Capítulo 66: A busca
Tyla sentiu o impacto da aterrissagem subir pelas pernas, resultado da queda longa e da bruta desaceleração final. As travas dos pés se abriram e os painéis laterais da cápsula recuaram em trilhos hidropneumáticos, permitindo que o ar frio entrasse sem pedir permissão. A luz branca da paisagem tomou o espaço interno de uma vez. O mundo lá fora não tinha formas definidas, apenas um campo contínuo de neve que se perdia em linhas suaves até onde a visão alcançava.
Ela saltou para fora antes de pensar melhor, e os pés afundaram até os tornozelos na neve fofa. Um vento cortante soprou contra o visor, lançando fragmentos úmidos de gelo que bateram com força suficiente para fazê-la piscar. Mesmo dentro da armadura, sentiu o corpo reagir, não de medo, mas de alerta.
E foi esse alerta que trouxe a lembrança de volta de forma instantânea:
Lyra. Caindo. Perdendo o controle. Sumindo no branco.
O visor interno exibiu suas informações assim que Tyla ergueu o rosto.
Temperatura externa: –31,6ºC.
Pressão arterial: 12/8.
Batimentos: 121.
Sistema respiratório: acelerado.
Consumo de aether: desligado.
Mas nada daquilo importava. Seu olhar estava preso no pequeno ponto vermelho marcado no canto inferior da interface, o cálculo estimado de onde a cápsula de Lyra havia se chocado contra o solo. Era uma distância cruel: 11,4 quilômetros, em linha reta, sobre terreno irregular e em clima hostil.
— Não se atreva a morrer antes de eu chegar — rosnou, sem disfarçar o medo que lhe embrulhava o estômago.
Virou-se e rapidamente começou a retirar dos compartimentos externos os equipamentos que precisaria. O saco térmico de dormir, o fogareiro químico, as rações seladas, o kit médico, o rifle padrão, três bastões sinalizadores, duas cordas retráteis e um conjunto de placas de reparo para a armadura. Conferiu cada peça uma vez, depois outra, garantindo que nada ficaria para trás.
Seu corpo queria correr de imediato, mas sabia que não podia. Correr naquele frio e naquele terreno significaria queimar energia rápido demais. Respirou fundo, tentando controlar a ansiedade, e ajustou a mistura de aether no capacete para um nível que a ajudasse a manter foco sem a sobrecarregar. O aroma doce tomou o espaço interno, trazendo euforia e uma clareza imediata.
Deu um passo. Depois outro.
— Tô indo — murmurou, como se aquilo pudesse empurrá-la para frente. — Aguenta só mais um pouco.
A neve dificultava a caminhada. Mesmo com a armadura ajustando os músculos pneumáticos às irregularidades do terreno, cada passo exigia mais força do que gostaria. Quinhentos metros depois, a respiração já estava pesada, e a lembrança da queda voltou num clarão involuntário: a cápsula de Lyra desacoplando; os flaps abrindo; ele se soltando e levando parte da fuselagem consigo; a faísca no lado esquerdo; a cápsula girando descontrolada; a partida dos propulsores falhando; o desvio repentino que a lançou para fora da zona segura; e, por fim, os paraquedas abrindo tarde demais.
Tyla tinha marcado a coordenada no instante exato em que percebeu que a cápsula da amiga não estabilizaria. Aquele ponto vermelho na interface era o que restava para guiá-la.
O horizonte era uma massa branca, sem qualquer sinal de vida ou referência. Se não fosse pelo visor, nem saberia dizer se avançava em direção certa.
Ela caminhou por horas. Ajustou o ritmo várias vezes, ora diminuindo para controlar a respiração, ora apertando o passo quando o desespero voltava a crescer. A cada pequeno progresso, a sensação era a mesma: ainda longe demais.
— Estou chegando… — repetia, de tempos em tempos.
Depois de quase três horas, o visor mostrava que restavam pouco mais de dois quilômetros, mas agora havia outro problema: o terreno subia. E subia de forma constante, como se a própria montanha estivesse avisando que a parte fácil acabara.
