Capítulo 6: Mapa
Veron retornou ao covil com passos pesados, cada um ecoando baixo pelos corredores de pedra úmida da caverna subterrânea. A batalha havia terminado, mas ele não trazia nenhuma sensação de vitória. Apenas o peso da espada que ainda segurava, firme na mão ossuda — uma lâmina que não lhe pertencia. Pertencera a um colega, alguém que outrora caminhava ao seu lado sob um juramento de vida e honra. Alguém que acreditava que o verdadeiro exercício da existência era resistir.
Quando chegou ao centro da sala, o teto baixo gotejando esporadicamente nas poças irregulares do chão, ajoelhou. A frieza do solo se colou aos seus ossos. Seu braço cedeu. A espada escorregou de seus dedos e caiu com um som seco, metálico, como se selasse um ciclo inteiro de lembranças enterradas.
Ele ficou ali por alguns instantes, imóvel.
Treinado desde os confins do inferno, forjado entre dores e derrotas, havia sido chamado por muitos de espadachim medíocre. Poucos acreditaram que alcançaria algo além da repetição mecânica da lâmina. E, mesmo assim, à força, à fúria, e ao puro desespero, ele havia chegado ao nível dos verdadeiros mestres.
Mas naquele dia, ao olhar nos olhos dos homens que lutaram ao seu lado… não encontrou honra. Não encontrou lealdade.
Encontrou ganância.
A lembrança fez sua mandíbula ranger.
— Não — sua voz escapou rasgada, arranhando a garganta seca. — Nenhum deles era meu aliado. Nenhum deles.
Fechou a mão esquelética com força, os dedos rangendo um contra o outro como galhos secos. Abriu novamente, devagar, e estendeu-a em direção à espada caída no chão. Não era por respeito, nem por saudade — mas por justiça. Apenas aqueles que o deixaram para trás, que confiaram demais em sua habilidade e desapareceram esperando que ele retornasse por eles… talvez esses merecessem um título. O resto?
O resto eram sombras inúteis, merda ambulante vestida de carne. Obstáculos.
E obstáculos, se andassem, se respirassem, se ousassem olhá-lo nos olhos…
Veron os mataria.
Mas havia algo estranho naquela espada. Não apenas seu peso, mas sua origem. Strifer. Uma arma lendária, forjada para um único propósito: servir mãos hábeis, mente focada, espírito forjado em aço e tormento. O tipo de arma que não caía por acidente nas mãos de tolos.
Se ela havia aparecido nas mãos erradas… então o que havia acontecido com o verdadeiro portador?
Por que a lâmina de Strifer estava entre homens incapazes de manejá-la?
Antes que mergulhasse mais nas perguntas que corroíam sua mente, uma figura surgiu na entrada da caverna. A luz bruxuleante das tochas revelou o contorno de Amin, arrastando a perna quebrada e apoiando-se na parede úmida para entrar.
— Veron… Eu sabia que estaria aqui. Você… está bem?
Veron não respondeu de imediato. Em vez disso, firmou os dedos no cabo da espada, sentindo sua textura fria como se tentasse extrair dela uma resposta. Com um movimento seco, ergueu-se, os ossos estalando sob a tensão. Voltou-se para Amin com um olhar que, mesmo vazio, carregava impaciência.
— Estou — respondeu por fim. — O que foi? Por que está aqui?
Amin respirou como se ainda tivesse pulmões. Levantou a mão numa tentativa de gesticular, os dedos tremendo.
— O Lich ordenou que tomássemos aquela ala que você chamou de enfermaria. Nossos irmãos avançaram… mas logo depois, um grupo de humanos apareceu. Eles invocaram uma luz branca. Estranha… forte. Nos enfraqueceu por completo. Perdemos a posição.
Veron cerrou os dentes — ou o que restava deles. Suas costelas se moveram sob a tensão invisível de uma alma irritada.
— Não é de se espantar.
Olhou ao redor, buscando a bainha da espada. Nada. Não havia sequer um pedaço de tecido ou armadura sobre ele. Estava nu, da mesma forma que havia sido forjado e renascido ali, apenas os ossos e a raiva.
— Merda de corpo — resmungou. — Não importa. Arrumarei isso depois.
Voltou a encarar Amin, os olhos fundos projetando uma autoridade que transcendia carne.
— Diga ao Lich que ele precisa de alguém que saiba bloquear magia humana. Um usuário de selos, um conjurador, um inibidor de mana, tanto faz. Os humanos estão usando algo contra nós… e ele precisa se preparar.
Amin permaneceu parado, e sua mandíbula se abriu levemente, como se quisesse dizer algo… mas as palavras não vinham.
— O que foi? — a voz de Veron soou mais firme, carregada de fúria contida. — Diga logo a ele. E traga um mapa humano. Preciso de roupas também. Essas tralhas que usamos são inúteis. Não protegem nada. Só nos fazem parecer restos ambulantes de eras esquecidas.
