— Detesto esse lugar — murmurou Libertino, chutando um graveto seco que quebrou no ar como um osso velho. Ele cruzou os braços, bufando, e lançou um olhar para trás. A torre de Elbag parecia recém-saída de uma pintura militar: restaurada por mãos obsessivas dos pedreiros imperialistas, erguida com linhas limpas e austeras, uma arquitetura que não perdoava o erro humano.

    Tinham enviado até mesmo uma arquiteta daquela vez. Ele lembrava dela. Fria como a pedra que assenta, mas com olhos que viam tudo. E mesmo com todo o esforço, mesmo com a perfeição renovada das muralhas… aquilo continuava sendo um lugar horrível.

    — Mesmo sendo bonito, é uma merda de lugar — falou de novo, quase cuspindo o desprezo com a língua.

    À sua frente, a noite permanecia intocada. As luzes da torre mal ousavam tocar a escuridão ao redor, criando um contraste incômodo. Libertino olhou para o céu. As estrelas brilhavam como sempre: distantes, imóveis, magníficas em sua indiferença. Nem mesmo lutavam para existir. Apenas estavam ali.

    Ele, por outro lado, parecia fincado naquele território como uma árvore retorcida num campo de guerra. Preso.

    — Libertino — chamou uma voz suave atrás dele.

    Ele virou devagar, sem surpresa. Lizbele acenava com uma das mãos, o rosto iluminado apenas pela lanterna que trazia junto ao corpo. O cabelo preso num coque simples, a postura leve como quem não carrega armas.

    — Está quase na hora de jantar. Vai querer comer o quê hoje?

    Libertino demorou para responder. Um sorriso surgiu no canto da boca, quase sem intenção.

    — Nem te conto.


    Veron rastejou pelo matagal inclinado, mantendo os ossos do pé rente ao chão para não erguer nem poeira. A vegetação ali era escassa, seca e baixa, ideal para camuflagem. À frente, as estruturas da torre surgiam como um monólito engolido por sombras, mas a luz interna desenhava perfis nas frestas.

    Ele parou onde a terra cedia levemente, ajoelhando-se com controle absoluto até as juntas encontrarem o pequeno declive. Sua espada foi cravada à sua frente, ereta como uma estaca de concentração. O metal parecia absorver a noite ao redor.

    Não havia vento. O ar era parado. Apenas insetos ecoavam no breu distante. Mas, da torre, vinham sons — não de vigília, nem de alarme. Murmúrios baixos. Conversas. Risos abafados.

    Lá dentro, pensou Veron, o mundo ainda acreditava estar seguro.

    Amin deveria entrar pela lateral norte, onde os esgotos estavam vedados apenas por placas frágeis. Mas o tempo de infiltração exigiria que Veron criasse a distração exata. Não grande demais. Apenas precisa.

    Então ele escutou algo.

    Vozes. Próximas. Do lado leste, numa parte da torre onde a arquitetura formava um recuo sem janelas, apenas uma sombra côncava, quase uma alcova esquecida. Ele se moveu até lá com precisão, deslizando como um vulto de guerra. O espaço era apertado, escuro, e os sons agora vinham claramente.

    — Está doendo um pouco, Libertino — disse a mulher. A voz era abafada, mas não tensa. Era o tipo de frase dita com familiaridade, com intimidade forçada pelo hábito.

    — Tira, por favor.

    — Estou quase acabando. Só… — ele fez força, e a mulher soltou um leve gemido de incômodo — Isso. Assim está bom?

    Veron não perdeu tempo. O momento era perfeito.

    Aproximou-se de uma das estacas cravadas no canto do recuo, restos de uma barreira de contenção antiga, agora abandonada. Com delicadeza, enfiou a ponta da espada por dentro da madeira seca e começou a torcer lentamente. Cada giro fazia um som baixo, como o ressoar de um tambor de guerra sendo afinado: três segundos entre cada estalo, três segundos para ser ouvido, não notado.

