Capítulo 15: Armadilha (III)
— Continuem avançando — ordenou Pokop, a voz rouca, arrastada, carregada pelo peso dos golpes que havia sofrido momentos antes. O som parecia rasgar-lhe a garganta. Sua respiração era pesada, cada palavra exigia esforço. Por isso, Veron manteve-se próximo, protegendo seu flanco esquerdo.
A onda de esqueletos marchava com passos duros, esmagando a lama e a neve sob os pés, e se espalhava em direção ao lado esquerdo do campo de batalha, onde o segundo Cavaleiro Humano lutava. Aquele homem, de armadura marcada por cortes e fuligem, erguia a espada com precisão, cortando os mortos-vivos e arremessando ossos ao ar como estilhaços.
— Não pedi por ajuda, esqueleto — rosnou Pokop, sem virar o rosto.
— E eu não pedi permissão para ajudar — respondeu Veron, firme, sem perder o ritmo da marcha.
Ele sabia que perder Pokop seria um golpe devastador para o Lich. Manter aquele comandante vivo era mais do que uma questão de estratégia; era vital para a moral das tropas. Pokop representava força, e os humanos sabiam disso. Cada vez que viam um de seus Cavaleiros recuando ou gritando por socorro, a confiança deles se esfarelava. E Veron queria que aquilo continuasse acontecendo. Queria ver esse medo se infiltrando nos olhos deles, nos gestos, nos gritos.
Ele quase desejou poder ler a mente dos inimigos, apenas para saborear o momento.
— O Senhor ordenou que atacássemos — insistiu Pokop. — Por que derrotar esses primeiro?
— Deixá-los com medo — respondeu Veron.
O segundo Cavaleiro resistia mais do que o previsto, abrindo caminho entre os esqueletos com golpes circulares, derrubando fileiras inteiras. Mas os ossos rachados e espalhados pelo chão se recombinavam em poucos segundos, remontando corpos deformados que voltavam a atacá-lo. Era uma dança repetitiva, um ciclo interminável.
— E quando esse cair também, não iremos avançar — continuou Veron. — A trincheira é o limite até onde podemos ir.
Pokop o encarou por um instante, franzindo o cenho.
— O Senhor…
— Eles irão usar a Magia Branca para nos enfraquecer assim que atravessarmos de novo — explicou Veron, sem desviar o olhar do inimigo. — Lutar no terreno deles é desvantajoso. Primeiro, precisamos que entendam que podemos pensar antes de agir.
Pokop, sem compreender totalmente a lógica, balançou a cabeça num gesto de desaprovação.
— O Senhor não vai gostar disso.
— Eu me viro com ele depois — rebateu Veron, seco. — Se puder ordenar que eles não avancem, será melhor. A Magia Branca precisa ser ativada antes dos Inibidores de Mana.
O segundo Cavaleiro avançava ainda com fôlego, a espada cintilando com manchas frescas de sangue, quando um golpe traiçoeiro veio pelas costas.
A lâmina de uma lança atravessou-lhe a perna esquerda, rasgando músculos e nervos num único estalo seco. A dor explodiu como fogo sob sua pele, e seu grito ecoou pelo campo apenas por um segundo antes de ser cortado pelo som dos ossos marchando.
Ele tombou de joelhos, arfando, tentando firmar o escudo para bloquear o ataque seguinte. Mas já era tarde. Uma dezena de armas caiu sobre ele ao mesmo tempo — lâminas, machados, lanças — descendo com a fúria de uma tempestade. Metal batendo contra metal, carne sendo cortada, ossos sendo esmagados.
Diferente de Jon, ele não teve o privilégio de uma morte limpa. Os esqueletos não conheciam misericórdia. Eram precisos quando precisavam ser, mas naquele momento foram apenas brutais, repetindo o golpe muito além do necessário, até que o corpo fosse apenas um monte irreconhecível de carne e ferro retorcido.
Quando o último estremecimento do corpo cessou, o campo de batalha mergulhou num silêncio opressivo. Nenhum pio ecoou do Deserto ou das trincheiras. Até o vento pareceu hesitar.
Os esqueletos pararam de imediato. Não foi por cansaço — mortos não cansam —, mas pelo punho erguido de seus Comandantes. Um gesto seco, sem pressa, que fez centenas de crânios voltarem-se na mesma direção. Era o sinal inequívoco para interromper a marcha.
Os humanos, no entanto, não sabiam como reagir. Perderam dois dos melhores guerreiros em questão de minutos. Aquele silêncio não trazia alívio, apenas uma tensão crescente, como se o inimigo estivesse saboreando a pausa.
Veron, imóvel, calculava as possibilidades. O próximo movimento poderia quebrar o moral deles de vez — ou desperdiçar a vantagem. Escolheu se reunir com Pokop, mais à frente, passando por fileiras imóveis de mortos-vivos que o acompanhavam com o vazio dos olhos ocos.
