Capítulo 10: Ainda somos amigos?

O silêncio. Algo que é um verdadeiro luxo nesse mundo. Tão raro quanto achar o verde em um planeta que foi transformado em aço e exploração até o seu núcleo. Algumas pessoas passam a vida toda sem experienciar isso, assim como nasceram para nunca sentirem o verdadeiro toque da luz do Sol. É um momento que Marcus pode desligar um pouco da mente e esquecer os problemas.
A água cai suja e morna sobre o corpo de Marcus. O chuveiro improvisado chia, vibrando como se fosse quebrar a qualquer momento, mas ele não se importa. O vapor enche o pequeno banheiro do esconderijo, abafando os ruídos da cidade lá fora. Água velha que está parada há anos. Isso significa que pode gastar sem se preocupar com a conta no fim do mês.
É o único momento em que ele consegue pensar sem ruído. Só ele, os ossos doendo, e a lembrança de tudo que deu errado.
Tudo é culpa dele. O plano falho para roubar o morro RedRock, Starboy ter matado pessoas, estarem em um cubículo longe da cidade. Isso tudo sem contar o que ele fez para conseguir um pouco de comida e mantimentos. Não… Pensar nisso faz o estômago dele começar a florescer com borboletas para todo o lado.
Starboy… Não dá para saber exatamente o que ele é, mas Marcus sente que estão mexendo com algo que não entendem completamente. O que ele fez com aqueles membros do Olmeca foi… brutal. Mesmo vivendo nessa cidade há quase vinte anos, Marcos nunca tinha visto algo tão brutal.
O sangue humano pingando, o som dos ossos se quebrando e da pele rasgando. Pior, os gritos de tortura e humilhação por misericórdia, que nunca veio. Tudo isso foi angustiante de se assistir, mesmo para alguém que vive da violência.
Um toque leve nas costas desperta Marcus do devaneio. Anika entra devagar, sem dizer nada, só escora na parede úmida e observa.
— Tem espaço aí? — ela pergunta, mas a pergunta já é resposta.
Marcus dá um passo pro lado. Ela entra debaixo da água com ele.
O calor do corpo dela e o da água se confundem. Por um segundo, os dois só respiram. Longe da sujeira do mundo, da mãe morrendo no quarto, do Jon com olhos vazios, do Starboy parado como uma bomba em espera.
— Acha que ele sente? — Anika pergunta baixo, olhando pro chão.
— Sente — Marcus responde. — A pergunta é o quê.
Silêncio.
— Acho que sabemos a resposta — Anika faz contato visual com Marcus. — Ele quer lutar. Todos sentimos aquilo.
Silêncio.
— É, mas o que ele sabe? É só uma…
Marcus começa, mas não consegue achar as palavras para o que quer dizer.
— Criança? — Anika volta a olhar para o chão e então fica em silêncio por alguns segundos, até que volta para completar. — Não dá para saber o que ele é.
Marcus reluta e então consente com a cabeça.
— Jon viu nele uma chance de vingança, uma arma. Você insiste em vê-lo só como um garotinho indefeso, Marc. Eu vi o jeito como olha para ele…
— O que você acha? — pergunta Marcus.
— Eu não sei — Anika admite com pesar nas palavras. — Mas fico preocupada com o jeito que ele se expressa. Aquela… aura pesada nas nossas costas, a vontade de se vingar… Tudo isso me assusta.
Silêncio.
— E se ele se virar contra a gente? — Anika completa, tirando um peso do coração.
— Talvez ele esteja só esperando uma ordem errada…
Marcus confessa e então vira o rosto. Será que a criança que ele enxerga não existe? Talvez Jon esteja certo de ver uma ferramenta.
Os pensamentos logo nublam a mente de Marcus. Ele precisa escapar disso e lentamente começa a se aproximar de Anika, envolvendo ela nos braços dele e apoiando a cabeça sobre a dela. Ambos fecham os olhos e dividem o calor um com o outro, a única coisa capaz de aquecê-los em um momento tão sombrio.
Jon ajusta a gola do casaco, dando olhadelas para saber se está sendo seguido. A discrição é o maior trunfo que possui agora, tirando uma pequena arma rosa, que o acompanha pelas ruas de Copa City.
Já está começando a escurecer. A forte luz se esvai cada vez mais. Na noite anterior, Marcus ficou encarregado de arrumar os mantimentos, hoje é a vez de Jon, mas ele não quer só isso. Todos sentiram mais cedo, Starboy sente o que estão sofrendo e quer ir para a guerra contra os Olmecas. E se é violência que ele quer, é violência que vai ter.
