Lyra atravessou o pátio central da mansão com um vestido claro, ajustado demais para seu gosto, os sapatos apertados machucando os calcanhares. O penteado que uma das criadas havia feito pinicava sua nuca. Cada detalhe parecia escolhido para transformá-la em outra pessoa.
     

    Ela encontrou a tia sentada em frente ao espelho, prendendo os cabelos com delicadeza. Virna estava linda, como sempre. Um vestido azul-escuro realçava a sobriedade de sua beleza, mas seus olhos estavam distantes, silenciosos como um lago profundo.
     

    — Está tudo tão… forçado — disse Lyra, sem conseguir conter o incômodo na voz.
     

    Virna olhou para a sobrinha através do espelho. Um leve sorriso desenhou-se em seus lábios.
     

    — Sempre é. É isso que as pessoas esquecem sobre a nobreza: nada nela é natural. Tudo é aparência, treino e silêncio.
     

    Lyra sentou-se na cama e cruzou as pernas.
     

    — E mesmo assim… você está tão calma.
     

    Virna terminou de prender o cabelo e se virou. Caminhou até a sobrinha e se agachou diante dela, arrumando um fio solto no vestido de Lyra, como quando ela era pequena.
     

    — Calma não é o que eu estou, meu bem. Mas a gente aprende a parecer. É a única forma de sobreviver por aqui.
     

    Ficaram em silêncio por um momento.
     

    Do lado de fora, ouviam-se vozes, ordens, drones sendo ativados. O céu começava a ficar alaranjado.
     

    — Você acha que ela vai nos tratar com respeito? — perguntou Lyra, hesitante.
     

    — Não. Mas vai parecer que sim. E é isso que importa — respondeu Virna com franqueza.
     

    Lyra engoliu em seco. Estava prestes a perguntar algo mais, mas Virna se adiantou, pousando uma das mãos sobre a perna da sobrinha, que era uma verdadeira filha.
     

    — Quando você for apresentada a Lady Aliah, olhe nos olhos dela. Não com arrogância, mas com firmeza. Eles respeitam isso. E cuidado com o que disser. Essa gente é treinada para transformar qualquer palavra em arma.
     

    — E se eu não quiser participar disso?
     

    Virna a encarou por um longo instante. Depois suspirou, cansada.
     

    — Você não tem essa escolha, Lyra. Nenhum de nós tem.
     

    Ela se levantou, passando as mãos pelo próprio vestido, e concluiu:
     

    — Mas isso não quer dizer que você precise se esquecer de quem é. Vou ver seu tio. Aquele bobalhão não sabe se trocar direito.
     

    Lyra a observou sair do quarto com o andar firme e a coluna ereta de uma mulher que sabia o peso de viver entre máscaras. Ficou ali, sozinha, respirando fundo, sentindo o peso do vestido, o perfume que usava e o medo que não sabia nomear.
     

    Os cinco dias de prazo passaram em uma velocidade estonteante. Rob tinha escolhido organizar a recepção na capital, o único local com espaço suficiente para receber todos os Veyne.

    Virna terminava de ajustar as abotoaduras do traje cerimonial de Rob quando o viu hesitar, os ombros tensos.

    — Está nervoso? — perguntou, com a voz suave, mas os olhos atentos.

    — Um pouco… — ele confessou, soltando o ar devagar. — Nunca estive diante de um herdeiro direto dos Sylaris. Sempre tratei com enviados… gerentes de meia-patente… burocratas. Agora é diferente.

    — Ouvi dizer que ela é adepta de alterações por Aether… Que a pele dela reflete isso — comentou Virna, enquanto alisava os ombros do traje do marido. — Deve ser do tipo vaidosa… talvez uns elogios bem colocados caiam bem.

    Rob soltou uma risada seca.

    — Vaidosa…? Eles todos são. Adoram desfilar com aquelas malditas “alterações” como se fossem bênçãos divinas. Como se cada veia dourada ou cada traço de cristal na pele fosse um passo a mais rumo à perfeição do Imperador.

    — Cuidado com o tom… — alertou Virna, baixando a voz. — Sabe muito bem que qualquer um que te ouça falando assim pode te denunciar por heresia.

    — Eu sei… — respondeu Rob, respirando fundo. — Mas me revolta. Pra eles é estética… é moda… é um símbolo de status. Já pra gente… pros nossos… é deformidade. É exílio. É vergonha.