— Os humanos são fortes coletivamente — disse ele, sem rodeios. — Mas se protegem em níveis. Aqui embaixo, todos os soldados são pequenos vermes que se movem por ordem dos que estão lá em cima. Está vendo?
Pokop seguiu o olhar de Veron e focou na estrutura elevada, uma construção de madeira protegida por soldados de uniforme cinza e verde, que destoavam do resto.
— Aqueles mandam nos vermes? — perguntou, o tom baixo mas carregado de interesse.
— Eles ordenam, os vermes obedecem. Mas se os vermes têm medo, não podem fugir. Por isso aqueles homens governam mais do que o campo de batalha, governam as vidas deles. — Veron pousou a mão no cabo da espada, os dedos firmes. — E são eles que produzem a Magia Branca que nos enfraquece, irmão.
Pokop compreendeu a lógica, mas ainda franzia o cenho.
— Por isso pediu para esperar?
— Sim — respondeu Veron, sem hesitar.
Nas trincheiras, o silêncio parecia um inimigo próprio. Cada soldado sentia o peso dele nos ombros, como se a própria ausência de sons fosse um prenúncio de morte.
Alguns mantinham as mãos trêmulas sobre as armas, o metal frio suando com a umidade da respiração acelerada. Outros olhavam para o horizonte, fixos nos crânios imóveis, tentando encontrar algum padrão naquele exército de ossos — mas a verdade era que não havia padrão algum, apenas uma ordem desconhecida que os mantinha imóveis, esperando.
O cheiro metálico do sangue dos Cavaleiros mortos ainda estava no ar, misturado com o odor seco e adocicado da poeira do deserto. Para muitos, aquele cheiro trouxe lembranças de outras batalhas, de corpos de amigos caídos, mas a diferença é que, dessa vez, não havia um único grito humano para se sobrepor a ele.
— Eles… pararam? — murmurou um soldado, a voz mais um sopro do que uma pergunta.
— Estão esperando… alguma coisa — respondeu outro, sem tirar os olhos de Veron e Pokop, que conversavam a poucos metros da linha de frente.
A construção de madeira — a chamada torre de comando — se tornara o ponto de fuga de todos os olhares nervosos. Lá dentro, os oficiais tentavam não demonstrar o mesmo medo que corria pelo sangue de seus homens. Um deles, um veterano de barba grisalha, limpava o suor da testa compulsivamente, mesmo sob o vento cortante do deserto. Outro mantinha as mãos firmes sobre a mesa, estudando mapas, mas não lia nada. Apenas fingia.
O silêncio dos mortos-vivos era pior do que o ataque. Quando avançavam, havia algo para reagir, algo para odiar, algo para matar. Mas parados assim… era como encarar a lâmina de uma guilhotina suspensa, sem saber quando iria cair.
Mais ao fundo da trincheira, um grupo de jovens recrutas trocava olhares rápidos, evitando falar do óbvio: dois Cavaleiros mortos em minutos. Homens que, para eles, eram lendas vivas, figuras que pareciam invencíveis… até aquele instante.
O medo não corria apenas entre os soldados rasos. Na torre, a conversa era seca e urgente:
— Se atacarmos agora, eles quebram nossa linha. Se ficarmos, eles vão nos cercar — disse um dos comandantes.
— E se recuarmos, a cidade fica exposta — rebateu outro.
Lá fora, Veron ainda não mexera um músculo além do necessário para falar com Pokop. O gesto simples, o punho ainda erguido, era suficiente para manter centenas de mortos-vivos imóveis, e para transformar o estômago dos humanos num nó cada vez mais apertado.
— Como saberemos que eles vão usar a Magia Branca? — perguntou Pokop, curioso. — Como tem tanta certeza?
— Perder uma vez fez com que eles ficassem pensativos. Eles foram derrotados dentro da própria casa. Tiveram muitos mortos e feridos. Tiveram armas e armaduras roubadas. E não conseguiram entender o porquê. Humanos pensam nas possibilidades de morrer e querem se precaver a todo custo.
Um dos Oficiais dos humanos brandiu algum tipo de ordem. A voz dele não foi alta o suficiente para Veron entender. Segundos depois, a resposta foi óbvia e clara.
— A ordem foi dada — disse, sem emoção.
Segundos depois, o ar pareceu vibrar, como se uma maré invisível estivesse subindo pelo campo de batalha. O chão sob os pés dos mortos-vivos começou a brilhar com linhas finas, símbolos antigos gravados na terra e escondidos sob a areia. Uma luminosidade branca e pura se espalhou, como raízes procurando vida para se alimentar.
Os esqueletos próximos à linha começaram a chiar, suas juntas rangendo, e alguns cambalearam como se algo estivesse drenando o vigor de seus ossos. Pokop sentiu o impacto mesmo a metros de distância — não era dor, mas um peso esmagador, a própria existência tentando empurrá-lo para dentro de um poço sem fundo.
— A Magia Branca — murmurou Veron, confirmando o inevitável.
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