Capítulo 3: A Lenda que um dia foi.

— O que você acha que ele é? — Jon pergunta em um tom curioso.
— Não faço a mínima ideia.
Jon está pensativo enquanto analisa a pequena criatura que o salvou da morte certa. Nesse momento ela está em pé em frente a um dos homens que havia matado há poucos minutos. Mortes são comuns nesse mundo. Pessoas acabam em acidentes o tempo todo e o índice de assassinatos é sempre alto. Normal. Porém, algo no rosto da pequena–Não. Starboy. É o nome que está naquela cápsula. Deve ser o nome dele.
A criatura encara os olhos sem vida do corpo como se falasse com ele, como se tentasse entender o que está acontecendo. O silêncio ao redor dela é assustador. Em momentos, parece que uma aura dança ao seu redor e então encara Jon.
— Temos que sair daqui. O resto dos Olmecas vão começar a suspeitar quando esses dois não voltarem.
Marcus está certo, eles têm que sair. Mas e o Starboy? O que vão fazer com ele? Jon olha para o lado e o amigo está observando o pequeno ser rosa com um olhar profundo. Um olhar que aos poucos se enchem de lágrimas, mas que logo são cortadas.
— Vamos levá-lo — diz Marcus, resoluto. — Vá pegar aquela coisa enquanto eu preparo o carro.
A ficha ainda não caiu totalmente. Iriam matá-los e deixar os corpos nos lixões ao redor da cidade de Copa City. É normal. Mas pensar que seria apenas mais um que não deu certo na vida… isso revira o estômago de Marcus.
Jon chega perto do garoto e tenta chama-lo, mas ele parece estar em um transe infinito enquanto observa os corpos. Continua chamando até que decide encostar no ombro rosa daquela estranha criatura. No momento em que encosta, ele se vira e encara Jon. Aquela curiosidade ainda exala e vai até a alma.
Por que? Por que estão mortos?
O coração de Jon acelera. A criatura não havia aberto a boca, mas ainda assim sabe que está falando com ele. Sabe o que está pensando.
O pior é que não sabe como responder a pergunta. Por que estão mortos? Porque estão em Copa City e assim que as coisas funcionam. Não. Não é uma resposta. Mas o que falar? A vida aqui é assim. A morte é uma coisa comum. Pessoas tentando roubar uma das outras. Tentando subir na vida. Não é apenas como a vida funciona?
Não sabe o que responder. Isso começa o corroer por dentro.
A angústia é interrompida pelo som de uma buzina. Marcus avisando que tinha conseguido ligar o carro. Jon balança a cabeça e tenta puxar o braço de Starboy, porém o garoto nem se mexe.
— Garoto, nós temos que dar o fora daqui — ajoelha-se diante do pequeno ser rosa, um leve sorriso surgindo em seu rosto. — Deixe as perguntas para depois, certo?
Starboy hesita por um instante, como se processasse as palavras de Jon. Então, devagar, deixa-se ser guiado. O toque é leve, mas Jon sentia um peso emocional que nunca tinha experimentado antes.
Jon abre a porta de trás do carro e espera que o garoto entrasse direto, porém o garoto encara aquilo com um olhar de que não sabe o que é para fazer. O que esperavam que ele fizesse? Marcus olha a situação pelo retrovisor e se segura para não dar uma leve risada. Jon suspira e sai do veículo.
— Olha, é assim. Você tem que entrar e depois sentar. — diz gesticulando e demonstrando o que devia ser feito.
— Ele parece até um bebê. — fala Marcus, secretamente se divertindo com a situação.
Não precisou demonstrar mais do que uma vez para o garoto entender o que deve ser feito. Logo entra e senta no banco de trás do velho Kizuna, um carro que teve sua produção iniciada há um século atrás, porém é visto como novidade no sétimo piso.
— O que acha que ele é? — pergunta Marcus olhando pelo retrovisor frontal do carro.
— Não sei. Ele parece uma criança, mas o que ele fez com aqueles caras lá atrás? Eu realmente não sei. — responde Jon com sinceridade.
— É. Parece que tá aprendendo as coisas agora. Percebeu como ele olha para tudo tentando entender?
Os dois olham pelo vidro retrovisor fronteiro e lá está a pequena criatura rosada observando tudo o que passa pela janela. O olhar curioso e inocente chama a atenção da dupla.
— Aprendendo sobre o mundo enquanto mandou dois gângsters para o ralo como se não fossem nada? — Marcus franze o cenho enquanto se pergunta.
