Índice de Capítulo

    Três dias passaram depressa demais. Lyra estava ansiosa e se continha com o estado de serenidade, aprendido com Aedena, mas nem isso impedia a sensação incômoda no estômago, como se algo ali dentro tivesse afundado. Os últimos dias tinham sido uma mistura de cansaço, tensão e expectativas. A chegada súbita de sua mãe só deixara tudo mais confuso. Pena que Alina precisara sair do complexo dois dias antes, seguindo pistas de sua investigação.
     

    — Vejo você mais tarde — ela havia dito, num tom simples.
     

    A frase não significava muita coisa, mas para Lyra, bastava. A enchia de um conforto simples, como se o mundo não fosse tão complicado.
     

    Havia também o assunto com Tyla. Depois da distância e da reaproximação, as duas estavam se entendendo melhor, A rotina tinha impossibilitado que visse Luke, e no fundo se sentia aliviada por não ter de lidar com ele. Quanto a Tyla, a simples ideia de ela se afastar de Peter por um tempo deixava Lyra com uma tranquilidade que não era exatamente racional.
     

    E, para completar, seu kocka andava estranho. Mais inquieto, irritado e mais impaciente. Como se soubesse que logo deixaria de ser sua única feraether. Lyra havia tentado meditar com ele, acalmá-lo, mas era como se ele sentisse algo antes mesmo que ela percebesse.
     

    O estalo mecânico da armadura ao fechar trouxe Lyra de volta ao presente. O equipamento se moldava ao redor de seu corpo, e já se sentia a vontade ali dentro. Ela virou o rosto. Calder estava dois passos à frente, levantou um polegar coberto pelo metal escuro. Do outro lado, Tyla sorria sem esconder a ansiedade.
     

    — Prestem atenção, tributos — chamou uma voz.
     

    Um legado caminhava entre as fileiras. Usava uma farda preta com o brasão do Domatorum. Ele seria o responsável por despachá-los nos setores planetários escolhidos.
     

    — Já passaram pelos treinos — disse. — Agora é real. Nada de brincadeiras. Assim que entrarem, assumam seus lugares. Cada cápsula está registrada com seus dados e com o setor correspondente. Se entrarem na cápsula errada, só o Demiurgo vai saber onde vão parar.
     

    Branth riu, um riso tenso.
     

    Os motores de uma das naves próximas ganharam força, produzindo um ronco profundo que fazia o chão vibrar. Lyra poderia ouvir o som direto, mas seu capacete abafou quase tudo com um pensamento. A nave a duas baias dali começou a se erguer, lentamente. Girou no próprio eixo e avançou para a porta do hangar. Os mecânicos de solo precisaram se afastar depressa; o vento da propulsão fazia suas roupas e cabelos chicotearem. De dentro da armadura, não era incômodo, exceto a vibração sob os pés, suficiente para acelerar qualquer batimento cardíaco.
     

    A escotilha se abriu. O piloto sinalizou com um movimento seco.
     

    — Em formação! Entrem e tomem seus lugares!
     

    Os tributos avançaram. O interior da nave era apertado, com marcações no chão mostrando onde cada um deveria se posicionar. Lyra lembrava de sua posição. Assim que prendeu os pés na trava, paredes metálicas subiram com rapidez, montando as cápsulas ao redor deles. Lyra ouviu servo motores internos se ajustando, sentiu a vibração das placas de metal tomando forma. À sua frente, uma pequena escotilha revelava fragmentos do hangar enquanto os últimos tributos se fixavam.
     

    Ela sabia que Tyla estava a poucos metros dali, mas o ângulo impedia qualquer contato visual. O espaço à sua volta era claustrofóbico sem ser sufocante, projetado para manter alguém preso, imóvel, mas alerta.
     

    A porta da nave se fechou. A luz vermelha acendeu, tingindo a cabine com uma tonalidade que lembrava sangue. O chão tremeu, depois tremeu outra vez. A nave girou, ajustando a rota, e então acelerou, ganhando os céus.
     

    Ao sair da atmosfera veio a ausência de peso, Lyra sentiu o corpo flutuar dentro da armadura. Órbita baixa. Treinara aquilo, mas não havia como reproduzir fielmente a sensação. Sentiu vontade de olhar pela escotilha, mas tudo que via era a parede metálica e a fila ordenada de cápsulas, cada uma com seu destino.
     

    Então um primeiro estrondo.
     

    A vibração correu pela nave como um calafrio. Através da abertura estreita, Lyra viu chamas sendo expelidas, explosões de descarga. As primeiras cápsulas lançadas. O estômago dela contraiu. As mãos ficaram úmidas. Uma luz verde acendeu no interior da sua cápsula.
     

    Tinha chegado a hora.
     

