Capítulo 05: O Desejo da Morte
O Oficial sentiu o gosto amargo do fim roçar sua língua antes mesmo de compreender o que estava diante dele. A sentença veio silenciosa, mas indiscutível — não em palavras, mas na imagem grotesca que se erguia à sua frente: uma única caveira alçada aos céus, seca, ossuda, com as órbitas vazias parecendo cuspir desprezo. Aquela cabeça morta se ergueu como um estandarte, e, no instante seguinte, tudo desabou.
Veio a avalanche. Um mar branco de ossos, costelas rangendo contra o chão, tíbias partindo a terra, crânios ricocheteando entre colunas de pedra. O Oficial se viu soterrado não por poeira, mas por cadáveres que nunca aceitaram o descanso. Lutou para não cair. Lutou para não se tornar parte deles.
Girou nos calcanhares, o medo comprimindo sua garganta. O grito saiu como uma lâmina cortando o pânico.
— Fechem tudo. O treino terminou. Mandem os dois Grandes Cavaleiros voltarem agora.
A ordem foi como um trovão entre os corpos paralisados. Ninguém esperava que o inevitável se tornasse real. Os rostos, pálidos e afogados em suor, pertenciam a soldados calejados e tenentes experientes, mas agora pareciam meninos diante da ruína. Aquela batalha, antes uma rotina vitoriosa, havia sido roubada deles. Humilhantemente.
Ainda paralisados, como se os pés tivessem afundado na própria vergonha, escutaram novamente:
— Vão, seus molengas. Querem morrer aqui?
A voz cortava como aço.
Isso bastou. O medo os empurrou. Alguns correram com as armaduras mal colocadas, outros tropeçaram e se levantaram sem tirar a poeira do corpo, gritando ordens e espalhando o alarme como fogo em campo seco. A mensagem se espalhou em ondas, como uma batida de tambor no horizonte, até alcançar os corredores baixos e frios da base. Ali, onde os sussurros se tornam comandos, ergueu-se o nome: A Torre de Vigia Sfert.
Veron desviou-se por baixo de uma lâmina, o reflexo da lâmina cintilando na penumbra da ala hospitalar. Em resposta, ergueu o punho esquelético e o cravou contra o rosto do homem à sua frente. O impacto foi surdo, brutal — os ossos quebraram sob o golpe, e o corpo tombou entre duas camas manchadas de sangue antigo.
Outro inimigo se aproximava, mas Veron não hesitou. Sua espada, negra como breu, cortou a carne da perna do oponente de baixo para cima. Um jorro quente se espalhou, e a lâmina seguiu firme até o esterno, encerrando a vida do homem em um único rasgo.
Não havia tempo para remorso. Se havia algo a lamentar, que ficasse do outro lado — o lado dos vivos. Veron seguiu seu caminho, atravessando a ala como um fôlego gélido. O exército branco marchava atrás, estraçalhando tudo o que os humanos tinham criado com suor, medo e mágoa.
A ala hospitalar não tinha cheiro de cura — exalava ferro, carne podre e magia antiga. As camas, cobertas por lençóis escuros, escondiam manchas que o tempo havia empedrado. Os glifos de cura que dançavam nas paredes já haviam perdido o brilho, ressecados como pergaminhos esquecidos. O ar era denso, difícil de respirar — não que Veron precisasse do ar, mas ainda sentia a memória do fôlego, e ela o incomodava.
Parou no meio da sala. Seus olhos — ou o que restava deles — vasculhavam aquele lugar, não em busca de inimigos, mas de vestígios. Memórias. O hospital era um túmulo de esperanças fracassadas.
Ele já estivera ali. Talvez em outra vida.
— Veron — uma voz se ergueu atrás dele, carregada por uma presença espectral.
Virando-se lentamente, viu um dos seus. Um esqueleto de armadura lascada e olhos vazios, arrastando um machado de guerra cujo peso ainda lembrava os tempos de carne. Ele parou a poucos passos, e apesar de não ter face, sua voz soou grave, quase pesarosa.
— O Lich perdeu sua batalha… mas nós invadimos a casa… dos humanos.
Veron ficou em silêncio por um instante. Depois, abriu os braços como se apresentasse o cenário inteiro.
— Essa não é a casa deles.
Deu um passo adiante, esmagando com o pé um frasco quebrado que havia rolado de uma das camas. O líquido que vazava ainda parecia pulsar, como se tivesse vontade própria.
— Isso aqui não é nada. Eles vivem mais longe, fora desse campo morto. Existe um lugar que eu conheço… uma torre que eles chamam de casa. Lá, o Lich deve focar em tomar aquele lugar.
O esqueleto baixou a cabeça em concordância, o machado ainda raspando o chão de pedra.