Jon fica em silêncio.
— A coisa da que ele saiu, acho que era uma cápsula. Tinha algo escrito nela. “Starboy”. É como eu tô chamando ele.
— O garoto estelar. Uma pequena criança rosa que não sabe o que tá acontecendo. Será que… — Marcus segura as palavras por um instante. — Esquece.
— O que? — Jon olha para Marcus curioso.
— Acha que pode ser um alien?
— Até onde eu sei, aliens não existem.
— Então o que ele é?
Marcus suspira e volta a analisar o garoto estelar. Os olhos dele, tão cheios de vidas, curiosidade e inocência mexem com ele. O coração fica mais vulnerável e o faz ter lembranças de um tempo que já não voltava mais na vida dele. De quando não precisava pensar em nada além de brincar descalço na rua. A simplicidade e inocência que já não existem mais. No fundo do coração, sabia que Starboy é um ser puro e sente uma vontade de proteger o garoto. O jeito como encarou a morte, quando viu o olhar dele tentando entender aquilo, mesmo de longe entendeu uma coisa: a criança não queria ter feito aquilo.
Sente um frio na barriga por ter esse pensamento e aos poucos lembranças começam a tomar conta da cabeça dele. Empurra para fora tudo relacionado ao assunto e se concentra presente. No problema que se meteram. Pensar no passado não vai resolver nada.
— Primeiro vamos para casa, depois pensamos nisso. — Marcus encerra o assunto de forma resoluta.
Uma tempestade cai do lado de fora, raios e trovoadas explodem pelos céus como se anunciassem que algo grande está por vir. Um pouco atrasado.
Mesmo com um dilúvio caindo, os repórteres estão lá em baixo fazendo o trabalho deles e filmando cada detalhe em busca de respostas. Drones sobrevoam até o centésimo andar, altura que são permitidos no momento fazendo a cobertura do lugar. Eugene observa tudo isso pelo grande buraco que se formou no centésimo quinquagésimo andar, lugar outrora que era um laboratório para algum projeto científico do Olimpo.
— Foi um serviço bem feito — Eugene diz com um sorriso de canto de lábio enquanto observa as centenas de repórteres como se fossem pequenas formigas.
Realmente foi bem feito. Bem arquitetado. Quem quer que tenha feito isso sabia das próprias capacidades ao desafiar os engravatados do Olimpo.
— Acha que foram os russos? — indaga um dos assistentes que acompanhava Eugene.
— É uma possibilidade — responde Eugene analisando as marcas de explosões no que antes era um laboratório cheio de máquinas. — Mas não acho que tenha sido. Não teriam coragem de explodir o coração do planeta e correr o risco de iniciarem outra guerra interplanetária.
A coisa está feia. Para Eugune ser chamado para dentro do Olimpo e em um andar tão alto significa que a RedRock está desesperada. Alguém como ele jamais pisaria tão alto, mesmo sendo o principal agente da empresa há algumas décadas. O que quer que tenha sido roubado, é valioso. Até demais.
As manchetes e cobertura sobre o caso demonstram isso. Algumas pessoas acreditam que estão a beira de uma outra guerra. Outros já vendem como um ataque feito por grupos terroristas. E também tem alguns canais falando sobre o maior roubo da história. Qual é a verdade? Basta a Eugene descobrir e informar aos superiores da RedRock.
— Senhor! — exclama o assistente. — Achei isso no meio dos destroços.
Com uma piscada o olho de Eugene analisa o que o assistente havia encontrado. É um pedaço de tecido. Sua mente turbinada pela máquina busca identificar todo o material construído. Um milhão de análises são feitas em menos de um segundo.
A explosão causada no centro da sala arremessou alguém um pouco para trás. Só que algo está estranho. Uma pequena parte do laboratório ficou intacta. Protegida por algo. Um implante de escudo? Não, ninguém usa isso há séculos. Não aguentaria nem um tiro. Analisando o tecido novamente nota que é parte de um colete, assim como os garçons estavam usando no Baile Anual.
Alguém se disfarçou como um deles e veio roubar o Olimpo, explodiu o projeto, se protegeu e deu o fora? É uma possibilidade, mas o colete rasgado. O impacto fez isso? Céus, todo o Éden tremeu quando aconteceu. Não seria só um pedaço de roupa que seria pego pelo impacto. Está mais como se tivesse sido cortado.