    Manteve a respiração curta. Pensou em Tyla indo para o mesmo setor, e isso ajudou a dissolver sua tensão.
     

    O primeiro estalo veio acompanhado de um deslocamento súbito. A estrutura ao redor dela desceu alguns centímetros. Depois um clarão. Outro estrondo. E a cápsula se soltou.
     

    A visão pela escotilha se abriu: outra cápsula à frente, depois o planeta abaixo, um mosaico de verdes, marrons e nuvens densas. O impacto atmosférico veio como um soco. Tudo tremeu. Seus dentes bateram. O fogo engoliu a escotilha, obscurecendo qualquer referência.
     

    A vibração piorou. O visor embaçou. A cápsula vibrava de um jeito estranho, como se algo estivesse desalinhado ou danificado.
     

    Então emergiram das nuvens.
     

    O branco tomou tudo: neve, gelo, um horizonte pálido e irregular. A cápsula de Tyla estava próxima, talvez cinquenta metros. Estável.
     

    Lyra sentiu o primeiro tranco dos flaps de freio atmosféricos. Mas o som não era o esperado. Um estalo metálico agudo ecoou, mais alto que todos os outros. A cápsula sacudiu. Outra vibração anormal. Pela escotilha superior, Lyra viu uma rachadura se formando, fina no início, depois se espalhando como uma teia.
     

    Antes que pudesse reagir, o flap daquele lado se desprendeu. Um pedaço do teto se foi junto.
     

    A luz de emergência acendeu, seguida de uma sirene com um ritmo tão insistente que chegava a irritar. A cápsula perdeu qualquer estabilidade. Entrou em giro. Um giro rápido, violento. Lyra tentou estabilizar a respiração, mas o corpo era jogado contra a armadura. Via flashes do chão, pedaços de céu, neve, céu outra vez.
     

    Os propulsores de aterrissagem deveriam ter disparado logo após os flaps. Mas não dispararam.
     

    Ela ouviu a ignição tentando acionar, um clique seco. Depois outro. Depois nada. Era como se faltasse combustível. Lyra cerrou ainda mais os dentes.
     

    “Uma vez pode ser acidente, mas duas? Em dois sistemas diferentes…”
     
     

    A cápsula de Tyla ligou seus propulsores normalmente, mantendo a trajetória segura. A de Lyra, não. A distância entre elas aumentava a cada segundo, nisso Lyra sentiu que tinha sorte, se fosse de encontro a cápsula da amiga, a colisão mataria as duas.
     

    Lyra lambeu os lábios e forçou a mente a esquecer o desespero e lembrar do protocolo.

    As alavancas de emergência!

    Precisava acessá-las antes de girar mais. Forçou as manoplas da armadura contra os lacres internos. O metal cedeu no segundo empurrão. O chão se aproximava rápido demais.
     

    Puxou as alavancas.
     

    Os dois paraquedas se abriram, tarde demais para uma descida controlada. A cápsula sacudiu com brutalidade, mas a velocidade ainda era absurda.
     

    — Vou morrer — murmurou…
     

    Como se movido pelas palavras, o  kocka se agitou dentro do peito. Um rugido abafado no vínculo mental.
     

    “É isso”, pensou. Não exatamente resignada; mais consciente do risco. Se compartilhasse da habilidade de sua feraether teria uma chance.
     

    Abriu o fluxo de aether na armadura. Sentiu seus pulmões esquentaram e uma energia subir pelos braços. Não era muito, mas era o que podia fazer.
     

    — Meu amigo — disse, a voz baixa, quase sem som. — Vou usar o que temos. Se vai dar certo, não sei. Só espero que dê.
     

    Segurou firme nas manoplas. A cápsula descia como uma pedra mal guiada. O vento fazia tudo tremer. O chão branco parecia vir em sua direção como uma parede viva.
     

    Lyra respirou fundo, travou os dentes, ativou a habilidade de seu kocka.
     

    E começou a rezar.
     



     

    O clarão vermelho acendeu dentro da cápsula de Tyla, e o som oco do travamento ecoou pelo capacete. A nave vibrou sob seus pés enquanto mudava o eixo de voo. Tyla respirou fundo, tentando manter a atenção no pequeno retângulo de vidro à sua frente. A escotilha era minúscula, mas oferecia o suficiente para acompanhar o que acontecia lá fora.
     

    Quando as primeiras cápsulas foram disparadas, ela viu a de Lyra logo abaixo, alinhada com a dela. O coração apertou, mas era um aperto familiar, o peso de saber que agora era pra valer.
     

    A luz dentro da cápsula dela ficou verde.
     

    — Vamos, Lyra — murmurou, apertando o encaixe das mãos.
     

    Um estalo forte vibrou por toda a cápsula. A gravidade pareceu desaparecer e, num puxão seco, Tyla foi arremessada para baixo quando o módulo desacoplou. O corpo pesou. Depois, não pesou nada. A nave ficou para trás e o mundo virou fogo e trepidação.
     