— E qual o nome do lugar?
Veron olhou na direção norte. Seus olhos não viam como os dos vivos, mas a lembrança estava ali, firme como a lâmina em sua mão.
— Sterf. Lá, os humanos vão se reunir para ganhar seu terreno. Avise ao Lich. – Veron começou a caminhar contra a ainda maré de esqueletos, mas tendo diminuído em muito. Esses eram os últimos, nada além de esqueletos que corriam para a sobra.
— Me… chamo… Evano.
Veron parou, ele segurava a espada, nu, despido e sentiu que aquela pequena apresentação era a própria nudez do outro para si.
— Sou Veron, o último do meu nome.
Último, mas eles saberiam quem ele era.
Evano fez uma pequena reverência, seguindo seus passos, retornando para o covil dos esqueletos. E não muito atrás, Amin também. O esqueleto mais magro começou a caminhar contra os seus familiares, observando os passos de Veron.
Zhonias brandia a voz como se fosse uma lâmina em brasa, cortando o silêncio que ainda pairava sobre o pátio central. Gritava para todos os Oficiais e Tenentes que haviam conseguido sobreviver à emboscada, ou, no mínimo, fugir com as pernas inteiras. A multidão diante dele não passava de um aglomerado de homens derrotados, alguns de cabeça baixa, outros com os olhos fixos no chão rachado de Sterf, como se procurassem desculpas escondidas entre as pedras.
Zhonias, no entanto, não buscava explicações. Ele era a autoridade máxima daquele distrito, o mais alto grau de verdade e ordem que restava naquele território moribundo. E naquele momento, sua fúria não era apenas esperada — era necessária.
Do outro lado do pátio, sentado num banco de mármore gasto pelo tempo, Hunio Zensata observava tudo com uma serenidade quase insultuosa. A fumaça espiralava lentamente da xícara quente que ele segurava entre os dedos, e o aroma forte do café recém-passado parecia ser o único traço vivo naquele ambiente militar carregado de tensão.
Ele inspirou fundo, apreciando o cheiro como quem saboreia a ironia do momento. Aquilo era um espetáculo.
A cada nova aparição do Lich, a cúpula militar de Sterf reagia da mesma maneira: pânico disfarçado de estratégia. Colocavam homens para lutar contra caveiras, como se a repetição da vitória pudesse se converter em progresso. Como se ossos animados pudessem ensinar disciplina.
Para Hunio, era entretenimento puro.
— Parece feliz hoje — disse uma voz suave ao seu lado.
Era Sonia. Sentou-se com elegância descuidada, cruzando as pernas sobre o banco de pedra e pegando a segunda xícara de café. Sua armadura de couro leve rangeu discretamente, e ela inclinou o corpo para trás, os olhos passeando sobre a mesma cena que Hunio observava.
— É porque ele está gritando feito um lunático ali, não é?
Hunio sorriu, sem tirar os olhos do pátio.
— Me conhece o suficiente pra saber que quando alguém faz merda, eu me divirto sozinho.
Tomou mais um gole da bebida, sentindo o calor descer lentamente pela garganta.
— Olhe para eles, Sonia. Estão levando bronca por causa de um erro que não cometeram diretamente. Estão sendo moídos pela incompetência do próprio chefe. Isso… isso eu adoro.
Ela revelou um sorriso discreto, quase nostálgico, e bebeu também. O gosto amargo parecia combinar com a lembrança que pesava em sua voz.
— Fico com vontade de voltar pro campo às vezes — disse, ainda observando os homens. — Mas a gente tem tantas coisas pra fazer diferente agora.
Hunio ergueu a sobrancelha, sem desviar o olhar da bronca pública que continuava. Zhonias agora agitava os braços, como se quisesse espremer os próprios subordinados até que restasse apenas eficiência.
— Não fique tão desanimada.
Sua voz era baixa, mas firme.
— Perder uma área é algo que se administra. É parte da guerra. Agora, perder aquela quantidade de homens… é outra história. Só um tolo deixaria Zhonias sem supervisão depois disso.
Ele virou lentamente a cabeça, encarando-a.
— Em campo ou fora dele.
Sonia respondeu apenas com um olhar pensativo. O som distante das reprimendas de Zhonias ecoava pelo quartel como tambores surdos de uma cerimônia de fracasso.
Hunio voltou os olhos para o horizonte. A fumaça da xícara ainda subia, tranquila, em contraste brutal com a agitação no centro do pátio.
— Mais cedo ou mais tarde, o alto-comando vai cobrar por isso. E não vai ser com palavras.
Sonia se limitou a assentir. Ambos sabiam que aquilo era só o começo. A falha daquele dia ainda cobraria muitos preços. E nem todos seriam pagos com café.
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