Eugene não consegue imaginar o que pode ter acontecido. A tempestade ainda cai e ainda assim os hologramas e propagandas iluminam a parte de dentro do laboratório. Ele sai do estado de transe, que entrou para analisar o cenário, irritado por tantos anúncios estarem o atrapalhando. Não, não é isso. É comum tantas luzes e barulhos dançantes tomarem conta das ruas do Éden. Está, na verdade, incomodado com o fato de que não consegue entender o que realmente aconteceu naquela sala.
— Assistente — chama aquele que acompanha, sabia que ele tinha um nome, só que coisas maiores importam no momento. — Recupere as imagens do Baile Anual, vamos procurar pelo nosso garçom especial.

Analisar o que está do lado de fora do vidro parece ter se tornado tudo o que o garoto sabe fazer. Desde o momento que saíram dos lixões, lá estava ele. Apoiado no vidro observando por onde passavam. A essa altura, já estão chegando nos projetos em que viviam.
O que será que tá achando daqui? As ruas de Copa City passam como borrões de neon e escuridão. O som de sirenes e vozes ecoam ao longe, misturando-se ao zumbido constante dos hologramas quebrados. Sempre com a enorme quantidade de pessoas nas ruas. Drogados. Mendigos. É um ambiente em que você precisa estar ligado o tempo todo. Marcus está acostumado com isso. Cresceu nas ruas dessa cidade. Roubou nessas ruas. Porém, claramente o “Starboy” não entende. Caralho.
O carro para, anunciando que chegaram ao seu destino. Uma série de prédios habitacionais que parecem ter ficado parados no tempo. A tintura do lugar gasta e verdadeiramente caindo aos pedaços. O lixo espalhado pela entrada do local, a escuridão que toma conta por conta das faltas de luzes, as pessoas duvidosas que passam em frente aa entrada dos dois edifícios. Sem falar dos traficantes. A violência com armas, pontos de uso de crack e da polícia sempre batendo ou matando alguém todo dia. Nada disso importa, esse é o lar de Marcus e de Jon.
Os dois moram em prédios um de frente para o outro. Desde pequenos têm uma grande amizade. Recheadas com tempos onde jogavam futebol na rua e cometiam pequenos furtos pela área ao redor. Nem sempre foram apenas os dois. Eram um grupo grande, misturando a família dos dois. Pensar nisso deixa Marcus triste. Tempos que não voltam.
Jon lidera o caminho subindo as escadas do seu apartamento, atrás dele está Starboy e Marcus. Eles sobem em passos apressados, queriam usar os elevadores mas já tinha meses que não funcionavam. Desviam de cada olhar curioso dos moradores que sempre piscam pensando que os olhos não o enganavam ao ver uma criança com uma cabeça estranha e uma pele rosada. Jon se diverte com a situação enquanto Marcus já pensa nas desculpas que vai dar. Talvez falar que era algo que está na moda?.Pode ser que cole com os mais velhos, mas e pelos jovens que sempre estão nas escadas resenhando? Com certeza vai abrir a curiosidade deles.
De qualquer forma, os dois passam como borrões subindo o mais rápido possível. Um boneco. É uma boa desculpa. Finalmente chegam no quarto andar, onde Jon vive com a mãe. Eles batem na porta três vezes.
— Era melhor termos ido para a minha casa. — desabafa Marcus já pensando na reação da mãe de Jon.
— E o que íamos fazer lá? Ficar esperando um segundo milagre? — indaga Jon olhando para Marcus com uma cara de confusão. — Minha mãe vai saber o que fazer.
— Eu ainda prefiro fazermos do meu jeito.
— Seu jeito foi o que quase matou a gente–
— Não vamos falar disso agora — Marcus interrompe Jon.
— É, eu sei. Relaxa, minha mãe vai saber o que fazer.
— Foi mal.
A mãe de Jon foi uma grande lenda do sétimo piso. Uma das maiores. Ela e Julio botavam para quebrar e aterrorizavam todos nas ruas. Porra, eles até tinham implantes que só se podiam serem arranjados no quarto nível. Só que aí coisas aconteceram. A morte bateu na porta da família de Jon e tudo desandou. Isso foi há décadas e até hoje tem uma cicatriz que marca profundamente os que sobraram. A perda tem um impacto diferente nas pessoas dependendo do quão próxima ela é. Com a mãe de Jon, Sheila foi de um jeito. Para Julio… bem, fez ele criar os Olmecas e colocar ordem em tudo.
