Capítulo 16: A Morte Cadavérica
— Usem os inibidores — ordenou Plokop, a voz arrastada pela dor. Seu corpo já cedia, um joelho fincado no chão, mas seus olhos, ofuscados pela luz branca, se voltaram para o lado.
Veron permanecia ereto. Nem uma oscilação, nem um tropeço. O esqueleto se erguia como uma muralha viva — ou melhor, morta — contra aquela investida de pura Magia Branca. O brilho o envolvia, consumia suas bordas, mas sua postura não vacilava. Era como se o ódio que o sustentava fosse mais denso do que a própria luz.
As palavras do Lich ecoaram na mente de Plokop como um sussurro antigo:
“Alguns dias, quando minha hora estiver perto de terminar, eu espero que vocês encontrem um novo mestre.”
Plokop engoliu seco, incapaz de afastar a lembrança. Aquela imagem — Veron de pé, imóvel, sustentado apenas pela raiva — era a mesma que o Lich descrevera em seus registros. O presságio tomando forma diante de seus olhos.
— Aquele que carregará a dor de ser morto, mas a raiva da própria vida na medida em que a opera… — o Lich costumava recitar em seus períodos de meditação, enquanto as velas tremulavam em seu salão. — Por isso, eu ainda preciso me manter vivo. Para recebê-lo.
“Por que estou pensando nisso agora?”, Plokop se perguntou, sentindo o peso esmagar-lhe os ossos. O olhar vazio de Veron se voltou para ele — e naquela órbita sem carne, havia algo de inevitável.
Plokop sabia: não iria durar. Mas já não importava.
— Ativem. — A ordem de Veron foi firme, cortante, sem desespero.
De imediato, fileiras de esqueletos correram pelas suas costas. As juntas rangiam, os ossos se chocavam entre si, mas a disciplina era impecável. Em sincronia, ajoelharam e cravaram no solo os inibidores de ferro, placas rúnicas que tilintaram ao tocar a terra.
O céu explodiu. A camada branca que antes brilhava límpida tremeu como um véu rasgado. O borrão se espalhou em ondas, distorcendo o ar, transformando a clareza em caos. As runas nas placas pulsavam, sugando a essência mágica como um buraco no tecido do mundo.
A força dos humanos ruiu junto com a luz.
Do outro lado do campo, magos e sacerdotes se desesperaram. Os cajados foram erguidos, as mãos lançaram sinais, as vozes se juntaram em cânticos frenéticos. Nada. Nem um lampejo, nem uma faísca, nem um sopro de poder.
Eles estavam nus.
Veron observava. Ele conhecia aquele pânico. Durante sua vida, jamais permitira que um mago de seu grupo morresse — não porque acreditasse na fragilidade deles, mas porque eram o coração moral das tropas. Quando um mago tombava, todos os guerreiros perdiam a fé.
E agora, do outro lado, a lição se repetia.
— Matem os magos, irmãos. — Sua voz ecoou pelo campo como uma sentença.
E os mortos avançaram.
Do alto da duna, os esqueletos ergueram suas espadas, lanças e machados, os ossos rangendo em uníssono. Os olhos vazios refletiam a fúria de seu comandante, e o som metálico do bater das armas contra escudos roubados ecoou pelo deserto como um tambor de guerra.
E então, eles avançaram.
A areia foi despedaçada sob a corrida frenética dos mortos. Fileiras inteiras desciam em ondas, como enxames de ossos vivos, os gritos de guerra ecoando em guinchos guturais. Cada passo era marcado por uma cadência irregular, mas implacável, como se o próprio deserto estremecesse diante daquela avalanche.
Os humanos, nas trincheiras, titubearam. Muitos ainda brandiam as armas, mas seus olhos denunciavam o terror. O brilho da Magia Branca havia se apagado, e a escuridão parecia mais densa do que nunca. Os magos recuaram instintivamente, pressionando-se contra os guerreiros de infantaria que, por sua vez, não sabiam se corriam ou se fincavam posição.
O impacto veio como um desmoronamento.
A primeira linha humana sequer conseguiu erguer as lanças corretamente: esqueletos saltaram da descida e se lançaram sobre eles como bestas famintas. Um homem foi arrastado para trás quando duas adagas cravaram-se em sua garganta; outro teve o peito atravessado por uma lança ossuda, e seu grito foi engolido pela massa que se chocava contra ele.
As armas tilintavam em choques secos. O aço dos vivos contra o ferro enferrujado dos mortos. Mas cada humano derrubado era substituído por três esqueletos que se jogavam em cima dele, esmagando, rasgando, mordendo, reduzindo a carne a nada.
O desespero espalhou-se em segundos.
— Mantenham a linha! — berrou um dos oficiais humanos, mas sua voz foi soterrada pelos berros dos soldados sendo despedaçados.
Espadas se erguiam apenas para serem arrancadas das mãos, escudos eram dilacerados por machados que não hesitavam. Os mortos não buscavam glória, não buscavam honra. Apenas obedeciam.
No meio da confusão, um grupo de magos tentou se reagrupar, recuando entre as fileiras. Mas os esqueletos haviam entendido a ordem de Veron: ignoraram parte da infantaria e avançaram direto sobre eles. Um após o outro, os conjuradores foram derrubados, suas túnicas rasgadas, seus corpos sendo esmagados sob lâminas e ossos.
A trincheira, antes organizada, se converteu em um caos absoluto. O choque inicial dera lugar a um massacre. O deserto parecia gritar junto com os vivos, enquanto os mortos se afundavam ainda mais no coração da linha inimiga.
E do alto, Veron observava, aquele era somente o primeiro golpe. O primeiro golpe que os humanos sentiriam ao terem feito dele seu inimigo. O primeiro de muitos.
Ele puxou a espada para frente, esperando Plokop ficar de pé e apontou com a arma na direção do palanque. A madeira tremia, mesmo distante, por conta do avanço da mancha branca no deserto. Eles não tinham ideia do que enfrentavam.
— Aquele que está acima é o nosso alvo — disse Veron. — Ele quem é enviado para nos testar, para nos matar. Quer fazer as ordens, Capitão?
Plokop estreitou os olhos, fixando-se no homem que brandia ordens com os braços erguidos, gritando em meio à balbúrdia. Era como se cada comando dado pelo oficial humano inflamasse o ódio que corria por suas veias secas. O desespero era evidente: os soldados cambaleavam, alguns largavam lanças no chão, mas o homem ainda berrava, tentando costurar com voz e autoridade aquilo que já havia se despedaçado.
— Comandante… — Veron o chamou novamente, sem desviar os olhos do palanque, onde o humano continuava a girar a cabeça, buscando manter as linhas organizadas.— Assim que os humanos sentirem o peso da derrota, vão tentar fugir. Sempre fogem.
Veron então moveu o braço, indicando com um gesto seco a retaguarda, onde grupos de esqueletos avançavam com pesados cilindros metálicos amarrados às costas. Cada passo fazia os inibidores ressoarem entre suas partes.
— Nossos irmãos levam os inibidores consigo. — O esqueleto voltou a encarar Plokop.— Faça com que eles lembrem do nosso mestre.
Plokop fechou a mão em torno do cabo da lança, os nós dos dedos estalando como ossos secos. O ódio já não era apenas dele, mas algo compartilhado com cada um daqueles soldados que aguardavam a ordem final. Ele ergueu a lança e bateu sua ponta no chão, o som ecoando como trovão nas trincheiras mortas.
— Pode apostar nisso.
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