Capítulo 14: “Queimem. Queimem até não sobrar cinzas.”

O Sol começa a se pôr no horizonte da cidade, trazendo consigo um clima ameno, com a temperatura abaixando. A sombra logo começa a tomar conta dos céus da cidade, emulando um sentimento de calmaria. Paz. Algo que Copa City com certeza não conhece. Um sentimento falso provocado por uma vista de mentira.
Pode ser que seja uma invenção, mas é o sentimento que Julio tem ao observar beleza criada do andar, do sistema. Ele sabe que tudo não passa de circuitos e fios ligados ao metal, assim como toda a Yggradsil, ainda assim seus olhos calejados valorizam a ilusão que lhe é provocada. Essa encenação custou caro. Essa paz digital nasceu de uma pilha de corpos.
As memórias daqueles que se foram, do irmão Raul, da mãe e do pai. Dos irmãos de guerra que morreram para que ele pudesse construir o império Olmeca no sétimo andar. Todos os momentos em que riu, brincou e matou ao lado. Todas essas memórias fluem pela mente de Julio. Os olhos ardem. A água insiste em cair. Ele odeia isso.
Uma reação automática para alguém que tende a acessar os próprios sentimentos enquanto senta em um império feito de carne, circuitos e sangue.
Do topo do morro RedRock, a maior favela do sétimo andar, Julio não consegue conter o choro. Não de tristeza, mas sim de agradecimento. A chuva, símbolo de prenúncio para Julio e os Olmecas, cai e faz uma tempestade no coração dele.
Toc toc.
Duas batidas na porta da laje fazem as lágrimas do líder secar quase que instantaneamente.
— Entra. — A voz de Julio é forte e vem em forma de ordem. Que é acatada. O homem limpa as lágrimas e então se vira.
A pessoa entra na sala, trajando um terno bordado a mão e justo em seu corpo. No rosto, um óculos. O traje destoa do resto da gangue, porém isso não faz ele alguém menos. Na verdade, pelo contrário. É Juan dos Santos, o atual segundo no comando dos Olmecas.
Julio o conheceu há cerca de dez anos, durante a grande guerra às outras facções que acontecia. Era apenas um garoto de rua que se recusava a se comportar como um e andava por aí como se fosse um ricasso, se vestindo como um.
A história da facção Olmeca é criada a partir de perdas e solidão. O dever de cada membro é garantir construir uma família para aqueles que não têm. Isso que Julio fez com Juan. Inclusive, se surpreendeu que o jovem garoto de rua ascendeu até se tornar o segundo na cadeia dos Olmecas.
O jovem Juan cumprimenta o líder dos Olmecas com um leve acenar na cabeça. O rosto virado junto com a respiração pesada tentando disfarçar o nervosismo denuncia que, seja lá o que o segundo no comando irá falar, não é nada bom. Ele enrola, mordendo os lábios.
— Desembucha logo. — Novamente o tom de voz de Julio é autoritário.
Juan respira fundo e então expira.
— Marcus e Jon atacaram de novo. Dessa vez… — Juan pausa por alguns segundos e então completa. — Foi Kikki. Os malditos pegaram Kikki.
Julio, o líder inabalável, fica com o rosto indiferente.
Pelo menos por fora, não pode demonstrar fraqueza.
Mas por dentro? Uma tempestade ameaça passar por dentro de seu coração, varrendo tudo como a força insensível da natureza.
Porém, Julio é forte, como Thor, Deus do Trovão, ele controla os sentimentos com força e não deixa transparecer. Não deixa uma gota cair. Nem por dentro.
— Prepare o carro e vamos até lá.
Novamente o tom de voz, dessa vez mais carregado.
Juan abaixa a cabeça para acatar a ordem ao mesmo tempo que Julio lentamente se vira para observar um pouco mais o pôr do Sol, agora mais carregado, mais solitário, mais mentiroso.
