Domingo. O dia em que todos podem esquecer os problemas e o cansaço que é viver em Copa City, o sétimo piso da grande Torre-Cidade Yggdrasil. Onde ninguém quer viver ou morrer. Um verdadeiro lixão, onde o ar que respiramos tem mais plástico do que oxigênio, as pessoas mal tem o que comer, o calor infernal, a polícia trata todo mundo pior que merda. Onde um mar de prédios varre o centro enquanto a população vive acuadas em casas precárias nos morros. Um lugar onde ter um implante cibernético, mesmo o mais mequetrefe, te destoa dos outros. Vocês já devem imaginar o resto.

    Só que um dia da semana salva a população pobre do sétimo nível da desesperança e traz um combustível para viverem até esse próximo dia da semana. O Domingo. Se a semana foi mal, se o dia foi ruim, é tempo de esquecer tudo e se lançar na pista de algum dos inúmeros bailes produzidos pelos próprios moradores.

    É o dia de celebração, de subir algum morrer e se soltar, viver, renovar. Também é um dia que produz a oportunidade. Sabe, todos os membros das gangues se reúnem no baile e onde eles estão tem dinheiro. O suficiente para garantir a sobrevivência por meses. Esse é o plano de Marcus e Jon, uma dupla de grandes ladrões de Copa City.

    — Grandes? Vocês nunca–

    — Fica quieta e escuta.

    Certo, não somos grandes ladrões. Ainda. Mas todo mundo começa de algum lugar, certo? Continuando. O plano é simples, entrar, pegar e vazar. O bagulho roubar todo o dinheiro de drogas, bebidas e putarias que estão sendo gastos no Morro RedRock. Eu sei, roubar o morro onde fica a base dos Olmecas parece burrice, só que sabemos o horário e local onde vão descarregar o dinheiro. Todo mundo nesse piso luta para viver pela esperança de viver fora da miséria. E nós não somos diferentes.

    — Tem certeza que é uma boa ideia? — pergunta Jon com incerteza na voz. — Sabe que isso–

    — Sem piadas e, sim, vai dar certo pra caralho —  responde Marcus exalando confiança.

    Marcus tem essa certeza por saber do que é capaz. Estando nessa vida há seis anos, desde que começou aos quinze, lhe deu habilidades o suficiente para roubar um bando de pé rapado sem cibernética e dar o fora, não que ele tivesse dinheiro para colocar um implante, mas, enfim.  Jon nunca fez um trabalho que desse tanto dinheiro, mas sabe que ele é capaz. Geralmente Jon é brincalhão e faz piadas, mas hoje não tá conseguindo. Talvez seja o nervosismo.

    Os dois se espremem pelos sujos becos e vielas do Morro RedRock e cada sinal de algum membro da gangue Olmeca, que controla esse lugar e grande parte de Copa City, se escondem. Sabe, nem sempre foi assim, com essa gangue mandando tudo. O sétimo piso nunca foi conhecido por ser um lugar organizado e assim era com o cenário do submundo, com cada grupo tentando a sorte tomando uma favela para si e sendo extremamente desordenado e violento. Isso mudou há cerca de uma década quando uma lenda do nível resolveu criar a própria gangue e colocar ordem na casa, assim nasceram os Olmeca. Certas pessoas dizem que eles tiveram apoio dos corpes, mas ninguém sabe ao certo se isso é verdade. Enfim, a ordem foi criada e hoje só uma facção se opõe a eles, mas é questão de tempo até serem derrubados.

    A principal base deles é o Morro RedRock, onde concentra a maior quantidade de habitantes do sétimo piso. O trabalho é fácil e vai nos render dinheiro o suficiente para sobrevivermos mais um tempo. Talvez até nos colocar como lendas? Não, isso é pensar alto demais. O mais importante é que precisamos de dinheiros para nossos próprios motivos. Só trabalhar não dá NeoReais o suficiente para viver uma vida digna.

    Agora mesmo lá no primeiro piso tá tendo o Baile Anual dos Investidores de Yggdrasil e tá tudo sendo transmitido nas televisões. Tsc. Como se o povo daqui ligasse para bobeiras de festas de galas e essas coisas. Nossa única preocupação é subir sem sermos notados.

