A traição de Sheila não é algo que possa ser perdoado agora. Marcus pensa nisso o tempo todo. Ela ainda está em recuperação dentro daquele cômodo do prédio, com o filho a acompanhando o tempo todo. Desgraçada. O rapaz encara com o afinco a porta, um olhar de ódio misturado com pena, que parece encenar zilhões de cenários de destruição. Imerso no próprio pensamento, essa sequência é quebrada quando Anika dá um leve toque no braço dele.

    — Não é culpa dela — diz Anika parando ao lado de Marcus e também encarando a porta. — Você sabe como são os vícios.

    — Por isso mesmo sei que é culpa dela.

    — Agora não, Marc — A mulher se vira para ele e encara-o no fundo dos olhos. — Não precisamos dessa negatividade agora.

    — Ah, então dizer a verdade é ser negativo? — Marcus eleva o tom de voz.

    — Vai se foder — rebate, virando o rosto. O coração dela dispara por um segundo. Será que Jon tinha ouvido?

    O silêncio toma conta por alguns segundos, até que finaliza:

    — Estamos ficando sem curativos e com fome. Vai na rua e traz tudo o que precisarmos.

    — Melhor do que ficar aqui — Marcus dá de ombro e começa a caminhar para fora do prédio.

    — Se cuida. Os Olmecas ainda tão atrás de vocês.

    Com Marcus saindo, Anika se abaixa e começa a respirar fundo. Mesmo vivendo em Copa City, acostumada com a violência das favelas e projetos, ela ainda se sente pressionada diante do horror. Sempre.

    Não tem como fugir da brutalidade e morte da cidade. Todos temos um amigo, parente ou irmão que já foi pego no fogo cruzado desse hospício. Estamos acostumados. Tratamos com normalidade. É apenas mais um dia quando alguém morre, mas, ainda assim, a sensação de impotência diante disso faz Anika se sentir desperançosa, nervosa e como se tivesse caindo do céu sem paraquedas. Pronta para atingir o chão com tudo a qualquer segundo. Porém é uma queda que nunca chega. É assim desde que perdeu o irmão.

    Já é noite em Copa City. O grande sistema do teto da cidade do sétimo nível começa a entrar no modo noturno. As luzes gradualmente são apagadas dando lugar a pequenos pontos luminosos no grande LED que cobre a cidade. O modo noturno está ativado e com ele vem as sirenes de polícias e sombras que se movem e te roubam.

    Marcus cresceu nesse ambiente, já tá mais do que acostumado a andar na calada da noite. Ele pode se defender caso aconteça algo. Melhor. Ele pode lucrar, mas não hoje. Ele tem uma missão mais importante para cumprir. Tá, ele tava bem puto antes, porém a raiva já passou e agora ele tá pensando melhor no que aconteceu. Anika tava certa, ele conhece os vícios. O primo dele era um viciado. Trazer as memórias desse parente dói a mente. O que aconteceu foi uma tragédia. Lidar com isso é sempre uma guerra interna.

    Marcus abre o celular para saber quantos neoreais ainda possui e… nada. Gastou as últimas economias quando foi visitar Anika no KillBurger. Geralmente ele tem métodos para não pagar pela comida que compra em fastfoods, só que precisa apoiar a namorada, né?

    Imerso na noite, só tem uma forma de conseguir dinheiro. O homem mete a mão no bolso e sente um alívio quando sente o tecido grosso da máscara de ski. Skiar? Coisa de rico. Essa merda vai servir para outra coisa.

    A melhor área da cidade para sacar muito dinheiro em um único serviço é na Reserva da Costa, bairro onde os ricassos moram. Perto da praia, com belas vistas para o mar e longe de qualquer favela e ação truculenta da polícia. Lugar que nem a influência dos Olmecas consegue chegar e com incontáveis casas para invadir. Perfeito.

    Já é tarde da noite e as ruas estão desertas. Marcus analisa cada um dos infinitos prédios com o olhar, dá para sentir o berço de ouro vindo de cada casa em qualquer andar. O doce está perto, mas não é simplesmente entrar e pegar.  É bem mais complicado. Cada prédio tem seguranças, grades e câmeras de segurança.

    São poucos os que conseguem executar esse serviço, o próprio Marcus não conhece ninguém que já tenha conseguido. Já ouviu histórias de uma mulher que conseguiu tirar alguns milhões de neoreais em uma única noite. O mito diz que ela conseguiu seduzir o porteiro e conseguiu entrar, depois disso entrou quieta e saiu quieta, ficando rica da noite pro dia.

    Até onde Marcus sabe, ele não é o símbolo de sexy appeal, então é impossível, mas ainda assim ele tem uma chance. O plano é fácil: ele rende o guarda sem chamar atenção, rouba as roupas dele e tenta roubar pelo menos um apartamento no primeiro andar. Precisa torcer para não dar de cara com nenhum segurança, do prédio ou pessoal do apartamento. Dizem que os caras são chipados até os dentes. No sétimo nível? Difícil, mas Marcus não quer pagar para descobrir.

