Capítulo 17.3: A Máquina de Matar Chamada Anika pt.3

Anika está suando frio. Os olhos não saem do Olmeca na frente dela, que faz questão de cruzar o olhar com o dela. Ele ri de forma cínica. Anika não aguenta, desvia o olhar até as mãos dele, e aí que se assusta e dá um passo para trás. Tudo isso parece acontecer em menos de um segundo, pelo menos na cabeça dela. A sensação de perigo iminente só aumenta com ela percebendo o que ele porta como arma. Uma katana com um fio limpo e luminoso, com um forte neon correndo por trás de toda a extensão da lâmina, brilhando e se mesclando com a má iluminação da saída de emergência abandonada do Prédio Duplo dos Projetos.
Uma olhadela para o lado confirma que a mulher misteriosa e sua bebê ainda estão ali. Anika foca na criança e então morde os lábios voltando a observação para o brutamontes Olmeca.
Os sons pesados de uma corrida na direção de Anika a fazem retomar a atenção para o bandido, que já está quase em cima dela, jogando a lâmina luminosa para frente para atingi-la. É muito tarde para desviar. Anika tenta deslizar para o lado, porém é atingida mesmo assim, com a katana sendo cravada em seu braço.
Ela berra de dor. E fixa o olhar no Olmeca, que ri de forma sádica. Bastardo.
— CORRE!
Anika ordena para a mulher misteriosa. Não tem como fugir. Não as duas. A mulher e a filha são a prioridade. Anika precisa ser útil. Ela VAI ser útil.
— Mas— A mulher tenta protestar, mas então decide acatar a ordem. O coração dela é atingido com uma enorme tristeza. Não queria deixar a amiga para trás, porém não tem o que ser feito.
O maldito bastardo vira o rosto para a mulher. Anika não perdoa esse erro, ela empurra-o para trás, fazendo-o puxar a lâmina de volta. Ela grita ainda mais. A sensação do metal saindo da carne é insuportável, ela sai rasgando tudo e cada segundo de dor parece que são mil anos intermináveis. Anika morde o próprio lábio para segurar a dor e então sorri enquanto o sangue jorra de seu braço.
Do que está rindo? Não da morte. Das escolhas. Anika sabe que não tem saída. É questão de tempo até ela morrer. Tanto pela perda de sangue ou por um segundo ataque do Olmeca. Sabe, às vezes os namorados também estão certos. Só às vezes. É disso que ela está rindo. Se lembrando de quando Marcus ofereceu aulas de “autodefesa” para ela e prontamente recusou. A tal “autodefesa” era um cano de trinta centímetros pronto para transformar qualquer pessoa de Copa City em um queijo suíço, mas ela recusou. Que tipo de médico anda por aí com isso? Até mesmo nessa cidade maldita.
É disso que ela ri. Marcus tinha razão e ela vai pagar com a vida nesse momento. A sensação de medo deveria estar correndo, no entanto não está.
É maldade? É fraqueza?
Você decide.
A visão dela começa a ficar turva, a vontade de apenas desistir e descansar é grande. Aos poucos ela vai cedendo ao desejo… É nesse momento que, na escuridão, as decisões que teve até aqui começam a bater na porta da consciência dela.
O que causou a morte de Anika, a brava médica dos lixões? Foi uma viagem desnecessária para pegar remédios para uma drogada? Não. A motivação tá antes disso. Bem antes de Jon, Marcus, Sheila, Starboy…
Anos atrás, uma criança dos lixões de Copa City ousou perguntar “por que?”
Por que todos nós temos que viver catando pedaços de metal?
Por quê ignoramos quando um dos nossos cai morto de tanto trabalhar?
Por quê?
Por quê?
…?
O grito agudo e então o choro sem parar desperta a atenção de Anika. Ela olha para o lado e então se lembra do que está fazendo. É mais um dia de trabalho catando lixos de uma guerra já esquecida nos limites de Copa City.
A garota tem apenas seis anos, mas já é responsável. E o desejo de ser útil para família arde dentro de seu coração, porém… o que foi esse barulho?