Conforme os passos se aproximam da porta, fazendo um barulho característico de cimento aos poucos se deteriorando, Jon fica cada vez mais ansioso. Aperta a mão do garoto um pouco mais forte do que estava anteriormente, que o faz encara-lo tentando entender o motivo. Jon percebe e responde com um leve sorriso. A criatura continua encarando-o, mas algo ao redor dela muda. Sua aura muda. Um sentimento leve começa a tomar conta de Jon e de alguma forma sabe que aquilo vem do garoto.
Não tenha medo.
Jon sente uma tranquilidade que nunca sentiu antes.
A porta finalmente abre e o estômago de Marcus congela, sempre ficava assustado com aquela aquela visão. Uma mulher que antes era forte e corajosa reduzida a uma desnutrida magricela, descabelada e com marcas de pico evidente em todo o corpo. A droga é foda. O jovem sempre sente um frio na espinha quando olha para aquela figura, principalmente para o buraco que um dia possuía um implante de olho Tram que fazia-a enxergar até os poros na pele de alguém. Hoje em dia não passa de um vão de carne e com metal em volta.
A mulher não possui expressões além de uma cara de desinteresse, mesmo ao olhar para o trio e ver que tem uma criança rosa e com a cabeça engraçada no meio deles. Nada tira aquela expressão dela. Porém, algo inesperado acontece. Os olhos dela fixam-se na figura rosada por alguns segundos a mais. Há algo em sua expressão que Jon não vê há anos: uma fagulha de curiosidade.
— Valeu, mãe — agradeceu Jon deslizando para dentro do apartamento de mãos dadas com Starboy.
Marcus não diz nada. Nem precisa. Às vezes suspeitava que a mulher nem mesmo o ouvia, já que sempre que tentava interagir com ela, nunca recebia uma resposta. Nem mesmo uma expressão diferente. Ele não perde tempo para também entrar para dentro do apartamento.
O cheiro de mofo impregna o ar, misturado com o odor ácido de químicos antigos. As paredes estão cobertas por manchas escuras, e os móveis parecem à beira de desabar. Marcus se sente incomodado em ficar naquele lugar. Tudo é estranho. A decoração parece encara-lo até o fundo de seu olhos.
Sheila volta diretamente para a poltrona que sempre se senta e ali se estabelece novamente. Jon não poupa tempo para ir até a sala e se sentar no chão para conversar com ela.
— Mãe. Fizemos merda. Tentamos roubar do Julio e fudemos tudo. — diz Jon olhando para a mãe. Sempre sente algo profundo quando olha para ela.
Calmamente, a matriarca da família retirou um cigarro do maço que sempre carrega consigo e acende-o.
— Você tentou uma oportunidade. Impressionante. — responde a mulher com uma voz calma e serena.
Marcus observa tudo da entrada do apartamento. O garoto rosa está em pé perto dele.
— Ele quer matar a gente. Acha que da para conversar com ele para ver se muda de ideia?
— Alguém como ele nunca muda de ideia. — Ela expele fumaça pelos pulmões.
— O que podemos fazer então? Os Olmecas tão por toda a parte! Logo vão achar e matar a gente.
— O que é aquilo? — Sheila observa a pequena coisa rosa na entrada do apartamento dela.
— Não sei. Ele meio que caiu do céu e matou os Olmecas que iam passar a gente. — responde Jon, continuando com o tom de voz baixo e respeitoso.
Sheila encarou a criatura rosada por alguns segundos parecendo que estava analisando-o.
— Vou pensar em algo — fala Sheila retomando o assunto. — Vai na rua comprar um pouco de pasta sintética. Vou fazer algo para jantarmos.
Jon acata como um garoto de recados e saia de forma apressada do apartamento. Marcus sempre sentiu que há algo errado entre os dois, mas não sabe explicar o que é. É algo de mãe? A dele já partiu há tanto tempo que mal pensa ou lembra dela, apesar de sempre haver um carinho no coração dele quando o assunto surgia. De qualquer forma, está com uma pulga atrás da orelha. Apenas segue o amigo, levando Starboy consigo pelas mãos. Por um segundo parou e encara a criatura. Talvez seja bom comprar algumas roupas para ele. Finalmente percebeu que o garoto está sempre de cueca para lá e para cá. Um disfarce cairia bem.
Sheila observa-os se afastando enquanto vão em direção ao portão de saída dos prédios. Jon conversando e brincando com o amigo pelo caminho. No fundo, sente uma felicidade por saber que o filho está bem e se divertindo, por ora. Porém, algo a mais chama a atenção dela. Algo rosa. Uma oportunidade.
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