Capítulo 7: Convidados Especiais
O bip metálico rompeu o silêncio da sala de operações.
Rob ergueu os olhos do terminal. O servo postado junto ao terminal disse, pálido, mostrando o ícone de transmissão com o selo da Casa Sylaris. Ninguém se moveu de imediato. Até o som do ar condicionado parecia ter prendido o fôlego.
Rob se levantou devagar, foi até o terminal e usou seu polegar para ativar a mensagem. A tela acendeu com um brilho dourado, preenchendo a sala com a voz clara e fria de uma mulher.
— “Saudações da Casa Sylaris. Eu, Lady Aliah, terceira filha do Patriarca Halvian Sylaris, parabenizo oficialmente a Casa Veyne pelo desempenho superior nas últimas cotas de mineração.”
O tom era cerimonioso, mas distante, como se o elogio fosse mais um protocolo do que um reconhecimento real.
— “Informo que farei uma inspeção formal em Glasurith dentro de cinco dias-padrão. Espera-se a presença integral da família Veyne, bem como dos administradores e representantes locais. A agenda incluirá visitas às estruturas produtivas, aos centros educacionais e à capital. Agradeço antecipadamente por sua hospitalidade.”
A mensagem terminou com o brasão dos Sylaris girando por alguns segundos: a águia bicéfala dos Sylaris.
Caine foi o primeiro a falar.
— Isso é sério demais pra ser só um parabéns.
Virna cruzou os braços, inquieta. Atrás dela, dois engenheiros pararam o que faziam, tentando parecer ocupados.
— A última inspeção que lembro foi há quatro anos — murmurou. — E não veio ninguém acima de um auditor da guilda.
— Exatamente. — Caine virou-se para Rob. — O que ela quer aqui? Não é o tipo de lugar que um Sylaris visita sem motivo.
Rob não respondeu de imediato. Encarava a tela escurecida, as mãos apoiadas na mesa como se precisasse dela para não cair. Depois pigarreou e assumiu o comando:
— Preparem uma resposta formal. Diga que será uma honra. Quero todo mundo em prontidão. Nada de deixar os transportes inativos. Vamos limpar as entradas das cidades e preparar recepções. A capital precisa parecer imperial.
— Devemos esconder a mina 19? — perguntou um dos engenheiros, cauteloso.
Rob girou lentamente o pescoço na direção dele.
— Ela já está enterrada.
O clima da sala mudou. Pesado. Compactado.
Lyra, que até então observava tudo do fundo, sentiu uma dor surda no estômago. Não pelo medo da chegada de Aliah, mas pelo silêncio dos outros. Ninguém discutiu. Ninguém protestou.
Parecia que todos já haviam aceitado que estavam em cena. Que a encenação começara.
E que, quando a nave pousasse… o espetáculo deveria ser perfeito.
Diferente do assentamento isolado da fronteira, a capital de Glasurith era uma verdadeira cidade. Contava com prédios, escolas, alguns parques, hospitais e até mesmo uma universidade técnica especializada em prospecção, geologia e engenharia. Agora, porém, tudo parecia uma fachada a ser retocada.
A cidade inteira se movia com o fervor de uma encenação. Estandartes foram içados nas vias principais: o símbolo do Império, as manoplas cruzadas, ocupava o topo. Logo abaixo, A águia da Casa Sylaris. E, na base, em posição subalterna, o brasão dourado dos Veyne: um campo de trigo estilizado. Cada bandeira obedecia rigorosamente a hierarquia estabelecida.
No coração da cidade estava o galpão principal da OMG, a Operação de Mineração de Glasurith. O edifício passava por reformas pontuais: pintura fresca, troca de painéis, instalação de novos acabamentos. Uma plataforma de pouso reforçada com uma área de observação estava sendo montada às pressas. Serviria para acomodar os servos e mineiros selecionados, não os mais experientes, mas os de aparência mais apresentável.
A visita de uma herdeira imperial não era um evento comum. Era o tipo de ocasião que fazia os adultos andarem mais eretos, os funcionários sorrirem com nervosismo e as crianças imitarem saudações cerimoniais nas ruas. Até mesmo os sussurros mudavam de tom. Todos sabiam: algo grande estava para acontecer.
