Capítulo 15: A Máquina de Matar Chamada Anika

Plim… Plim… Plim…
A cada segundo, uma gota cai e chia ao tocar os fios metálicos expostos, como se o lugar estivesse sangrando eletricidade. Emaranhados em cima de emaranhados, denunciando a condição do lugar em que o grupo está escondido.
A cada PLIM, a mente de Anika se torna mais pesada, sufocada pelos próprios pensamentos. Ela sabe que não é a única. O cansaço e o estresse estão estampados no rosto de todos.
Marcus não dorme direito há dias, sempre acordando no meio da noite com medo até da própria sombra. Ele tenta esconder esses sentimentos com uma máscara de confiança e fingindo que é durão, porém ele não consegue mentir para quem sempre o observa. Dá para saber que ele anda vendo coisas demais ultimamente e está perto de quebrar.
Jonatan, ou Jon, age como se fosse cromado até os ossos e quer matar todo mundo que discorda dele. O desgraçado pensa que tá em um filme de ação. Além disso, não consegue ficar cinco minutos sem correr para o quarto de Sheila.
Ah, Sheila… Se não fosse essa maldita, nem estaríamos nessa situação para começar.
Cada espaço da cabeça de Anika é preenchido por esses pensamentos e, sem perceber, ela passa a encarar a porta do quarto improvisado que fizeram para Sheila da Costa.
PLIM… PLIM… PLIM…
— Tudo culpa dela… — Anika murmura para si mesma. E então bufa.
Ela fez uma promessa há alguns anos: ajudaria todos que precisassem. Não recusaria um paciente. Mas que paciente? Ela é só uma atendente de uma rede de fast food que aprendeu algumas coisas sobre medicina. E que juramento fez? Um juramento de médico da quebrada? O lugar dela é servindo comida pra fudidos iguais a ela. Não dentro de um consultório, não. Isso é para quem pode. Pros bacanas.
Ela fecha os olhos e sente o peso da cabeça como se o mundo empurrasse contra ela.
Ainda assim, o maldito som não para.
PLIM… PLIM… PLIM…
Anika está enlouquecendo.
Você precisa buscar
Anika? Anika!
Os olhos da moça abrem assustados enquanto ela levanta a cabeça, despertando. A respiração dela para até ela raciocinar o que está acontecendo. É quando vê Jon em pé na frente dela.
— Ouviu o que eu disse? — Ele indaga de forma contudente.
— Não. — responde Anika se levantando.
— Preciso que você busque os remédios da minha mãe lá nos Projetos.
Quem ele pensa que é? Falando como se tivesse respeito…
— Tá. — Anika, mesmo contrariada, concorda. — Tudo para sair desse maldito lugar…
Com passos lentos e pesados, ela segue pelas ruas em direção aos Projetos. A mente avoada e com poucas inspirações, a brisa fria da noite sopra contra o rosto dela, fazendo-a se recolher de frio.
O cenário padrão de Copa City se repete por onde ela passa, prédios com neons baratos iluminam a escuridão e dão um lugar onde as prostitutas e cracudos possam ser vistos na vastidão da gandaia dos moradores.
Anika está andando quando um carro passa por ela e vai desacelerando. Os vidros abaixos, mas ela ainda não percebe, ainda está muito imersa em si mesmo.
— Tá quanto a hora, bebê?
A voz chama sua atenção. Um homem de meia-idade a encara com um sorriso malicioso. Aquele olhar. Ela o conhece bem. O de desejo, objetificação.
Nojento.
Anika apenas continua andando, ignorando a chamada do homem, que desiste e continua em frente. Mais na frente, ele buzina duas vezes e uma mulher pouco vestida entra no carro. Provavelmente uma prostituta.
Há muito que a cidade é esse lixão, na verdade, talvez desde a sua concepção seja assim, mas Anika não tem certeza então prefere não afirmar.
Porém, sabe como a vida funciona: a mulher nasce nessa cidade e é criada para ser só a forma de reprodução. As escolas são caras demais para mandar uma garota frequentar, os empregos valorizam aqueles que tiveram educação ou “força física”, que opção elas têm além de se vender? É o sentimos desde sempre. Todos sabemos a força que cada olhar tem sobre nós, cada pequeno gesto. Parece que o destino quer que trabalhem com pornô, prostituição ou com uma vida no crime, como a mãe de Jon. Qualquer coisa fora disso é pedir pra morrer de fome na rua, como qualquer outro viciado.