O choro é incessante e Anika olha para o lado. Não demora para achar a fonte. Com passos apressados de pernas curtas, a menininha se aproxima da origem do choro e arregala os olhos quando vê o que está acontecendo.
Uma criança, não mais velha do que ela, está com um braço decepado. Mais um dos inúmeros “acidentes de trabalho” nos lixões. A pequena Anika leva as mãos até a boca, surpresa, com medo. Ela olha ao redor para chamar ajuda, mas…
Todos seguem suas vidas sem se importar. Por que? Eles caminham como se nada tivesse acontecendo. Não escutaram o choro? Deve ter sido isso!
Anika corre para alertar os outros, grita com todas as forças que um garoto precisa de ajuda, mas a única coisa que ouve é…
— Volte pro trabalho, garota. Esse menino só vai atrasar seu dinheiro…
O coração de Anika se quebra com essas palavras. Não consegue acreditar no que está ouvindo.
Por quê…?
Por quê tanta…?
MALDADE?
Anika desperta respirando fundo, tentando se achar e recuperar o fôlego. Tudo está zonzo e sua visão é obstruída por uma nuvem preta, como se seu corpo desejasse voltar para o estado que antes estava. Ela luta para enxergar e finalmente consegue ver e por um segundo a paz reina dentro de seu ser. Sensação de dever cumprido? Sim. Nessa altura, a moça já fugiu com a filha e finalmente ela pode morrer em paz. A figura do Olmeca girando a espada para cima dela confirma que não há como escapar.
Os cantos do lábio de Anika se levantam ressoando com a completa harmonia que se encontra dentro de si. O único arrependimento dela é de não ter se arrependido de Jon, Marcus, Sheila, dos pais e de Starboy.
STARBOY…?
No fundo da visão dela, uma imagem aparece para pertubá-la. Como se espreitasse na escuridão, ela vê uma silhueta. É muito escuro para definir os detalhes, porém a forma de criança com uma cabeça pontiaguda faz o coração de Anika sucumbir ao medo. É como se ela estivesse vendo algo que não deveria, que desafiasse as leis desse mundo. É como se estivesse vendo DE—
Um raio acerta Anika bem no meio de seu peito. Ela sente cada célula de seu corpo pulsar e desejar sobreviver. Ela NÃO vai morrer hoje. Com um movimento anormal, ela joga parte do corpo para o lado, deixando o ataque do Olmeca acertar apenas o ar e como um leão, ela avança na mão do inimigo, arrancando a katana de suas mãos.
Ele arregala os olhos, não acreditando que tal movimento seria possível. Ela é chipada? Alguma modificação corporal? É uma corpe? Esses pensamentos passaram levemente por sua cabeça e então ele se pergunta como é possível estar observando o próprio corpo do ar. Quando finalmente entende, sua consciência se esvai.
O sangue do que sobrou do pescoço do Olmeca jorra para cima de Anika, dando-lhe um banho carmesim. O olhar dela se afia. Ainda não acabou. Ela gira a katana como uma samurai milenar que já sobreviveu há mil batalhas.
AINDA NÃO ACABOU.
A expressão neutra não muda quando um bando de cinco Olmecas passam pela porta no fundo do corredor. Como uma perfeita dançarina, ela desliza no meio de todos eles, arrancando-lhes tudo o que tinham para a atacar. Braços, pernas, torsos voam após cada movimento gracioso da mulher, sendo banhada sempre por gotas escarlate que iluminam cada vez mais a valsa de seu baile.
Um estalo elétrico dá um choque no cérebro de Anika e ela retorna.
Sangue…?
Ela pergunta para si mesma e tem o estômago revirado ao se virar. Uma verdadeira carnificina tomou conta daquele corredor.
Quem…?
Ela sente segurar algo e vê a lâmina que segura manchada e com sangue pingando.
Ela é a culpada disso tudo?
Uma vontade de vomitar surge em Anika e ela cai de joelhos, com a katana caindo ao seu lado.
A pseudo-médica que um dia jurou salvar todas as vidas em seu alcance acaba de se tornar um monstro assassino e ela não pode se perdoar por isso.

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