e todo feito de vigas de aço, iluminado por uma luz forte vinda de holofotes acima, ofuscando os olhos. O som constante de motores, exoesqueletos e comandos mecânicos preenchia o ambiente, misturando-se com o cheiro adocicado de aether que supria as armaduras e respiradores.
     

    Lyra estava ali, de pé sobre uma das plataformas, observando os instrutores ajustarem os medidores de pressão da armadura que tinha recebido. Não era grande como as armaduras blindadas de um legado, mas eram maiores que ela pensava inicialmente. Um conjunto de placas de titânio leve, servomotores e condutores de aether.

    Em teoria era apenas abrir um espaço nas costas e “entrar” na armadura, usando o macacão multi-propósito imperial por baixo. Mas para a primeira utilização eram feitos dezenas de ajustes.

    Lyra se sentia como em uma lata de sardinhas.

    — Quando infundir ela de aether, vai melhorar a sensação — disse o técnico que estava acompanhando ela. — Vai responder de formas que você nem pode imaginar.

    Lyra balançou a cabeça. Esperava que sim, passou a mão sobre a placa do peitoral, sentindo o metal vibrar levemente sob o toque. A armadura viva, como os veteranos a chamavam, não era apenas uma ferramenta. Era uma extensão da vontade dos seus usuários.

    — Sistema vital online — anunciou uma voz sintética assim que Lyra ajustou o último conector em sua nuca.
    Uma fina névoa dourada escapou das juntas da armadura quando o circuito interno se fechou, envolvendo-a em uma aura etérea. Ela flexionou os dedos, e os servomotores responderam com um zumbido suave. Cada movimento era amplificado, cada impulso de pensamento era traduzido em força, velocidade, precisão.
     

    Tyla estava na baia logo ao lado, o visor do capacete semiaberto, os olhos cintilando com empolgação.

    — Impressionante, não é? — disse, testando o giro dos ombros. — Sinto como se pudesse quebrar uma parede com um soco.
     

    — Cuidado pra não testar essa teoria — respondeu Lyra, sorrindo.
     

    O técnico, um mecânico veterano de expressão severa, observava ambas as jovens através de um sensor translúcido que mostrava em tempo real os parâmetros de funcionamento do equipamento.

    — A armadura, desde que sintonizada, reage aos seus menores pensamentos. — explicou, projetando diagramas tridimensionais no ar. — Pensem nela como um segundo corpo, aliás é melhor se não pensarem nela de maneira nenhuma. Se duvidarem de si mesmos, ela falhará. Aether é vontade. A máquina só obedece quem sabe o que quer.
     

    Lyra ouviu aquilo com atenção. O eco das palavras a fazia lembrar de Aedena, e da constante lição que sua mestra lhe repetira: “Aether não é poder, é propósito.”
     

    Ela ergueu o braço e disparou um golpe no ar. As juntas da armadura se moveram num estalido, gerando uma onda de choque que deslocou poeira e partículas metálicas. Tyla aplaudiu, rindo.

    — Nada mal, Veyne. Está finalmente aprendendo a parecer perigosa.
     

    — Eu sempre fui perigosa — retrucou Lyra, arqueando uma sobrancelha.
     

    — Ah, claro. Perigosa como o seu kocka.
     

    Lyra sorriu, mesmo sem querer. — Meu kocka é especial.
     

    — É fofo, você quer dizer — corrigiu Tyla, dando uma leve piscadela. — Mas lá fora, na caçada, um “fofo” não vai salvar sua vida.
     

    Lyra sabia que era verdade. A missão que se aproximava, a Caçada das Feraethers, deveria ser o ápice do treinamento dos tributos. Cada um deveria sair para capturar sua primeira fera em um ambiente não controlado.
     

    Os grupos já discutiam as zonas para onde seriam designados. Cada setor de Tartarus possuía ecossistemas diferentes, e com eles, feras de diferentes níveis e temperamentos. Lyra se lembrava da projeção da esfera holográfica, mostrando o mapa detalhado do planeta dividido por coordenadas.
     

    — Eu vou escolher a Zona B-33 — anunciou Tyla, com brilho nos olhos. — Região glacial, noroeste de Tartarus. Clima extremo, feras grandes e fortes. Se eu quero algo que me melhore ofensivamente, é lá que eu vou achar.
     

    Lyra olhou para ela, surpresa.

    — B-33? Tyla, é uma das zonas mais instáveis. As feras lá… são colossais. E imprevisíveis.
     

    — Exatamente o tipo de desafio que eu quero. — Tyla deu um passo à frente, cruzando os braços. — Se eu vou arriscar minha vida, quero que seja por algo que valha a pena.
     

    — Isso é suicídio, não coragem.
     

    — Ah, então venha me proteger — provocou Tyla, com um meio sorriso, o tom brincalhão misturado a uma nota de desafio.
     

    Lyra mordeu o lábio inferior, o coração acelerando de leve. O olhar da amiga, firme e provocante, tinha o dom de bagunçar suas defesas.
     