Ao erguer os olhos, Tyla viu a cordilheira de pedras cinzentas que emergia das sombras da neve. Não era alta como as grandes montanhas de terra firme, mas era larga e irregular. A cápsula de Lyra tinha caído na face menos íngreme, e isso foi a primeira boa notícia que teve desde a aterrissagem.
Soltou o ar pela boca, tentando aliviar a pressão nos pulmões.
— Se tivesse caído do outro lado… — murmurou, num assovio breve. Não disse o resto. Não precisava. Tentou não pensar no pior.
Descansou por alguns segundos, inclinada para frente com as mãos nos joelhos, sentindo o suor frio escorrer pela têmpora. Depois ergueu a cabeça, ajeitou a mochila e murmurou:
— Quando eu chegar, se você estiver morta, eu te mato de novo…
Seguiu em frente.
Mas quando chegou perto da base rochosa, a sensação mudou. Não foi intuição vaga, foi algo nítido, seus sentidos, ampliados pelo aether fizeram seus pelos arrepiarem. Ela deu um passo para trás por puro reflexo.
Nesse exato segundo, a parede explodiu.
Neve e lascas de pedra se espalharam como uma onda quando a criatura emergiu da fenda. Era grande, muito maior do que lembrava das imagens projetadas na aula. Pulou com força suficiente para quebrar ossos apenas com o impacto. O urro grave ecoou entre as rochas, ressoando na armadura.
Tyla se jogou para o lado. As garras passaram onde sua cabeça estivera um instante antes.
Um Polarion.
Uma feraether selvagem que praticamente só existia nesse setor, o motivo que a trouxe até ali.
Um predador territorial, forte, rápido e inteligente. Corpo robusto, pelos longos de cor branca amarelada, braços pesados, unhas curvas, dentes grandes demais. Os olhos azul-profundo a analisavam com uma inteligência assustadora.
— Ótimo… — resmungou, baixinho. — Logo você.
Se morresse ali, Lyra não teria chance alguma.
Tyla ativou seu núcleo de aether. Um clarão azul-dourado surgiu ao lado dela, e o canired apareceu, compacto, de escamas azuladas, corpo baixo e musculoso, com postura firme e olhar atento. A cauda rígida varreu a neve atrás dele.
— Comigo — disse Tyla.
O Polarion não esperou. Avançou com velocidade absurda para algo daquele tamanho e golpeou em sua direção. Escapou por um triz. O estrondo fez a neve tremer.
Tyla rolou para longe enquanto o canired se recolheu, formando uma esfera de placas azuladas. Ele disparou como um projétil contra o torso do Polarion, que deu dois passos para trás, não ferido, mas por surpresa.
Tyla ergueu o rifle e disparou contra a fera. Acertou seu ombro. O tiro ricocheteou como se tivesse atingido uma parede reforçada. O Polarion virou a cabeça para ela, lento, calculado.
Agora sabia exatamente quem era o alvo.
— Isso vai dar trabalho… — engoliu em seco, o coração disparado.
A fera investiu. Tyla ativou a habilidade simbiótica do canired, e as placas azuladas se espalharam sobre sua armadura, reforçando a estrutura e formando uma camada praticamente rígida.
Mesmo assim, o impacto a lançou contra uma árvore que quebrou ao meio quando seu corpo bateu contra ela. A armadura acusou sobrecarga, e Tyla engasgou com a dor que se espalhou pelo peito.
O canired correu pela lateral, tentando chamar atenção. O Polarion virou o rosto para ele, e Tyla percebeu a abertura.
— Por baixo! — ordenou.
O canired virou esfera de novo e colidiu com força no tornozelo da criatura. Ele escorregou, seu joelho cedeu. Ele caiu parcialmente, soltando um rugido irritado.
Ao se levantar golpeou o canired, que se protegeu e rodopiou na neve antes de explodir em partículas douradas, retornando ao núcleo de Tyla.