    O olhar de Virna suavizou, mas ela não retrucou.

    — Quantos dos nossos já foram afastados das frentes de trabalho por conta das mutações? Quantos acabaram trancados em algum porão ou levados pra aquelas alas médicas de onde ninguém volta? Chamados de impuros, ou heréticos?

    Virna apenas ajeitou a gola dele com um gesto rápido. Sabia que ele não tinha digerido o que aconteceu a menos de uma semana. Ele parecia firme, mas ela sabia.
     

    — Hipocrisia ou não… não é hoje que você vai mudar isso. Mantenha o sorriso e o protocolo, Rob. Pelo bem da nossa Casa.

    Ele assentiu, engolindo o que realmente queria dizer.
    Nesse instante, uma batida na porta interrompeu a conversa.

    — Senhor… está na hora. O transporte de vocês está pronto. A nave de Lady Aliah chega em cerca de trinta minutos.

    Rob ajeitou os punhos uma última vez e respondeu com firmeza:

    — Estamos indo. E mandem chamar a Lyra.

    — Sim, senhor.

    Pouco depois, estavam acomodados a bordo de um dos veículos de transporte sub-orbital. O motor vibrava sob os pés, emitindo aquele zumbido grave típico dos antigos modelos de carga adaptados.

    Pela janela lateral, Lyra contemplava o céu de Glasurith. O planeta gasoso ao qual a lua orbitava dominava o horizonte com uma imponência silenciosa. Àquela hora, sua coloração parecia ainda mais intensa: faixas onduladas de vermelho e laranja se misturavam a estrias roxas profundas. Era como se um véu em movimento cobrisse metade do céu.

    Aquela visão sempre a hipnotizava. O brilho intenso da atmosfera do planeta obscurecia boa parte das estrelas, criando um falso crepúsculo permanente nas noites de Glasurith.

    Perdida em pensamentos, absorvendo o espetáculo natural, Lyra nem percebeu o momento em que o veículo começou a desacelerar. Só deu conta quando sentiu o solavanco suave da parada completa.

    Quando desceu, o galpão onde ocorreria a recepção a impressionou pelo tamanho. As paredes altas desapareciam nas sombras das estruturas metálicas do teto. Cobriam-se de tecidos nas cores da Casa Sylaris: um verde profundo como musgo de floresta antiga e dourado pálido, como ouro lavado pelo tempo.
    Em pontos estratégicos, o brasão da Casa Soberana reluzia, a águia de cabeças segurando um feixe de flechas, gravado em placas metálicas polidas, como exigia o protocolo imperial.

    Os símbolos da Casa Veyne também estavam presentes, porém em tamanho discreto e posicionados de forma claramente subordinada. Apenas o suficiente para não ferir a etiqueta, mas deixando claro o lugar que ocupavam naquela hierarquia.

    Era fácil perceber o esforço que Rob e os demais haviam feito. Havia esmero na decoração, sim, mas também havia pressa. Marcas de solda recente em algumas estruturas, tintas ainda frescas em cantos mais escuros, tecidos mal esticados em determinados pontos. Pequenos sinais de improviso inevitável.

    Aqui e ali, a ferrugem nas vigas e o desgaste natural do uso denunciavam a verdadeira função daquele espaço: armazenamento de carga, nunca recepções nobres.

    Dentro, uma fileira de mesas bem arrumadas exibia arranjos florais que, só de serem naturais, já representavam um luxo impraticável em Glasurith. Tinham sido trazidas do outro lado da lua com custo e esforço. O aroma das flores misturava-se ao cheiro onipresente de aether bruto e poeira de rocha triturada, criando uma atmosfera estranha… como se natureza e mineração travassem uma guerra silenciosa no ar.

    Um pequeno exército de serviçais aguardava, alinhado, todos uniformizados em tons neutros, com os olhos fixos no chão, na típica postura de humildade exigida quando se esperava a chegada de alguém de sangue Soberano.

    Quase todos os membros da Casa Veyne estavam presentes. Anciãos, primos, tios distantes, supervisores de extração, chefes de seção… Todos que viviam e trabalhavam nas operações da lua haviam sido convocados. Era um evento raro, e a presença de uma representante direta dos Sylaris tornava a formalidade obrigatória.

    Alguns membros da família, responsáveis pela segurança interna, patrulhavam discretamente o perímetro. Usavam os uniformes padrão da Companhia de Mineração: fardas pardas, com reforços nos ombros e nas canelas, e bastões atordoantes presos à cintura.