    Dobrando na terceira rua, dá para ver um edifício que a segurança é menor. Só um porteiro e fica na parte menos privilegiada da Reserva. É, tem que ser agora. Marcus confere se não tem ninguém na rua e sente um alívio quando não vê ninguém. Ele coloca a mão esquerda para tirar a arma da cintura e a direita enfia no bolso para puxar a máscara de ski. É quando ele escuta uma sirene tocar duas vezes atrás dele.

    Marcus congela.

    Já são três da manhã e Marcus não chegou ainda. Anika está exausta. Será que passou dos limites quando mandou o namorado ir “se foder”?  Não, eles já brigaram pior e nunca deu nada. A condição de Sheila está estável e até agora Jon não saiu do lado dela. É admirável o amor dele pela mãe, só que… ela traiu ele e o melhor amigo, né?

     Puta merda — Ela bufa.

    Sentada encostada na parede, o sono logo começa a alcança-la. Ela luta para não adomercer agora. Marcus ainda não voltou e algo pode acontecer com Sheila a qualquer momento. É tão difícil… lentamente os olhos dela vão se fechando…

    De fininho, a porta surrada e quase caída do cômodo em que Sheila está repousando começa a se abrir e é o suficiente para deixar Anika ligada novamente. É Jon.

    — Eu te acordei?

    — Não, tá tudo bem — responde Anika com um leve sorriso. Ela se surpreende ao ver Jon e se pergunta como ele está lidando com tudo o que aconteceu.

    O rapaz fica em silêncio e se senta perto dela.

    — Cadê o Marcus?

    — Pedi para ele ir comprar algo para comermos.

    Silêncio novamente. Anika sente a pressão e pensa em perguntar como ele está, mas tem medo da resposta. Ela tem que fazer isso, né? Apesar de não se conhecerem há muito tempo, sabe da importância dele para Marcus e se preocupa com ele.

    — Como ‘cê tá lidando com isso? — Simples e direta.

    Jon olha para a frente e encara a parede em silêncio. Dá para sentir o conflito no olhar dele.

    — Sinceramente, não sei — Jon finalmente rompe com o silêncio. — Eu amo ela, só que… Não sei. Eu já perdi tantos irmãos que pensei que não iria sentir tanto quando perdesse alguém importante de novo.

    Anika não sabe o que responder.

    — Isso é complicado demais — começa Anika. — Eu sinceramente não sei como me sentiria se fosse você. Só que eu tenho noção de que não foi culpa dela.

    — Se não foi culpa dela, então foi de quem? — Jon se vira para ela e fala com a voz carregada em tristeza.

    — Dos Olmecas. Os nojentos usaram o vício dela para… você sabe.

    Jon fica em silêncio de novo.

    — Vou voltar pro quarto — ele já diz levantando e indo em direção ao quarto.

    — Me avisa se precisar de alguma coisa.

    Anika estremece por dentro. Não sabe o que vem pela frente — e nem o que passa na cabeça de Jon. Será que ele culpa a mãe como Marcus culpa? Droga. O cansaço sumiu, mas dá lugar ao que resta — é ansiedade. O tipo que te deixa acordada a noite toda, esperando o pior.

    Só falta um café quente. Ia ser bom ter algo nas mãos enquanto tudo o resto desmorona.

    — O que alguém como você tá fazendo aqui a essa hora? — indaga um dos oficiais, que no fundo já sabe a resposta.

    — Não é óbvio, Paul? É claro que tá indo pra casa.

    — Sei não, Jerry. Um favelado desse morando aqui?

    Ambos os policiais riem.

    — Vamos deixar ele se explicar.

    Os dois policiais cercam Marcus, que é rápido para pensar em uma resposta.

    — Eu tô indo pra casa da minha namorada — Marcus mente.

    A todo momento a mente dele pensa em como ele pode fugir dessa situação. Ele está armado, coisa que é comum em Copa City, mas que ainda assim é um crime. O único piso na Torre-Cidade em que andar armado é uma ofensa.

    Marcus não pode ir pra cadeia. Não com tudo desmoronando. E sinceramente? Não duraria nada lá. Seria esfaqueado na primeira noite a mando dos Olmecas.

    Ambos os oficiais riem novamente.

    — Garoto, nós dois sabemos que nenhuma maluca da Reserva iria namorar alguém como você. Só seja sincero, você tá com alguma coisa?

    A mente de Marcus começa a acelerar ainda mais. Os dois policiais cercam ele contra uma parede e não tem para onde fugir. Ele tem que aceitar. Rodou.

    — Não — responde com confiança.

    — Revista ele, Jerry.

    Não tem o que fazer. Em um movimento rápido, Marcus leva uma das mãos até a cintura e saca a arma, atirando duas vezes contra o primeiro oficial.

