Veron não acompanhou os Comandantes logo de início. Preferiu descer sozinho, passo após passo, deixando as botas afundarem levemente na areia seca do deserto. O vento levantava pequenos redemoinhos, arrastando poeira fina que colava nas juntas de sua armadura gasta. Não havia pressa em seus movimentos. Sabia bem que, quando os esqueletos entrassem nas trincheiras, o cenário se tornaria um amontoado de confusão, gritos e sangue.

    À frente, Plokop e o outro Comandante já avançavam, abrindo o caminho. Eles seriam os primeiros a empurrar as fileiras, e logo depois os Magos humanos se veriam obrigados a recuar. Isso facilitaria a aproximação até o palanque, onde ficava o comando e, principalmente, as alas estratégicas que guardavam as informações que interessavam a Veron. Era isso que ele buscava.

    Parou por um instante quando a primeira barreira de soldados cedeu. O estalo da madeira e o grito abafado de dois homens foram engolidos pelo som seco da lança de um esqueleto atravessando ambos ao mesmo tempo. No espaço curto que se abriu, outros três mortos invadiram o buraco na defesa, empurrando escudos e ombros, tomando o lugar dos vivos.

    O intervalo criado alargou-se depressa. Os corpos humanos, antes coloridos por armaduras polidas, escudos pintados e capas manchadas de poeira, foram tomados por aquele cinza constante dos ossos e ferro velho. A linha defensiva, antes organizada, já se misturava em um borrão de movimentos desordenados.

    Segunda vez que eles perdem. Na próxima, não vão se deixar surpreender tão fácil.” O pensamento ecoou calmo, mas certeiro.

    A segunda barreira não durou mais do que alguns minutos. Plokop avançou com violência, atingindo dois homens com as próprias mãos, os dedos cravados no pescoço de ambos. O outro Comandante se juntou no mesmo instante, e o impacto fez os soldados recuarem em pânico. Atrás deles, esqueletos usavam espadas e machados para derrubar o restante, o som metálico dos golpes misturado a gritos curtos.

    Veron desceu mais rápido, aproveitando o desmoronamento das linhas. Logo estava no fundo da trincheira. Dali, o cenário se abriu: dezenas de soldados fugiam, alguns derrubando escudos no chão para correr mais leves, outros tropeçando em corpos caídos. A maioria seguia em direção ao lado direito, onde o palanque de madeira ainda se erguia, com as construções improvisadas de alojamento ao redor.

    Veron observou o fluxo, respirou fundo e virou a cabeça para a esquerda, avaliando os espaços vazios que se formavam.

    — Se eles estão lá, então… — murmurou, desviando o olhar. — Eles estão lá.

    Soldados tropeçavam em corpos, alguns ainda vivos, estendendo as mãos na tentativa inútil de se levantar antes de serem pisoteados pelos próprios companheiros.

    No fundo da trincheira, a movimentação era clara: a maior parte dos humanos fugia em direção ao palanque, tentando proteger o que ainda restava de comando. O capitão no alto gritava ordens, a voz rouca rasgando o ar seco, mas poucos soldados pareciam de fato escutá-lo. Os que ainda mantinham formação batiam escudos uns contra os outros, mas o recuo era visível a cada passo.

    Veron desviou de dois corpos largados contra a parede de terra batida e continuou descendo. O cheiro de suor e sangue misturava-se à areia solta que o vento trazia de cima. Ele sabia que, enquanto o pânico se concentrava na defesa do palanque, as alas estratégicas — aquelas tendas improvisadas e mal disfarçadas na lateral esquerda — ficavam vulneráveis. Se havia documentos, mapas ou registros, seria lá.

    Ainda assim, o palanque era o ponto que chamava atenção. A estrutura de madeira rangia sob o peso dos oficiais, que gesticulavam sem parar. Um deles tentava organizar a retirada de parte das tropas, outro gritava por reforços que jamais chegariam. De cima, olhavam a cena de seus homens sendo esmagados e empurrados contra a trincheira. A cada falha na barreira, mais esqueletos se infiltravam, aumentando o desespero.

    Veron observou de relance enquanto caminhava. Plokop já estava engajado na linha de frente, derrubando escudos com golpes secos. O outro Comandante o acompanhava, enfiando a lâmina curta entre as juntas das armaduras humanas. Os dois abriam caminho em meio ao aperto, e os esqueletos seguiam atrás, expandindo a fenda.