    — Tá bem — respondeu, por fim, sem conseguir esconder o sorriso. — Eu vou.
     

    Tyla ergueu o queixo, satisfeita.
     

    — Sabia que não ia me deixar sozinha nessa.
     

    As duas se entreolharam por um instante que pareceu mais longo do que deveria, antes que o instrutor chamasse a atenção de todos novamente.
     

    — Tributos, sincronização final! — bradou. — Vamos começar o teste de resistência e controle!
     

    Um a um, os jovens se alinharam nos círculos energéticos. Lyra e Tyla ficaram lado a lado. O chão sob seus pés começou a vibrar quando todas armaduras foram ativadas ao mesmo tempo. Fluxos de energia subiram pelas pernas das armaduras, atravessando os corpos até os receptores cerebrais.
     

    O visor de Lyra acendeu, projetando informações em tempo real: Pulso vital estável. Saturação de aether: estável.
     

    Ela inspirou fundo e deixou a energia fluir. O metal parecia vivo, pulsando junto de seu coração.
    Ao seu lado, Tyla ria, concentrada e vibrante. Cada movimento dela era preciso, natural.
     

    O exercício começou: uma sequência de obstáculos mecânicos se ergueu do chão, plataformas móveis. A simulação exigia coordenação, velocidade e domínio total da armadura.
     

    Lyra se lançou para frente, os servomotores rugindo. O impacto de cada passo reverberava no metal. Saltou sobre uma coluna, girou o corpo no ar e aterrissou com firmeza. Tyla vinha logo atrás, movendo-se com uma elegância selvagem.
     

    Durante alguns minutos, o pátio se transformou em um balé de energia e aço. Quando o teste terminou, as duas estavam suadas, respirando pesado, mas com os olhos brilhando de satisfação.
     

    — Você foi ótima — disse Tyla, limpando o suor da testa.
     

    — Você também. Quase me passou no obstáculo de salto.
     

    — Quase, é a palavra-chave — respondeu Tyla, piscando.
     

    Ambas riram, e por um instante, o peso das responsabilidades futuras pareceu leve.
     

    Enquanto desligavam as armaduras e inseriam seus dados de travamento biométrico, a partir de agora os equipamentos iriam responder unicamente a elas, Tyla olhou de soslaio para Lyra, a expressão de carinho.

    — Ei… — começou, hesitante. — Como foi… com sua mãe?
     

    Lyra parou de mexer na armadura. O som do zumbido ambiente pareceu se afastar. Ela respirou fundo antes de responder.

    — Foi… — começou, buscando as palavras — Bom, mas diferente de tudo o que imaginei.
     

    Os olhos de Tyla a observavam com ternura, mas sem pressão.
     

    — Ela é real, Tyla. E é exatamente como eu esperava e completamente diferente ao mesmo tempo. Quando ela me abraçou… eu entendi o que é ser a filha de alguém. Tinha meus tios, mas é diferente…
     

    Tyla sorriu de leve.
     

    — Então valeu a pena.
     

    — Valeu — murmurou Lyra, olhando o chão, antes de erguer o olhar para a amiga. — E agora… preciso entender tudo isso.
     

    Tyla assentiu, aproximando-se o bastante para tocar o ombro dela.

    — Você já está bem melhor. Só ainda não percebeu.
     

    Lyra retribuiu o gesto, o toque metálico das luvas ecoando um tilintar suave. Ambas mais coradas que admitiriam.
     

    Do outro lado do pátio de treinamento, Helena Sylaris observava os demais tributos com um meio sorriso, o rosto parcialmente oculto pelo visor da armadura. Os movimentos dela eram elegantes, teatrais. O metal refletia a luz fria do teto destacando o brasão da Casa Sylaris gravado no ombro. Sua armadura tinha sido feita sob encomenda.
     

    Ela girou o pulso, testando o encaixe da manopla hidráulica. O som agudo dos servomotores ressoou como uma lâmina sendo puxada da bainha. Em volta, outros tributos riam, vibravam, competiam. Helena, porém, não via nada daquilo como empolgante. Para ela, o treinamento era apenas um palco, e, como todo palco, precisava de uma boa tragédia.
     

    Um mecânico se aproximou, um homem magro, sujo de graxa, com o rosto meio oculto por uma máscara de proteção.

    — Senhorita Sylaris — disse ele, fazendo uma leve reverência. — Consegui estabilizar o campo de compensação da sua armadura.
     

    Helena assentiu, mas o olhar dela desviou discretamente para o grupo mais adiante. Lá estavam Lyra e Tyla, testando as armaduras lado a lado, rindo. Rindo como se o mundo fosse seguro, como se nada pudesse lhes acontecer.
     

    Ela sentiu o gosto amargo daquilo subir pela garganta.
    “Rindo como se não precisassem me temer, como se os Sylaris fossem uma piada.”
     

    A voz de sua tia, Aliah, ecoava em sua mente como um lembrete constante: “Espere o momento certo. Faça parecer um acidente. Sem rastros.”
     