Mesmo sendo de uma Casa Menor, os Veyne ainda eram nobres, ao menos no papel. Sua linhagem nem sempre estivera ligada à mineração de aether, mas, nisso, haviam se mostrado surpreendentemente competentes. Não era a única coisa que sabiam fazer, mas foi o que aprenderam melhor.
A oportunidade de assumir a operação em Glasurith surgira apenas três gerações atrás. Um salto meteórico para uma família que antes mal passava de pequenos supervisores em colônias remotas. Um acidente político e logístico para alguns. Um milagre de esforço e visão para outros.
Rob era o último elo dessa escalada. Mais que um gerente, via-se como o arquiteto da ascensão definitiva da Casa Veyne.
Era também o único ali que havia servido diretamente ao Império, um detalhe que fazia questão de lembrar sempre que podia.
Glasurith, afinal, ficava num canto esquecido do setor controlado pelos Sylaris, e cinco dias de aviso era quase nada. Mas Rob não deixaria que isso virasse desculpa.
Caine, o primo mais velho, estava junto dele e de Virna, ajudando a disparar convites e despachar transportes para os principais centros ocupados. Os Veyne, sob a supervisão de Rob, estavam espalhados por toda Glasurith, organizando os trabalhos e mantendo as coisas sob controle.
— Acho tudo isso uma bobagem — desabafou Caine, o amargor cravado no fundo da voz. Ele ainda não superara o fato de os anciãos da Casa terem escolhido Rob como gerente, e não ele. — Estamos à frente das cotas. Isso é o que importa. Esses nobres folgados só ligam para o próprio lucro. Nunca nos respeitaram.
— Concordo com você — respondeu Rob, sem levantar os olhos da lista de convidados — mas é justamente por isso que essa visita é tão importante. Eles só se mexem por duas razões: lucro… ou problemas.
Fechou o arquivo com um toque seco.
— E ter superado as cotas nos colocou no radar. Talvez, por uma vez na vida, isso esteja jogando a nosso favor. Tenha fé, primo.
Caine bufou, impaciente.
— Não sei… tem algo nessa história que não me cheira bem. Tudo isso agora? Tão perto do que aconteceu na mina 19? Acho que tem ligação, sim.
Rob ergueu os olhos e sorriu com um misto de desafio e ironia.
— Mesmo que tivessem detectado algo, não dava tempo de se moverem, velhote. Você sabe disso — insistiu Rob, com um tom firme, quase defensivo. — É por causa das cotas, só pode ser.
Fez uma pausa, como se precisasse acreditar nas próprias palavras.
— Você simplesmente não consegue admitir que estou fazendo um bom trabalho. Que sou eu quem vai levar a Casa Veyne a um novo patamar.
A afirmação de Rob pegou Caine de surpresa. Ele hesitou, os lábios se movendo sem encontrar as palavras certas.
— Depois não diga que não avisei — resmungou por fim, saindo da sala com passos firmes.
Rob permaneceu em silêncio, fitando o painel de vidro escurecido à sua frente. A imagem refletida mostrava apenas seu vulto. Ele não parecia incomodado.
Afinal, para escalar o poder, alguém precisa ter a coragem de jogar. E ele estava jogando para vencer.
Caine, na pressa, quase esbarrou com Lyra, que entrava naquele instante carregando uma caixa nos braços.
— Obrigado, pai… adorei o vestido — disse ela, com um sorriso trêmulo, indeciso.
— Comprei um para a Virna também. Vieram direto da estação de Anduril. Dizem que é a última moda nas passarelas de Sylaris.
Lyra arqueou uma sobrancelha, desconfiada:
— Como conseguiu créditos pra isso? Esqueceu que eu sou quem ajuda a fechar os livros contábeis?
Rob riu, com aquele tom despreocupado que usava quando queria desarmá-la:
— Esses vestidos são um investimento, filha. Precisamos impressionar. Mostrar para Lady Aliah que somos mais do que um bando de mineiros. E além disso… estamos acima das cotas. Teremos créditos extras.
Fez uma pausa. Seus olhos brilharam com algo mais perigoso.
— Para o próximo semestre, quero contratar um tutor pra você. Alguém da capital. Um especialista. Está na hora de explorar todo o potencial da sua tolerância.
Lyra congelou.
A quantidade de aether necessária para isso era absurda. Mais do que toda a cota mensal dos pilotos de broca. Mais do que qualquer civil deveria receber. Era… outra coisa.