A ilusão que serve para mascarar a dor. No entanto, mesmo com o momento que deveria ser a calmaria para o homem que já viu e fez demais, algo o incomoda. Enquanto se virava, percebeu que Juan exibia um leve sorriso.
É fato notório que não se dava bem com Kikki, ainda mais pelo casca velha do Olmeca invejar a posição de segundo lugar. Era raiva? Era inveja? Ou só coisa da minha cabeça? Ainda assim, um sentimento ruim perambula por seu peito.
Cerca de meia hora depois, Julio e Juan chegam até o que sobrou de Kikki e sua divisão no morro que comandavam. O pôr do Sol ainda paira no horizonte, com Julio se virando e vendo grande parte da cidade e do mar no fundo. A vista é bela. Os ricos privam de tudo, menos disso. O Olmeca volta a olhar para o que sobrou de Kikki.
Toda a construção no chão, caída, esmagando todos os corpos dos soldados. Parte de Kikki ficou para fora, como se tivesse se arrastado para fora. Ao redor dele, uma poça de sangue o cerca. Parte do pescoço perfurado e rasgado. Cortado por uma faca. O que mais intriga o líder dos Olmecas são os olhos. Abertos, expressivos. Surpreso?
Julio fecha os punhos com força e passa a língua no vão entre seus dentes. Malditos. Irão pagar.
Ele volta a olhar para o horizonte e o céu está limpo. Sem sequer uma nuvem ameaçando uma torrente. Não irá chover hoje.
— Reúna alguns homens e vamos até os Projetos. — Cada palavra proferida por Julio é carregada por ódio.
Horas depois, os Projetos está cercado de Olmecas. Todos carregando com orgulho a Ave Plumada nas costas, seja nas jaquetas, tatuagens ou qualquer forma de representar o amor de família da gangue. Unidos pelo ódio. Pelo ataque às famílias.
São centenas de pessoas, todas gritando e agitadas. Na frente de todos eles, em um palanque e com uma tocha na mão, está Julio, erguendo o braço. Ele usa um óculos preto, e tudo é refletido nele.
— Eles escolheram o ódio contra gente. Atacaram nossa família! Mataram nossos irmãos e continuam a nos ameaçar. Todos estamos cientes de como Marcus, Jon e a porra de um bicho rosa tão por aí declarando guerra contra os Olmecas. Nos desafiando e atacando de forma covarde. Há anos, trouxemos a paz para esse andar, diminuimos os ataques de de gangues e os morros voltaram a ser um lugar para criarmos nossos filhos sem termos medo de morrerem com uma bala perdida. Anos de paz que aqueles dois jogaram no lixo. Eles querem guerra?! — Julio exclama puxando forças do fundo do coração e então aponta para os Projetos, prédios onde cresceu, amou e sua família vivia. Agora, é onde Marcus, Jon e Sheila chamam de lar. — Então vamos ter guerra.
Julio faz um comando com o braço e um tsunami de Olmecas, avançam em direção aos prédios e ao bairro. O calor vem com força, com a maior parte deles portando coquetéis molotov, tochas, bombas e qualquer coisa inflamável.
Os moradores correm com medo, receio e pavor do que está acontecendo. Há anos uma guerra de gangues não havia estourado. Agora, os tempos de incertezas e barbárie, ainda mais extremas do que acontece todos os dias em Copa City, parecem ter voltado.
— Queimem. Queimem tudo até não sobrar cinzas!
O tom de voz é frio, calmo e envolto em ódio. A ordem é acatada e logo gritos começam a ecoar junto com um mar de chamas pelo bairro e prédios.
O lugar histórico para a Julio, para os Olmecas e para seu antigo amor Sheila, onde tudo começou, ilumina os céus e toda a cidade como uma fogueira de São João fora de época. A família vem primeiro e eles têm de se proteger, mesmo que isso signifique sacrificar suas memórias.
Julio inclina a cabeça para o lado e observa Juan, sorrindo e se deleitando com a visão das chamas, gritos e pssoas correndo por suas vidas.
Não há mais volta. A guerra está oficialmente aberta.

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