    A reentrada cobriu a escotilha de luz laranja, e por alguns segundos Tyla não viu nada além de clarões e sombras. A vibração era tão intensa que seus dentes bateram contra o visor.
     

    O treinamento preparatório dizia que aquilo era normal. Nada confortável, mas normal.
     

    Quando o fogo finalmente se dissipou, ela abriu os olhos de vez e buscou a cápsula de Lyra.
     

    Encontrou.
     

    Estava a uns cinquenta metros, talvez um pouco mais. A distância não era exata, era difícil medir no meio da queda, mas era o suficiente para Tyla ver que as duas estavam na trajetória correta para o setor designado. Um campo branco se abriu abaixo delas, nuvens rasgadas pelo impacto dos flaps de freio atmosféricos.
     

    A cápsula de Tyla teve um baque forte quando os flaps se abriram, estabilizando o eixo da descida. O corpo dela foi puxado para frente, depois para trás, mas a cápsula recuperou o alinhamento em poucos segundos.
     

    Ela virou a cabeça instintivamente para tentar achar Lyra de novo.
     

    Achou, e o estômago gelou.
     

    A cápsula de Lyra tinha aberto apenas um flap.
     

    E então, no mesmo instante em que Tyla focou a visão, o flap se partiu. Não simplesmente se soltou: ele se partiu como se algo dentro da dobradiça tivesse estourado. Centelhas correram pela lateral da carcaça e um pedaço do teto da cápsula se desprendeu junto.
     

    — Não… não não não… — Tyla sentiu a garganta secar.
     

    A cápsula de Lyra entrou em um giro imediato. Não era um giro normal de correção. Era o giro de uma cápsula com pane mecânica, uma pane grave. O tipo que os instrutores diziam que nunca deveria acontecer porque todos os módulos passavam por verificação dupla.
     

    Tyla viu faíscas nos propulsores de pouso. O sistema tentava ligar e falhava. Tentava de novo. Nada.
     

    — Por que não está acendendo? Liga. Liga! — Tyla deu um soco involuntário na parede interna da cápsula.
     

    A voz dela sumiu dentro do capacete.
     

    A cápsula de Lyra girava tão rápido que por momentos só dava para ver o clarão do gelo refletindo no metal. A trajetória dela mudou, sendo jogada para fora da rota. Tyla controlou a própria respiração e acionou o visor da armadura para rastrear impactos visuais. Marcou a cápsula de Lyra com o comando manual, transformando a posição dela em um ponto móvel no minimapa interno.
     

    A cápsula de Tyla perdeu mais velocidade quando os propulsores entraram em ignição. A desaceleração apertou o peito dela, mas ela manteve o olhar firme na escotilha.
     

    A cápsula de Lyra não desacelerava.
     

    E, ainda assim, Tyla a viu tomar uma ação. Pequena, quase invisível no meio da queda: Lyra provavelmente iniciando o procedimento de emergência.
     

    Dois paraquedas explodiram atrás da cápsula avariada. Eles abriram, mas a velocidade era absurda. O metal da base vibrou como se fosse rasgar. O giro diminuiu um pouco, mas não o bastante para estar controlado.
     

    A cápsula estava indo longe demais. Muito longe. A trajetória desviava dezenas de metros, depois centenas. O ponto marcado no visor de Tyla se afastava tão rápido que o minimapa recalculava a todo instante.
     

    — Fica viva, Lyra. Fica viva… — ela sussurrou, com os dedos tão tensos na manopla que chegaram a doer.
     

    O impacto final de Tyla veio antes que ela pudesse ver o resultado.
     

    A cápsula dela tocou o solo, os amortecedores internos absorveram parte da força e, em seguida, os propulsores de ancoragem enterraram o casco no gelo. O baque fez o capacete vibrar, mas era um pouso normal.
     

    Não era como tinha sido de Lyra.
     

    Assim que o sistema liberou o travamento dos pés, Tyla ergueu o visor interno e puxou o mapa atualizado. O ponto marcado da queda de Lyra estava distante, muito fora do perímetro inicial. Uma área irregular, sem qualquer referência conhecida.
     

    Ela salvou a coordenada.
     

    Não sabia ao certo o que encontraria se fosse até lá. Não sabia se alguém sobreviveria a uma queda com dois paraquedas insuficientes e sem propulsores.
     

    Mas conhecia Lyra.
     

    Conhecia a força dela, a teimosia, e aquele olhar que nunca aceitava as coisas como estavam.
     

    Respirou fundo, sentindo o ar frio se misturar com o calor abafado da armadura.
     

    — Se tem alguém capaz de sobreviver a isso… — murmurou — é você, não me decepcione.

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