    Ele se imagina fazendo isso, mas a realidade? Vai tomar assim que mexer um músculo. Porra, Anika, Jon e Sheila tavam contando com ele… É assim que tudo vai terminar? Com ele tirando uns dias? Morrendo na cadeia e deixando todos para trás? Deixando o Starboy para trás?

    Um clarão. Um estrondo. Um raio desce do céu artificial como uma lâmina cortando o silêncio. Por um segundo, tudo congela.

    Agora. Os policiais se distraem por um segundo, o que é o suficiente para Marcus atravessar no meio dos dois, empurrando eles para o lado e sair correndo. Corre como se não tivesse amanhã, por todos aqueles que contam com ele. Ele ouve um tiro, mas já é tarde demais. Ele dobra a esquina e se mete no primeiro beco que vê pela frente. Como um gato, ele usa os braços para se apoiar em um muro e faz força para se jogar para o outro lado.

    Tropeça, quase cai, mas não para. Continua correndo. Nem se importa em checar se os policiais ainda estão atrás dele. Aqueles gordinhos que só devem patrulhar área rica? Sem chance. Esses são os primeiros a comer poeira.

    A ansiedade de Anika está forte. Já são cinco da manhã e Marcus ainda não voltou. Pelo menos Jon não saiu do quarto. Talvez seja bobeira da cabeça dela, mas sente que ele tem que ficar perto da mãe? Não sei. Ela já tá delirando com tanta coisa acumulada na cabeça. A única coisa que fez pelas últimas foi ficar mexendo no YokYok sem parar. Um vídeo atrás do outro, sem fim. Só aguardando o que vem depois para ocupar a mente. Ela tinha prometido para si mesma que iria se cuidar e não ficar com a mente presa nesses aplicativos. Agora olha só para ela. A cada dez segundos passando o dedo na tela ansiosa para saber o que vem depois.

    O dia já começa a amanhecer em Copa City e Marcus ainda tá sem dinheiro. O grande céu artificial começa a se apagar para dar lugar a um fraco brilho de Sol no horizonte, anunciando que muitos sobreviveram mais um dia. Marcus sobreviveu. Mas e Jon? E Sheila? O silêncio começa a preocupá-lo. Claro, a qualquer momento dá para ligar pra qualquer um dos dois e perguntar, só que eles devem estar dormindo. E do jeito que saiu, puto do jeito que tava? Melhor deixar quieto e fazer o que mandaram.

    Coisa que ele não tá conseguindo. Tentar se dar bem na Reserva da Costa foi um erro. Um que ele não pretende cometer agora. Passou as últimas horas se movendo pela cidade sempre alerta para ver se alguém, seja policial ou algum gangster estava atrás dele.

    Depois de muito tempo, finalmente chegou no Centro da cidade e é aqui que ele vai garantir o nosso pão de hoje. Só que sempre alerta para não chamar a atenção de qualquer pessoa indesejada. Falando nisso, pode ser de manhã, só que dois membros dos Olmecas estão vindo no final da rua.

    Marcus fecha os olhos por um segundo. A mão vai à cintura. Caminha devagar, tentando esconder os olhos nervosos que vasculham a rua.

    Marcus sente um alívio no peito quando passam direto sem sequer suspeitarem que está ali.

    Com mais um obstáculo superado. Marcus começa a analisar as ruas em busca de um saque rápido. Todas estão movimentadas por enquanto. O Centro acorda cedo. Ele pode não saber que horas são exatamente, só que está claro o suficiente para saber que o dia já amanheceu. A janela para ele poder fazer algo sem chamar a atenção da polícia ou de qualquer pessoa está acabando. Não resta muito.

    As ruas se enchem. Grupos seguem juntos para o trabalho. Não há ninguém sozinho. Nenhuma rua vazia. Marcus já está perdendo as esperanças. Já está caminhando sem sentido pelo centro da cidade, entrando em cada rua. Talvez esteja na hora de aceitar que não dá. Que vai voltar pro esconderijo de mãos vazias e decepcionar Anika.

    Cabisbaixo, ele reconhece a rua em que está. Costumava passar por aqui todos os dias quando ia para escola. Faz muito tempo. Quase uma década? É, por aí.

    Ir para a escola não é comum para alguém das favelas ou dos projetos. Muito caro e não tem tanto retorno assim. As crianças precisam fazer dinheiro e não aprender. Ainda assim, Marcus foi inteligente o suficiente para ganhar uma bolsa nessa escola. Teve que abandonar depois que ficou sozinho no mundo. Mas foi divertido. Bons tempos.

    Marcus se pega com um leve sorriso na face, lembrando de tempos bons enquanto tudo ao redor desmorona. É quando algo chama a atenção dele.

    No final da rua, uma mulher bem vestida vem caminhando com um garoto. Ele aparenta ter uns sete anos? Uniforme de escola, bem vestido também. É, essa escola realmente só recebe a nata da cidade.

    O estômago de Marcus fica frio quando percebe. A mão encontra o tecido grosso da máscara. O coração aperta. A outra mão já desliza até a cintura. Escolha feita.

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