    Apenas Saluh, um primo distante de Rob e atual chefe de segurança, destoava. Ele carregava um rifle automático com a tranquilidade de quem sabia muito bem como usá-lo. Seus olhos não paravam, vasculhavam o ambiente em busca de qualquer ameaça invisível.

    O veículo de transporte desacelerou e parou junto à plataforma de recepção. Rob, Virna e Lyra desceram primeiro, ajustando as roupas e respiradores, enquanto o veículo rapidamente se afastava, abrindo espaço para a aproximação da nave de Lady Aliah.

    Rob lançou um último olhar ao galpão, satisfeito com o que via, mas ainda inquieto. Caminhou sozinho até o interior para inspecionar os detalhes de última hora.
    Enquanto isso, Lyra e Virna seguiram juntas para o salão. Lyra passou os dedos em uma das tapeçarias que trazia bordado, o campo dourado dos Veyne.

    Os corredores estavam cheios de rostos familiares. Gente que Lyra não via fazia meses. Anciãos de cabelos grisalhos, primos que só apareciam em ocasiões cerimoniais, e tios que raramente largavam os postos de extração.

    Ciel foi o primeiro a se aproximar delas.

    — Uau… a senhora está deslumbrante, tia Virna — elogiou o garoto, tentando parecer mais cavalheiro do que era.

    — Você está muito elegante também — devolveu Virna, abrindo um sorriso.

    — eu não estou bonita não? — perguntou Lyra, claramente brincando. Ciel corou profundamente.

    De fato, Virna e Lyra estavam entre as mulheres mais bem vestidas do lugar. Os vestidos novos, trazidos diretamente das passarelas de Anduril, destoavam de tudo e de todos. Os cortes eram modernos, os tecidos tinham um brilho sutil que captava e devolvia a luz com elegância, e os detalhes de costura imitavam as últimas tendências da capital.

    Sem esforço, atraíam olhares. Alguns de admiração velada, outros de inveja mal disfarçada, e alguns… de puro desdém. Mas nada daquilo parecia importar mais.
    O ronco grave dos motores da nave de Lady Aliah rompeu as conversas como um trovão. Um som que rasgava o ar, anunciando poder.

    Num instinto coletivo, todos os presentes olharam para cima.

    Uma nave negra como carvão descia com precisão, seus faróis atmosféricos lançando feixes de luz que varriam o solo com agressividade. A claridade cortava a poeira suspensa no ar, criando colunas de luz quase sólidas.

    Lyra estreitou os olhos e percebeu algo estranho. A nave não carregava os brasões da Casa Sylaris. Nenhuma faixa de cor, nenhum emblema nobre. Em vez disso… os símbolos eram da Igreja Imperial e da própria administração central do Império.

    Ao olhar ao redor, viu o mesmo estranhamento nos rostos de todos. Testas franzidas. Sussurros cortados pela etiqueta.

    O pouso foi suave, controlado, mas os exaustores de recuo despejaram um vento quente e violento, levantando poeira e desarrumando penteados, roupas e decorações improvisadas. O cheiro de metal aquecido misturou-se ao adocicado do aether no ar.

    A escotilha lateral da nave se abriu com um rangido seco e, em seguida, desceu uma rampa estreita, iluminada por luzes internas azuladas.

    Os primeiros a surgir foram os guardas Sylaris, um destacamento inteiro, organizado em três fileiras perfeitamente alinhadas. Os uniformes eram de um branco imaculado, com detalhes dourados que cintilavam sob a iluminação da nave. Os capacetes com viseiras ocultavam os olhos, deixando à mostra apenas os queixos rígidos e bem barbeados. Cada um deles carregava um rifle de repetição, segurado com disciplina militar.

    Eles desceram em marcha ritmada, os passos ecoando com peso no piso metálico do galpão. Sem uma palavra, se dividiram ao longo das paredes internas, formando uma muralha silenciosa de vigília.

    Lyra não conseguiu evitar a comparação: os seguranças da Casa Veyne, com suas fardas gastas e bastões de choque, pareciam amadores perto daquela demonstração de força e controle. A chegada daqueles homens era uma mensagem clara. Uma lembrança brutal de qual era o verdadeiro lugar deles na hierarquia imperial.