— Argh!
Tyla sentiu o impacto da perda simbiótica no próprio corpo, como um puxão interno. Seu corpo tremeu com o choque.
Ela precisava terminar aquilo rápido.
Fechou os olhos por um instante e acessou o que lhe restava de aether. Sentiu o calor subir pela coluna e se espalhar pelo peito. O Polarion ergueu o rosto, atento ao fluxo. Tyla afastou os pés, abriu os braços e deixou que sua presença fosse clara, firme, inegociável.
— Olha pra mim — disse, com a voz falhando, mas direta.
Os olhos da fera travaram nos dela. Era como encarar o interior de uma tempestade silenciosa. A mente dele tocou a dela, não suave, mas pesada, instintiva, carregada de uma força que vinha de muito antes da presença humana naquele planeta.
O Polarion avançou meio passo. Tyla manteve-se imóvel. O vento parou. A respiração dela parou. Ela sentiu sua vontade inteira sendo avaliada como se fosse medida, pesada, comparada.
— Eu não sou sua presa — disse. — E não vou cair aqui. Ainda tenho alguém pra salvar.
Imagens, intenções, fragmentos de memória atravessaram o espaço entre eles: a cápsula caindo; a sensação de perda; o medo que tentou esconder; a determinação absurda que a movia.
A fera ergueu a cabeça. Bateu a pata no chão uma vez. Depois outra.
Um teste.
Tyla manteve-se firme.
O rosnado diminuiu. O corpo relaxou. A fera recuou um passo. Depois outro.
E então se abaixou.
Não como submissão total, mas reconhecimento. Aceitação.
A respiração de Tyla finalmente voltou. E então, diante dela, o Polarion começou a mudar.
O corpo se desfez em partículas douradas que se elevaram como poeira quente, espalhando luz suave. A transição era silenciosa, mas poderosa. Tyla abriu os braços e deixou que as partículas a atravessassem. Sentiu cada uma delas tocar seu núcleo. Era como receber um impacto que não machucava, mas alterava.
O ar saiu dos pulmões de forma brusca. Ela cambaleou.
A presença do Polarion invadiu sua mente sem pedir licença.
— Me ajude… — sussurrou, com dificuldade. — Me dê sua força.
E a resposta veio. Não em palavras claras, mas numa intenção simples e primária:
“Vamos salvar sua fêmea.”
Tyla engoliu seco. Lyra não era sua fêmea, mas não corrigiu. Deixou por isso mesmo.
As habilidades do Polarion se espalharam pelo seu corpo: resistência ao frio, leitura do terreno, adaptação ao vento, passo firme sobre neve fofa, equilíbrio em terreno irregular. A sensação era natural, como se sempre estivessem ali, esperando serem despertadas.
O ponto vermelho no visor brilhou de novo. Agora não parecia tão distante. Agora ela tinha força para chegar.
Tyla ergueu o rosto para o horizonte branco.
— Lyra… — murmurou. — Eu tô indo.
Tomou um último fôlego e voltou a caminhar.
Mas a palavra caminhar já não descrevia sua marcha.
O passo ficou mais rápido, mais firme. O ritmo deixou de oscilar. A dor que antes queimava em cada passo desapareceu como se nunca tivesse existido.
A neve e o frio, inimigos, já não importavam mais.
O mundo tinha o mesmo aspecto branco, mas Tyla avançava por ele como se já conhecesse aquele terreno há anos.
Era o Polarion nela, suas memórias, seus instintos, reorganizando tudo: a respiração, o cálculo de distância, o uso de energia. Ela só precisava mover as pernas. O resto acontecia automaticamente.
Sorriu conforme a velocidade subia, constante, como se seu corpo tivesse encontrado o padrão ideal e só precisasse manter o curso.
Era simples.
Ela tinha um trajeto.
Tinha uma meta.
Tinha alguém para alcançar.
O resto, frio, vento, neve, distância, era só ruído.

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