O esqueleto concordou com um movimento rápido e desapareceu pela entrada, os passos ecoando nas pedras, apressado, como se quisesse se afastar antes que a paciência de Veron acabasse de vez.
Veron olhou uma última vez para a espada caída. Depois, para a escuridão à sua frente.
O mundo ainda tinha dívidas com ele. E agora, ele tinha um nome em mente.
Strifer.
Amin se ajoelhou diante do Lich com as pernas trêmulas, até seus ossos sentiam o peso daquele momento. O chão sob seus joelhos era negro e frio, moldado por séculos de magia obscura. O medo percorria suas vértebras como um veneno lento. Ele já havia enfrentado batalhas, cruzado muralhas humanas, assistido à destruição de fortalezas… mas nada, absolutamente nada, se comparava à presença do seu mestre.
O trono de espinhos no centro da sala não era apenas simbólico — era uma escultura viva de sofrimento. Os espinhos se moviam de tempos em tempos, se contraindo, respirando, enlaçando o corpo do Lich com reverência silenciosa. A estrutura inteira era feita de fragmentos de ossos fossilizados e magia líquida endurecida.
O Lich permanecia imóvel, encapuzado, o rosto oculto pela sombra eterna que carregava consigo. As velas negras espalhadas pela câmara emitiam uma luz turva, sem calor, que oscilava ao redor em espectros. Amin, ofegante sem pulmões, terminou de relatar o que Veron havia descoberto e solicitado.
Silêncio.
O Lich não respondeu de imediato. Sua cabeça, ainda encoberta pelo manto pesado, se virou lentamente — não para Amin, mas para outra figura à esquerda do trono.
Pokop.
O Comandante Esqueleto era uma visão impressionante por si só. Usava armaduras antigas tingidas de azul escuro, marcadas por runas que pulsavam levemente. Dois chifres dourados, surgindo dos lados do crânio nu, projetavam-se como marcas de autoridade entre os seus. Ele permaneceu em posição ereta, mas apenas sua cabeça girou com precisão mecânica quando ouviu a voz grave do Lich.
— Nós temos algo assim?
A pergunta flutuou no ar; uma sentença.
Pokop não respondeu de imediato. Virou lentamente o rosto, seu olhar vazio se voltando para a figura do outro lado: Payke, um de seus irmãos. Este, por sua vez, hesitou. Estava ereto, mas parecia menor à sombra do trono. A mandíbula de Payke se moveu lentamente antes de responder.
— Temos, Payke? — A voz de Pokop era firme, mas sem agressividade. Era um pedido por verdade e responsabilidade.
Payke baixou um pouco a cabeça, seu crânio marcado por rachaduras antigas que se espalhavam como raízes. Depois, ergueu-o outra vez e encarou o Lich diretamente.
— Não me recordo de nenhum dos nossos, além do senhor, que possua domínio sobre magia. Não existe um esqueleto entre nós que conjure ou resista a encantamentos. Somos guerreiros… e ferramentas. Nada mais.
Por um instante, a tensão aumentou. O ar pareceu congelar.
O Lich ergueu a mão lentamente, em um gesto sereno, mas inegociável. Payke silenciou imediatamente.
Um suspiro escapou por entre as sombras do capuz. Não era exatamente frustração, era cálculo, paciência, talvez algo mais antigo ainda.
— Amin. Esse é o seu nome, correto?
A voz reverberou nas paredes de pedra, profunda e múltipla, como se mil mortos falassem ao mesmo tempo. Amin engoliu em seco, mesmo sem garganta.
— Sim, meu senhor.
O Lich abriu a mão, e um pergaminho surgiu entre os dedos. O rolo parecia ancestral, selado com um emblema que se retorcia como se ainda estivesse vivo. A energia ao redor dele vibrava, tocando os dedos esqueléticos de seu senhor, mas não o queimando.
Ele estendeu a mão à frente, sem se mover do trono.
— Entregue isto ao seu irmão. Informe-o que, se ele conseguir recuperar algo que bloqueie a magia humana… então, eu realizarei um desejo dele.
O pergaminho flutuou, girando no ar lentamente, até repousar com leveza nas mãos de Amin.
Por um momento, o pequeno esqueleto não soube como reagir. Seus dedos apertaram o rolo com cuidado, com medo de amassar ou quebrá-lo — ou de ser queimado por dentro. As palavras do Lich… eram raras. Mas um desejo? Nunca esperara que seu rei, seu deus, desse uma chance assim a qualquer um de seus irmãos.
Ele abaixou a cabeça com reverência total, o rosto quase tocando o solo frio.
— Sim, meu senhor. Ele saberá. Juro que ele saberá.
E sem mais uma palavra, virou-se e correu, apressado, as vértebras sacudindo com o movimento. A câmara foi tomada novamente pelo silêncio ritualístico, onde apenas os ecos do passado se faziam ouvir.
O Lich permaneceu imóvel, sua mente mergulhada em alguma eternidade invisível. Pokop, atento, continuava a vigiar.
Na penumbra, a promessa feita — e o risco que ela carregava — havia sido selada.
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