    Marcus se abaixa e puxa Jon para baixo quando dois soldados portando fuzis FL apontam na direção deles. Será que perceberam que estão ali? Ele torce para que não, mas dava para ouvir os passos firmes vindo na direção deles. Já era. Um tiro daquele fuzil e é morte na certa. Aquela porra pode ser uma velharia que foi usada na guerra, mas ainda sim é mais do que suficiente para atravessar qualquer um que não tenha blindagem, ou seja, o caso dos dois.

    Jon e Marcus se abaixam, fechando os olhos apenas desejando para que não tenham sido descobertos. Marcus até tem uma pequena pistola para se defender, mas lutar contra um fuzil? É pedir para morrer.

    O nervosismo cresce entre os dois enquanto os passos se aproximam, mas uma voz do além vem para interceptar os passos.

    — Psiu, ‘cês dois. O chefe mandou reforçar a rua de trás. A carga tá para sair.

    Os passos se afastam causando alívio. Tanto em Marcus quanto em Jon.

    — Essa foi por pouco. Merda! — Jon respira forte. Isso realmente é uma boa ideia? É uma oportunidade…

    — Vamos, você ouviu. Rua de trás.

    Marcus é o primeiro a se levantar e a liderar o caminho, andando sempre com cuidado pela sombra. Todo o lugar é iluminado por luzes neon de baixa qualidade que piscam incessantemente, fruto da grande quantidade de energia que está sendo puxado para o baile. Dá para ouvir o barulho da festa rolando.

    É o final da madrugada e o som fica cada vez mais distante enquanto se esgueiravam para a parte de cima do morro, porém ainda assim era possível sentir o grande estrondo psicodélico das músicas. Isso lembra Marcus do conjunto de habitações onde vive. Do pequeno baile que sempre há lá e provavelmente tá acontecendo nesse exato momento. Foi lá onde conheceu o amor, mas não dá pra pensar nisso agora. No fundo, sente que queria estar aproveitando o baile com ela, mas precisa trabalhar.

    Marcus para por um segundo no beco que liga a rua a que o alvo irá passar em questão de minutos. Ele sinaliza para Jon fazer o mesmo. A dupla, que antes quase descobriu eles, passa novamente, procurando novamente por qualquer ameaça ao dinheiro da gangue. Novamente passam pelos dois invasores sem ao menos suspeitarem que há algo de errado.

    O som de passos firmes e pesados vem na direção deles, um barulho diferente, como se o chão estremecesse a cada pisada com um ritmo incessante e contínuo. O alvo está vindo. Usando um terno preto feito de fios metálicos que reluzem as luzes neons defeituosas da área e um óculos que cobria mais da metade do rosto, ocultando qualquer emoção. O homem exala confiança e controle, segurando uma maleta em uma mão, onde guarda o dinheiro, enquanto a outra permanecia no bolso.

    Dá para sentir no ar que aquele cara não é alguém para se mexer. Terno? Em uma favela? Não pertence a esse lugar. Jon encosta no braço de Marcus e o encara com um olhar que diz muito. Isso é mais do que podiam lidar. Tinham que desistir da missão e voltar. Antes que Marcus possa responder, percebe que os passos do alvo pararam. Lentamente  virando a cabeça em direção a dupla e em um saque rápido retira dos bolsos uma pistola e efetua disparos na direção de Marcus. Ele se abaixa aterrorizado. Como caralhos sabe que eles estão ali? Espera. O terno. Marcus percebeu o tamanho do erro que cometeu. É um corpe.

    Os tiros passam ao lado de Marcus, que não demora para empurrar Jon e gritar: CORRE! Os dois não estouram em uma corrida voltando pelo beco em que haviam entrado, os sons de tiros passam por eles e se abaixam a todo momento. Vinham do corpe? Pouco provável, pelo jeito que ele se movimentava e vestia com certeza tem cibernética de combate. Isso é pior, a mira ruim e os gritos. São os Olmecas.