    Helena respirou fundo e, ainda olhando na direção de Lyra, fez um gesto sutil para o mecânico se aproximar mais. Ele obedeceu, inclinando-se sobre a armadura dela, fingindo checar os conectores do braço direito.
     

    — Está tudo certo? — murmurou ela, num tom baixo o suficiente para não ser captado por ninguém.
     

    O homem fingiu ajustar um encaixe e respondeu, sem levantar o olhar:

    — Está sim. Tudo conforme o combinado.
     

    — Quero que confirme. A cápsula de lançamento também.
     

    Ele hesitou por um segundo. O som dos testes dos equipamentos abafava as palavras, tornando o momento íntimo.

    — Agora que sei os dados de sua armadura, vou sabotar o processamento de aether. Quanto à cápsula, vou danificar os foguetes. Ela vai embarcar numa cápsula sem controles de estabilização.
     

    Helena cruzou os braços, os olhos frios.
     

    O mecânico ergueu o olhar por um instante, como se quisesse ter certeza de que ela realmente entendia o que estava pedindo.
     

    Helena, porém, apenas inclinou levemente a cabeça, o traço de um sorriso curvando os lábios.

    — Excelente — sussurrou.
     

    Enquanto o homem se afastava, ela manteve os olhos fixos em Lyra. A garota estava de capacete aberto, conversando animadamente com Tyla, o rosto iluminado pela empolgação juvenil que Helena desprezava tanto quanto invejava.
     

    Ela apertou os punhos, sentindo os servomotores reagirem com um estalo metálico.
     

    Lyra Veyne. A bastarda que tinha prejudicado sua tia, que tinha feito ela quase se tornar um tributo, que se recusava a se ajoelhar para seus superiores.
     

    A lembrança de como ela a tinha desafiado antes de partir seu rosto veio como uma onda. Seus ossos do rosto pareceram esquentar.
     

    Isso não ficaria impune.
     

    — Senhorita Sylaris, ajuste completo — informou o instrutor, sem perceber o que passava por trás dos olhos da garota. — A sua armadura está sincronizada. Pode iniciar o teste.
     

    Helena assentiu e ativou o modo de combate. A armadura pulsou, emitindo um brilho dourado. Ela se lançou à frente, girando o corpo, golpeando com precisão calculada. O som das placas metálicas se rearranjando eram musica aos seus ouvidos.
     

    A cada passada na pista de testes, o impacto reverberava no peito, satisfatório.

    “Eu sou uma herdeira da Casa Sylaris. E ninguém, nem mesmo uma Veyne bastarda, vai apagar isso.”
     

    O instrutor observava, impressionado.

    — Excelente performance. Coordenação perfeita.
     

    Helena desligou o sistema, respirando fundo.

    — Obrigada, senhor — respondeu num tom contido, respeitoso. Mas por dentro, a adrenalina era outra coisa. Uma corrente elétrica de antecipação, de promessa.
     

    Ela virou-se discretamente para observar de novo Lyra e Tyla. As duas ainda treinavam.

    “Riam agora.”
     

    O mecânico passou novamente por ela, discretamente, carregando um tablet com dados de calibração em direção à Lyra e Tyla. Helena fez um pequeno sinal com o olhar, um código silencioso que significava tudo confirmado.

    Ele assentiu.
     

    O plano estava em movimento.
     

    A sabotagem não chamaria atenção. Os sistemas das cápsulas eram independentes e selados. Pequenas falhas aconteciam o tempo todo em testes atmosféricos. Um problema de estabilização era plausível, até esperado. E se a garota caísse longe da zona de aterrisagem, ou mesmo despencasse do céu, seu desaparecimento seria tratado como uma fatalidade.
     

    Helena imaginou a cena, a cápsula girando, queimando, rompendo as nuvens de Tartarus até se despedaçar contra o solo congelado. Nenhum corpo. Nenhum vestígio.

    Apenas silêncio.
     

    Ela respirou fundo, saboreando a ideia.

    O ar dentro do capacete cheirava a couro e aether.
     

    Mas, por um momento, algo a incomodou, uma pontada breve de dúvida, de inquietação.
    Afinal, a voz de Aliah ressoava de novo, distante e incisiva:

    “falhe e te transformo num reles tributo.”
     

    Helena piscou, afastando o pensamento.

    — Não tenho nenhuma dúvida, vai dar certo — murmurou para si mesma.
     

    O visor refletiu o próprio rosto, frio, determinado, a sombra de uma herdeira moldada em ambição.
    Mas sob a superfície, um lampejo fugaz de insegurança surgiu.
     

    Logo ela ergueu o queixo, recuperando o controle.

    — Excelente, tudo sairá conforme o plano — repetiu, agora para si mesma, com um meio sorriso que não chegava aos olhos.
     

    Enquanto as sirenes marcavam o fim do treinamento, Lyra retirava o capacete, rindo junto de Tyla. A luz do pátio refletia nos cabelos de ambas. Por um instante, Helena quase admirou a naturalidade daquela amizade, e odiou-se por isso.

    — Vão pagar — murmurou, entre dentes. — Ô se vão…

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