    Mais alguns passos, e Veron se aproximou da lateral esquerda da trincheira. Dali, podia ver as tendas de couro e lona armadas sobre a areia. Guardas estavam postados em frente, mas hesitavam. Alguns olhavam para trás, em direção ao palanque, esperando ordens; outros já corriam em debandada, largando lanças pelo chão.

    Ele parou um instante, avaliando. O palanque era barulhento, confuso, chamava a atenção de todos. Mas era naquelas tendas, afastadas, que os humanos guardavam o que ele realmente queria.

    Veron ergueu a espada, não para atacar de imediato, mas para indicar a direção aos esqueletos que vinham se arrastando pela trincheira atrás dele.

    — Para lá, irmãos — apontou.

    O som dos ossos correndo pelo deserto seco se misturou ao das ordens humanas quebradas. Enquanto os soldados se amontoavam no palanque, gritando, tentando manter um mínimo de controle, Veron seguia rumo às alas estratégicas, certo de que, quando o caos terminasse, os vivos não teriam mais nada a proteger.

    Os esqueletos se lançaram contra eles, correndo pela areia com armas erguidas, sem hesitar. O impacto foi seco. Lâminas batiam contra escudos, lanças cravavam em costelas e atravessavam crânios, mas não o suficiente para deter a onda. O chão logo se encheu de corpos vivos misturados aos mortos que já estavam caídos.

    Veron atravessou aquela cena sem pressa, caminhando entre a confusão. Uma lança passou a poucos centímetros do seu ombro ao ser desviada por um dos irmãos de ossos; um humano caiu na sua frente, derrubado por uma espada curta que lhe atravessara o estômago. Ele simplesmente passou por cima, os olhos fixos na tenda maior, montada com madeira reforçada e lona bem costurada, diferente das outras.

    O interior tinha cheiro de couro curtido e tinta fresca. Mapas estavam pregados às hastes de madeira, mas o centro chamava a atenção: um baú reforçado, com fechos de ferro. À frente dele, parado, um homem sozinho. Não era soldado comum. Vestia um gibão de couro limpo, bem cuidado, e carregava uma espada curta embainhada, ainda não puxada. O olhar era fixo, sério, sem tremor.

    Ele não recuou.

    Ficou entre Veron e o baú, como se sua única função ali fosse guardar aqueles registros, nem que o preço fosse a própria vida.

    A tenda estava abafada, o calor preso debaixo da lona misturado ao cheiro de couro velho e da madeira recém-cortada. O homem se ergueu devagar, como se calculasse cada movimento antes de mostrar qualquer intenção. Sua mão se posicionou próxima ao cabo da espada, os dedos tensos, mas sem puxá-la de imediato. O olhar firme não revelava medo, mas havia algo de cauteloso, quase como se estivesse diante de um animal estranho.

    — Nunca vi um esqueleto que sabia o que estava fazendo — disse, a voz baixa, mas marcada pelo esforço de soar firme. — Alguns dizem que é a evolução natural das coisas. Até mesmo monstros falariam algum dia, quem sabe?

    Veron inclinou levemente a cabeça e deixou escapar um sorriso torto, discreto, sem pressa.

    — Quem… sabe.

    A expressão do homem mudou na mesma hora. O ar que havia antes de dúvida ou curiosidade deu lugar a rigidez. Agora não havia espaço para confusão: ele entendia que aquele esqueleto não era apenas um inimigo qualquer que se jogava para a morte. Havia lógica por trás, havia consciência.

    Veron percebia isso também. Por isso estava ali. Assim que sua voz fora ouvida, não havia mais retorno: o homem teria de tentar capturá-lo, e Veron não poderia deixar testemunhas. Aquilo transformava o encontro em um único caminho.

    — Como… você? — o homem balbuciou, ainda sem se mover, mas com os dedos já firmes no cabo da arma.

    Veron ergueu a espada devagar, as duas mãos se fechando sobre o punho. Moveu os pés, abrindo um pouco a base, como se estivesse se assentando na areia invisível sob o tapete da tenda. A postura não era exagerada, mas clara o bastante para revelar que estava preparado.

    — É a evolução natural das coisas — respondeu, sem pressa. — Assim como a morte é para os vivos.

    O silêncio se alongou por alguns segundos. Do lado de fora, o barulho da batalha era abafado, como se a lona filtrasse gritos, choques de ferro e o arrastar de corpos. Ali dentro, apenas a respiração do homem e o ranger sutil dos ossos de Veron se movendo.

    E isso era o que Veron mais queria. Uma verdadeira batalha para amenizar sua raiva… e sua dor.

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