Poucas conseguem um emprego em algum lugar. Anika? Sabe que deu sorte e por isso trabalha com um sorriso no rosto mesmo tendo que ouvir tanta merda todo dia.
Aliás, acaso que ela teve duas vezes, tendo a oportunidade de realmente amar em uma sociedade que quer que sejam dependentes de alguém e a maioria tem que casar com o primeiro que der a chance.
Cidade nojenta…
Sem perceber, ela já está nos Projetos. Mas algo chama sua atenção — há Olmecas demais por ali. Só de bater o olho ela consegue contar pelo menos seis deles. Faz sentido aumentarem a patrulha, Jon e Marcus andam cutucando o vespeiro..
Ela tenta ignorá-los, mas percebe o cochicho entre eles. Uma fala um pouco mais alto que o normal desperta a curiosidade dela.
“Hoje vai ser foda!”
Alguns animados, outros de cara fechada.
Hoje? O que que vai ter hoje?
Uma sensação ruim toma conta do estômago dela e ela decide apressar o passo, ao mesmo tempo que tenta transparecer no rosto que não tem nada de errado. O coração gela toda vez que algum Olmeca encara em sua direção.
Enquanto caminha, mais bandidos aparecem pelas ruas.
O que vai acontecer hoje?
Anika já vê a entrada dos apartamentos onde Marcus e Jon vivem. Os prédios duplos dentro do mesmo terreno, com condições precárias e caindo aos pedaços, denunciando que pertencem mesmo aos Projetos.
Passando pela abertura, ela decide correr para entrar logo nos prédios. A sensação ruim ainda palpita dentro dela. Borboletas voam dentro de seu estômago, uma pequena tremedeira começa a tomar conta das pernas.
O que vai acontecer hoje?
Sobe as escadas rápido, passando por jovens chapados que nem notam sua presença.
Na correria para chegar logo até o apartamento de Jon e pegar os remédios de Sheila, ela acaba esbarrando em uma moça subindo a escadaria com um bebê no colo. Elas se desequilibram, mas Anika consegue segurar ambas.
— Perdão, eu—
— Não, tá tudo bem. — a mãe do bebê responde com um sorriso.
O QUE VAI ACONTECER HOJE?
Anika apenas sorri de volta e continua o caminho.
A tensão no rosto da mulher é visível, a cada segundo respira cada mais e mais forte. Ela entra no apartamento de Jon e não perde tempo para revirar o lugar em busca dos remédios.
Quando finalmente acha, um chiado vindo de fora capta a sua atenção. Ela corre em direção a janela do apartamento e cai para trás quando vê a origem do barulho.
Tremendo, Anika, tenta se levantar, mas suas pernas não obedecem. O medo corre por suas veias e paralisa o sistema nervoso.
É isso o que vai acontecer hoje.
O que ela viu? Um mar de Olmecas na frente dos prédios e espalhados pelas ruas dos Projetos. Uma multidão carregando coquetéis molotovs e tochas nas mãos, na frente de todos? Está o próprio messias. Julio. Ele balança os braços, como um pastor guiando os seus carneiros, enquanto dá um discurso.
— Eles escolheram o ódio contra gente. Atacaram nossa família! Mataram nossos irmãos e continuam a nos ameaçar. Todos estamos cientes de como Marcus, Jon e a porra de um bicho rosa tão por aí declarando guerra contra os Olmecas. Nos desafiando e atacando de forma covarde. Há anos, trouxemos a paz para esse andar, diminuimos os ataques de de gangues e os morros voltaram a ser um lugar para criarmos nossos filhos sem termos medo de morrerem com uma bala perdida. Anos de paz que aqueles dois jogaram no lixo. Eles querem guerra?! — Julio exclama puxando forças do fundo do coração e então aponta para os Projetos, prédios onde cresceu, amou e sua família vivia. Agora, é onde Marcus, Jon e Sheila chamam de lar. — Então vamos ter guerra.
— Do que diabos ele está falando?! — Anika exclama para si mesmo.
No fim do discurso de Julio, toda a multidão avança, preparados para causar o terror nos prédios e no bairro.
Anika força a própria mente e se levanta.
EU PRECISO SAIR DAQUI.

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