    Jon lidera o caminho e dobra a cada viela e beco que é possível, seguido de rápidas descidas de degraus. Os tiros parecem que estão cada vezmais perto deles. Corre, vendo o telhado de uma casa inacabada à frente, e segue por ali. Antes, olha para trás para verificar se Marcus ainda o acompanha, e sim, está. Marcus precisa confiar nele. Jon passa para cima do telhado e, correndo, se impulsiona, jogando-se para frente. O salto é alto e arriscado. Cai em outro telhado, um mais baixo, e continua descendo, salto após salto. Marcus ainda está atrás dele? Os gritos desenfreados, misturados com risadas, confirmam que sim. Aos poucos, os barulhos de tiros dão lugar ao som da música do baile, que entra pelos ossos e consome todas as suas sinapses. Despistam os Olmecas, pelo menos por enquanto.

    — Calma — diz Marcus bufando de cansaço. Ele toma a frente de Jon e então continua. — Vamos nos misturar no meio do baile.

    Jon ofega. Dá para sentir o medo e o nervosismo exalando no rosto dele. Caralho, no que ele foi meter o amigo? De qualquer jeito, precisam começar a pensar em como sobreviver a aquela situação.

    —  Vamos. Só vamos. Sem perder tempo.—  fala Jon com uma pressa na voz.  

    Marcus é o primeiro a descer para o solo. Há algumas pessoas em volta. A maioria são jovens bebendo ou usando algum tipo de substância. Drogas. Jovens da idade deles. Será que isso é o que deveria estar fazendo ao invés de estar tentando ficar rico? Não. A vida de trabalhador não é para Marcus, ele quer mais. Esses jovens até podem estar se divertindo agora, porém logo voltarão para a realidade da fome e da vida de cachorro que levam. Ele sabe que não quer viver daquele jeito. Não quer que Anika viva desse jeito.

    As pessoas que estão ao redor do baile nem ligaram para Marcus ou Jon. Pouco a pouco os flashes e holo-luzes tomam conta do ambiente, junto com a música alta demais para que possam se escutar. Marcus sente alguém tocando o ombro dele de forma desesperada, quando olhou para trás viu que é Jon, que sinaliza que há membros da Olmeca por toda a parte. Será que já sabem do que tinha rolado?  A comunicação entre eles é rápida, então é melhor apostar que sim. Os dois dão a meia volta e começam a caminhar em outra direção para saírem do baile. Tem um grupo caminhando em direção a uma das saídas. É a melhor aposta deles.

    Perto da saída e o alívio já toma conta de Marcus e Jon, mas aos poucos brutamontes da Olmeca começam a cercar a saída e quando se deram conta, estão totalmente cercados. As pessoas do baile olham tentando entender o que está acontecendo, mas sabiam que o melhor era não se meter. Marcus exibe um sorriso irônico e antes que pudesse fazer qualquer coisa, começam a serem arrastados para o lado de fora, sendo levados até um prédio dentro da favela. É um escritório, na parte de fora parecia apenas mais um prédio normal, o que é diferente para um lugar em que as casas eram amontoadas uma sobre a outra.

    Dentro do local, há uma nobreza que não é a normalmente vista em uma área marginalizada. Esculturas de pessoas e coisas estranhas, todas levando peças de ouro. Jon pragueja enquanto Marcus fica quieto. Isso só irrita ainda mais os bandidos, que não poupam sopapos tentar fazer o rapaz calar a boca. Chegando em um cômodo, são jogados no chão que nem cachorro e quando percebem, estão em frente a Julio, o fundador e líder da Olmeca. Ao redor dele tem dezenas de membros da gangue, todos com a bandana marcante na cabeça. Um pouco mais afastado está um homem grande e que parece destoar um pouco dos outros membros. Juan, o segundo no comando. Marcus já viu aquele rosto na televisão.

    — Vocês são corajosos por tentarem roubar a proteção do morro — Julio diz com um sorriso no rosto. — Mas sinceramente, eu esperava mais de você, Jon. Sua mãe não te ensinou a fazer um serviço bem feito?

    — Vai se fuder — responde Jon cuspindo em direção ao chão.

    As dezenas de criminosos na sala riem. Incluindo Julio.

    — Ele mandou você se fuder, chefe!