    Logo depois, dois outros homens apareceram na rampa, conduzindo uma plataforma flutuante. O dispositivo deslizava suavemente a poucos centímetros do solo, sustentado por campos gravitacionais invisíveis.

    Os operadores eram magros, de corpos quase frágeis. Suas cabeças eram desproporcionais, lisas como vidro, sem um fio de cabelo sequer. Por entre a pele pálida, brilhos metálicos denunciavam os inúmeros implantes conectivos em seus crânios. Calculadores Imperiais.
    Lyra os reconheceu na hora. Certa vez, Rob tinha cogitado contratar um para a Companhia de Mineração, mas o custo era tão absurdo que a ideia morreu antes mesmo de virar proposta oficial. Aliah tinha dois.

    A estrutura que transportavam era alta, cilíndrica, coberta por um tecido vermelho profundo. Havia algo de ritualístico naquela imagem. Os dois calculadores a conduziram com precisão até o centro exato do galpão. Um deles acionou discretamente um controle preso ao punho. A plataforma pousou com um clique metálico e se fixou ao chão, como se esperasse o próximo ato de um espetáculo já ensaiado.

    O espetáculo parecia ter terminado… mas foi aí que o verdadeiro peso da chegada se revelou.

    Lyra sentiu a mudança no ar. Um peso físico, como se a gravidade tivesse aumentado. O silêncio se tornou absoluto, como se o próprio aether do ambiente hesitasse.

    Uma mulher surgiu no topo da rampa.

    Alta, magra, etérea. Um equilíbrio inquietante entre o divino e o profano. Sua pele era ouro líquido, refletindo cada partícula de luz com um brilho impossível. Os cabelos, longos e prateados, escorriam como um rio metálico até a cintura. Os olhos… os olhos eram puro aether condensado, brilhando num tom de azul sobrenatural, como dois pequenos sóis congelados.

    Suas vestes eram feitas de véus diáfanos, quase transparentes, revelando mais do que escondendo.
    Lyra percebeu que, por um instante, ninguém respirava. Lady Aliah era tão impressionante quanto alienígena. Havia algo nela que parecia além da compreensão humana: um corpo esculpido para provocar admiração e desconforto ao mesmo tempo. O vestido que Lyra usava, escolhido com tanto cuidado, de repente parecia infantil, ingênuo… irrelevante diante daquela presença.

    Mas o choque ainda não tinha terminado.

    Alguns metros atrás de Lady Aliah, uma nova figura surgiu na rampa.

    Uma Matriarca.

    A máscara perolada, o véu escarlate, o manto cerimonial pesado… Não havia dúvida: uma Matriarca Cardinal. Um dos cargos mais elevados da hierarquia eclesiástica imperial. Sua palavra tinha o peso da lei quando se tratava da interpretação dos decretos sagrados do Demiurgo.

    Os murmúrios contidos explodiram em expressões abafadas de espanto. Anciãos, chefes de seção, até os mais velhos entre os Veyne… todos começaram a fazer o sinal dos Três Dedos, tocando a testa e o coração num reflexo de puro instinto religioso.

    Lyra se pegou repetindo o gesto, o coração disparado. A visita de Aliah era muito mais importante do que qualquer um ali tinha imaginado. Algo grande estava prestes a acontecer, e, no fundo, ela já sabia que não seria nada bom.

    Conforme a Matriarca desceu a rampa com passos calmos e implacáveis, estalou os dedos. Lyra sentiu o fluxo de Aether no ambiente mudar de imediato.

    Da armadura cerimonial da Matriarca, uma luz dourada começou a condensar-se. No ar, partículas vibraram como pólen metálico até tomarem forma.

    Uma criatura esférica surgiu, flutuando ao seu lado.

    O murmúrio coletivo aumentou.

    Um Oculae.

    Uma entidade de registro imperial, usada apenas em eventos com relevância oficial. Seu corpo era uma massa orgânica e metálica, coberta por dezenas de olhos, que piscavam de forma assíncrona e giravam em ângulos impossíveis. Cada olho com uma lente diferente, captando diferentes espectros de luz, até mesmo de Aether.

    A presença da Matriarca… e agora de um Oculae… só podia significar uma coisa: o que estava prestes a acontecer seria registrado. Seria oficial. Iria para os arquivos eternos da Igreja e do Império.

    Glasurith nunca mais seria a mesma.

    E Lyra… sentia um peso estranho em suas costas, uma premonição de que as mudancas talvez, não fossem tão boas assim.

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