Jon se abaixa no canto de um beco, perto dos projetos onde vive. Ou vivia? Essa dúvida ainda bate na cabeça dele. É onde cresceu e fez toda a vida dele. É difícil andar por aqui de cabeça baixa e conferindo cada rosto que passa por ele. Starboy acompanha ele sem receio ou emoção. Na verdade, a cada alguns segundos Jon sente um calafrio na espinha, como se um tigre ameaçasse a vida dele, porém logo passa. É coisa do garoto? Se sim, é como se uma bomba ameaçasse explodir a qualquer segundo.
Que exploda neles. Jon pensa enquanto continua andando. Subitamente, ele para e o garoto rosado também. Eles finalmente chegam onde precisam. Um beco sujo entre alguns prédios do projeto. O que importa não é o lugar e sim quem está aqui. Um antigo amigo de Jon que deve dinheiro a ele e que agora, por um acaso, ficou conhecido por estar vendendo armas.
Fazer isso não é algo que deixa Jon orgulhoso, nem feliz, no entanto é o que a situação pede. É como a mãe sempre ensinou para ele: toda pessoa que quer crescer na vida precisa aproveitar cada oportunidade que aparece. Não importa o preço, apenas tome para si.
Antes, ficou com medo de cobrar o amigo, agora? Não precisa mais.
Jon entra com tudo no beco em direção ao sujeito, que está sentado em um caixote improvisado como banco, fumando um cigarro barato. Os passos pesados matam a discrição. Ele quer ser visto. O antigo amigo se surpreende com a chegada e esbanja um sorriso.
— Ei, Jon como ‘cê—
Não dá tempo para completar, Jon pega-o pela gola e o empurra contra a parede.
— Vim pegar o que é meu. — Jon expressa de forma resoluta.
— Era só um dinheiro, Jon. Eu ia te pagar… quando virasse. Mas agora é isso? Vem me ameaçar com boneco de massinha? — Chico indaga com um sorriso cínico no rosto.
Jon por um momento afrouxa as mãos. O que é que ele tá fazendo? Apesar de Chico estar devendo e não ser bom para pagar, os dois se conhecem há muito tempo. Isso é mesmo necessário?
Jon hesita e então ele sente uma injeção dentro do coração dele, o coração arder.
NÃO HESITE.
Ele ouviu alguém sussurrar dentro da mente dele. Alguém? Não. Pode parecer estranho, mas ele jura que foi a voz da mãe. Subitamente, Jon aperta novamente e então joga Chico no chão com extrema violência. Os caixotes amontoados quebram, revelando todo tipo de arma barata.
Chico geme de dor e então Jon desperta.
— Desculpa, eu não queria—
Antes que possa completar, o braço rosado atravessa o ar com uma velocidade absurda, acertando o estômago de Chico, que aos poucos levantava.
O corpo do homem voa contra a parede, se contorce. Ele vomita sangue. Um dente cai no chão.
Jonathan da Costa paralisa.
— Para… — Ele sussurra.
Starboy se aproxima de novo.
— PARA! — Jon grita.
Starboy congela.
Jon se abaixa do lado do amigo, desesperado. O cara tá vivo, mas quebrado. Chorando.
Jon encara Starboy. Pela primeira vez, tem medo.
Não do que ele pode fazer.
Do que ele já fez.
— Pegue as armas. — ordena Jon.
Talvez isso tenha sido necessário. Tempos difíceis exigem atitudes drásticas. Sim. É a sobrevivência dele, de Marcus, Anika e, mais importante, da própria mãe.
Starboy e Jon se juntam para pegar as armas derramadas no chão. A guerra está por vir e ele tá garantindo a sobrevivência de todos, mas ainda assim… isso é certo?
Antes de sair do beco, Jon para e pergunta:
— Ainda somos amigos? — Jon indaga, sem saber se fala com o cara no chão ou com a criatura rosa diante dele.
Algumas horas depois, Jon e Starboy chegam no esconderijo carregando bolsas. Anika vê os dois entrando e mais importante, percebe um pouco de sangue seco ao redor das mãos rosadas do garoto. Ela olha para o rosto de Jon.
— O que vocês fizeram?
Jon não responde.
Starboy para na porta, olha pra ela — e sorri, pela primeira vez.
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