    — É, acho que ele não entende a situação em que está agora — rindo, Julio se aproxima. Ele está sem camisa e com correntes de ouro no pescoço. É um homem magro e aparentemente não tem nenhuma cibernética. Um líder de gangue sem implante? Raro. Geralmente é o que diferencia eles. O cabelo estranho, como se tivesse sido alisado e a lacuna nos dentes são as característica marcantes do líder. Junto com a proatividade para melhorar a vida nas comunidades e seu forte apelo contra a violência. — Eu sempre aliviei por ter sido parceiro da sua mãe, pequeno Jon. Só que dessa vez não vai ter como. A única coisa que posso prometer é que vamos tentar ajuda-la mais uma vez.

    Tudo fica preto depois de Julio terminar de falar. Os dois acordam amarrados  e de joelhos em um lixão. Sabem o que vai acontecer quando percebem que tem dois homens armados atrás deles.

    — Desculpa, parceiro — Marcus diz com tristeza e arrependimento. Ele pensa na vida que tinha vivido e como cresceu, mais importante, pensava em Anika. Ela sentirá falta dele?

    — Relaxa, irmão. Eu entrei nessa quando sabia da oportunidade, sabia que isso poderia acontecer. Não foi sua culpa — responde Jon com um sorriso no rosto e olhando diretamente para Marcus.

    Marcus sorri de volta para Jon. Ele pode estar rindo, mas dentro dele uma angústia sem igual toma conta. Não quer morrer. Não desse jeito. Quer uma vida melhor, uma que não tinha que contar com migalhas para comer. Não ter que beber uma água podre e fedorenta. Um lugar que não seja apertado para viver. O sentimento de derrota, de tudo ter dado errado comen ele por dentro. Não dá mais para segurar.

    Com um grito, Marcus clama pelos céus por mais uma chance. A fé já morreu há séculos atrás, antes mesmo até da guerra começar. Havia poucas igrejas em Copa City e Marcus nunca frequentou nenhuma delas, mas sabe que pregam a esperança. O amor. Marcus sabe que não merece isso. Não pelo caminho de vida que escolheu e por quem já feriu. Pelas vidas que já tirou, mas, mesmo assim, ele grita e quer uma segunda chance.

    O céu então se abre.

    Estrondos que parecem serem rugidos de uma criatura começam a se espalhar pelos céus. Algo está vindo. Ou está chorando? Parece barulho de dor. Todos os quatro olham para os céus tentando entender de onde vinham aqueles sons e então uma luz tão branca e brilhante deixou-os atordoados por um segundo. O clarão branco seguido de uma cor rosa que vinha com um calor enigmático. Alguma coisa fala com Marcus, abraça-o e diz que tudo ficará bem. Confortante. Um sentimento quente. Será que todos estão sentindo isso? 

    Uma grande cápsula colidiu com o chão. De lá sai uma estranha criatura com a pele rosada e com a cabeça pontiaguda. Ela é pequena. Do tamanho de uma criança. Seus olhos… grandes, inquisitivos, mas dentro deles há algo… antigo? Além de uma aura e sensação de estranheza. Todos sentem uma pressão só de olhar para aquilo. Sentem que aquilo é diferente. Mortal.

    Os bandidos que estavam prestes a matar a dupla recuam alguns passos enquanto ofegam e balbuciam palavras incompreensíveis. Não dá tempo de mais nada. Poucos segundos depois os homens estão mortos. Esmagados em apenas um soco.

    — O que foi isso? — exclama Jon com os olhos arregalados.

    Marcus não responde. Ele apenas olha para a criatura, sentindo algo que não sabe explicar. Gratidão? Esperança? Talvez ambos.

    Marcus sente o coração disparar enquanto a criatura o encara. Não é medo. É como se aquele ser esteja analisando sua alma. Ao mesmo tempo, algo em seus olhos brilhantes traz uma calma inexplicável. Um olhar curioso, tentando entender o que acontece. De forma súbita, toda aquela aura ameaçadora sumiu, deixando apenas um olhar inocente que diz que quer ajuda-los.

    A dupla ri. Principalmente Marcus, que sente que de alguma forma foi recompensado pelos céus.

    Marcus não consegue tirar os olhos da criatura. Jon olha para a cápsula que a criatura saiu.

    — Starboy…?

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