— Mudando de assunto — disse Rob num tom mais grave, se aproximando da sobrinha. — Você está melhor? Conseguiu dormir um pouco?
— Só tomando remédios, tio — confessou ela, a voz baixa. — Não consigo acreditar que…
— Matamos aquelas pessoas, Lyra?
Ela assentiu, engolindo em seco.
— É.
— Eles já estavam mortos, minha garota. Não havia nada que pudéssemos fazer. Você sabe disso.
— Mesmo assim… me sinto culpada. Por não ter impedido vocês. Por não ter falado nada. Sinto que a vida deles está nas minhas mãos também.
Rob a encarou por um instante longo. Depois colocou a mão em seu ombro, com um gesto pesado, firme, quase cerimonial.
— E está. Essa é a responsabilidade dos que governam. Aprenda isso.
Seu olhar ficou mais duro, como se falasse não só com a sobrinha, mas com a herdeira de uma Casa.
— Eu não fiz esse mundo. Nem as regras. Eu só tento viver de acordo com elas.
Inspirou fundo, os olhos fixos nos dela.
— Tudo que fiz, e tudo que ainda vou fazer, é pensando em nos elevar. A todos nós. Nossa Casa. Você, Lyra, com sua tolerância… será grande. E cabe a mim te dar as chances pra isso.
Fez uma pausa.
— Para o bem de todos, entende?
Lyra não respondeu de imediato. Apenas apertou os dedos na caixa que segurava, como se ela fosse a única coisa sólida à qual ainda podia se agarrar.
Longe dali, a bordo de uma nave colossal em rota direta para Glasurith, a Matriarca Zyab permanecia sentada diante de um terminal em seus aposentos privados.
Usando sua identificação oficial, acessou uma das redes seguras do Império. Seus dedos deslizaram com precisão pelos comandos, até abrir os arquivos centrais. Digitou um nome simples, quase insignificante à primeira vista.
Glasurith.
Os dados surgiram em sequência. Uma lua de porte médio, habitável, rica em aether fossilizado. Um mundo com uma única função: servir como mina.
Situada dentro do território galáctico sob domínio da Casa Sylaris, Glasurith passara recentemente por uma mudança de comando. A Casa Veyne havia substituído os antigos administradores, os Assum, tornando-se os novos capatazes.
— Veyne… — murmurou Zyab, o nome despertando algo esquecido.
Saiu dos arquivos imperiais e acessou os registros do Matriarcharum, a rede sagrada e sigilosa das sacerdotisas do Demiurgo.
A pesquisa foi rápida. E frutífera.
Um nome surgiu.
Alina Veyne.
Zyab esboçou um sorriso contido.
O destino, ao que parecia, tinha mesmo senso de humor.
Alina fora sua noviça anos atrás, quando Zyab ainda servia como catequizadora. Lembrava-se bem: uma tributo disciplinada, dedicada, mas com um coração teimoso. Naquele tempo, Alina suplicara por uma permissão incomum, enviar sua filha recém-nascida de volta para casa, para que não fosse criada dentro das paredes do Matriarcharum.
Era um pedido proibido.
Ainda mais grave por tocar no rito primordial das Matriarcas: a maternidade.
Elas eram as guardiãs genéticas do Império. De seus óvulos, fertilizados pela semente dos Praetorii Primus, nasciam os legados, a elite bélica do Demiurgo, soldados moldados desde o útero para servir como extensão viva da vontade imperial.
Permitir que uma futura matriarca se separasse de sua cria era, por si só, um risco à doutrina. Um gesto visto como desvio, quase heresia.
Mas Zyab, à época, permitiu, ou melhor, fingiu que não viu.
Algo pequeno, sim, mas ainda um desvio.
A verdade era incômoda: embora raríssimo, aquilo acontecia mais vezes do que o Matriarcharum admitia. Entre as paredes austeras do sagrado, existia espaço para concessões silenciosas, especialmente quando envolviam tributos cuja lealdade já estava selada por toda a vida. Sacrificar uma vida inteira pela fé concedia, às vezes, um único momento de fraqueza.
Zyab fechou os olhos por um instante, permitindo-se o gosto amargo da lembrança.
Zyab fechou o terminal, o sorriso ainda nos lábios.
Agora se lembrava de onde conhecia Glasurith.
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