    Então, ele começou a se arrastar para dentro da torre.

    Seu corpo tombava com a ilusão de exaustão. A perna direita parecia inútil, arrastada com peso morto. O braço que segurava a espada tremia como se estivesse prestes a soltá-la. A cabeça pendia para o lado, sugerindo um estado entre a inconsciência e o colapso.

    Era uma performance.

    Um esqueleto ferido. Um retorno acidental. Uma presa, para atrair os predadores.

    Veron era um general em carne de mentira.

    A espada arrastada, o olhar torto. Ele viu o homem sair do escuro, ajeitando o feixe da calça enquanto a mulher atrás vinha ajustando a sua própria. Os dois não ficaram com medo na hora que o viram.

    Somente uma risada.

    — Ah, é um esqueleto. — O homem se virou. — Pode pegar minha espada ai no canto?

    Veron avançou no momento que os dois viraram para o outro lado. Sua espada fez um giro completo, arrastando para cima.

    A mulher virou-se e ficou travada. O corpo de Libertino estava caído, o sangue jorrando de um corte que o abriu quase que completo, indo da cintura ao ombro. A boca dele ainda se mexia, pedindo por ajuda.

    — Ajuda — ela soltou um berro. — Alguém me ajuda.

    O punho de Veron fechou-se. Ele saltou para frente, no meio da escuridão e socou a cabeça dela, expulsando sua raiva e acertando a parede da torre atrás de si. O choque causou um leve tremor, mas nada grave.

    A mulher caiu sentada com o crânio esmagado. O sangue jogou para fora, tocando os ossos do Caveira.

    — Próximo.

    Ele não passou pela escuridão, não saiu da vista dos outros. Veron tinha uma missão a cumprir, e faria isso de um jeito ou de outro. Acima de tudo, os faria pagar por estar tão irritado. Os humanos…

    — Me traíram.

    Ele pegou os dois mortos e os arrastou para a luz, jogando para perto da zona. O som havia diminuído, então, ele deu um passo para trás. O sensor novamente o pegou, e então, a sirene novamente começou a tocar.

    Dentro daquela torre, guerreiros que ele não conhecia, não fazia ideia de onde vieram, mas pagariam. Por isso, ele encaixou sua espada no chão, ficando entre os dois corpos, fixo para a direção da porta e esperando.

    — Próximo — disse novamente quando a porta se abriu. — Quem vai ser o próximo?

    — É um esqueleto? — um dos espadachins saiu de forma despretensiosa, dando uma risada. — E está achando que é grande? Isso é novo. Eu quero lutar contra ele.

    Veron observou que eram praticamente seis deles, usando armas diferentes, mas segurando de maneira igual. Treinados pela mesma pessoa, pensou.

    Ele chutou o corpo da mulher ao lado dele. O corpo tombou um pouco, revelando o rosto esmagado, sem os olhos ou nariz, tudo desfigurado. E o sorriso no rosto deles mudou na mesma hora.

    — Próximo — repetiu com ardor. — Venha.

    Ficaram estáticos. Não tinham ouvido da primeira vez, pelo que Veron percebeu, então, sacaram as armas, colocando-as na frente do rosto.

    — Ele… acabou de falar? — O espadachim ergueu sua arma até frente da cabeça. Veron identificou seu estilo na mesma hora. ‘Espada Flutuante’, um jeito de cortar o inimigo facilmente. — Tem algum relato de algum esqueleto que fala?

    — Não recebemos nada da base — o grandalhão girava o machado na mão, mas sem pretensão de avançar. Ele estava o sondando, Veron sentiu. Esse devia ser o líder. — Quero que um de vocês…

    — Não vão sair daqui com vida — a voz do esqueleto rasgou o meio da sirene. — Vão morrer aqui, com esses dois. Venham, vermes. Venham logo. Estou entediado, quero uma batalha. Quero ver quem são os covardes que se escondem… aqui.

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