Capítulo 1
Em uma noite qualquer, um vulto percorreu as fedorentas e estreitas ruas de Jalu. Até onde a visão alcançava, estavam todas desertas, exceto pelo que se assemelhava a um ser, doente e solitário. Não havia uma única voz para gritar aterrorizada.
Era melhor assim, ou então ele seria obrigado a silenciá-la.
Agilmente, ele explorou os becos à procura de um melhor caminho para sair da vila. Seu destino não estava em casas, muito menos em seus moradores. Estava ao leste, perto do rio, onde outrora fora seu lar. Onde a terra era vermelha de sangue, onde os mortos, os seus mortos, exigiam vingança.
O clima estava úmido e ainda caía uma fina garoa quando os primeiros gritos chamaram a atenção do vulto. Ele sentiu o pavor de quem os tinha exprimido, não estava muito longe. Adentrando na escuridão, ávido, ele esperou a repetição dos chamados.
Não demorou muito para o grito de dor e sofrimento ecoar novamente por entre os becos malcheirosos. Um clamor que ele conhecia, que trazia recordações e dores inimagináveis, não podia ser ignorado. Como se não tivesse controle, correu imprudentemente, mas parou de brusco a dez passos da vítima.
— Nããão, por favooor, nããooo! Socorro…
Um tapa silenciou a indefesa vítima.
O ser estava estático, pensativo e cego perante o que acontecia à sua frente. Lembranças invadiram seus pensamentos. Seus músculos tremiam embaixo de uma surrada e suja capa, mas ele não fez nenhum movimento.
A criatura não notou a parte superior do vestido da moça sendo rasgada com brutalidade e ódio. Seus olhos estavam abertos, o reflexo de Nix iluminava precariamente a cena, mas ele não estava lá.
Sua mente revivia uma terrível lembrança, e seu corpo reagiu. Espasmos percorriam por sua carne. Um suor frio escorreu ao lembrar da terrível escolha que fizera. Ele odiava mais a si mesmo do que qualquer outra coisa.
Para o deleite do agressor, pequenos seios brancos apontaram entre os trapos. O choro da moça, misturado às gargalhadas de seu opressor, era o único som ouvido em todas as direções. Mas nem um ruído saiu dos casebres abarrotados. Todos sabiam do que se tratava, mas não ousavam impedir. Depois da ruína de uma das famílias fundadoras, a vila ficou assim, estupros e mortes ficaram comuns, e rotineiros.
O agressor observava com prazer os pequenos seios da jovem. Sua expressão de delírio e satisfação não lembrava em nada o homem que conhecera. Seu toque, antes delicado e suave, agora estava cheio de raiva e desejo. Mesmo ele tendo acariciado outrora apenas suas mãos e seu rosto, ela ainda se lembrava da sua última visita, das juras de amor trocadas, dos sonhos embriagantes.
Ela tinha fantasiado inúmeras vezes a noite de núpcias, escolhido os nomes dos filhos e filhas que teria ao longo da vida. Contudo não chegou a isso, em uma noite semelhante a esta, ela soube que não seria mais sua promised, chorou e gritou. Tentou fugir, mas se conteve.
Não queria ser a culpada da desgraça de sua família. Seu pranto durou dias e noites, ela quase tirou a vida quando soube que o amor da sua vida, como ela mesma dizia, a odiava.
A moça clamava por socorro e gritou ainda mais alto quando o homem que ela amava, que jurou protegê-la, apertou com todas as suas forças seus pequenos seios.
— Isso, grite! Achou que faria pouco caso de mim, sua maldita?
— Nãão, por favor, eu não tiv… — Novamente um tapa a calou.
— Quero ver o que você tanto protegia em nossos encontros, sua vagabunda!
Com o mesmo prazer e brutalidade de antes, rasgou a parte inferior do vestido da moça. Ele não pôde conter um largo sorriso de satisfação ao notar que a moça não tinha pelos.
— Foi assim que você se preparou para ele?
Ao passar sua mão suja entre as pernas da moça, fez-a encolher, por nojo e pavor. Isso o deixou ainda mais excitado e violento.
— Você vai gostar disso, as putas sempre gostam. — Acrescentou o agressor.
O agressor olhou para um lado e para o outro; os únicos olhares que encontrou foram os de seus subordinados assistindo à cena, mas, quando olhou para frente, seus olhos arregalaram-se de pavor. Tremendo, apontou para as sombras. Seus colegas o viram também.
Todos os soldados recuaram alguns passos. Por um momento, o medo brotou em seus corações; no da jovem, surgiu um resquício de esperança, rapidamente afastado pelo comentário de um dos soldados, completamente bêbado:
— Vá embora, velho maldito, ou você será o próximo. Vou matar você como matei o pai dessa magricela. — Ao beber o último gole do vinho que tinha roubado da casa da jovem, continuou: — Maldito vinho com gosto de merda…
— Sã-sã-são três chicotadas, por andar nas ruas depois do toque de recolher, mais cinco por ter me atrapalhado. — O homem tremia de medo, mas encontrou coragem após o comentário de seu subordinado bêbado.
Não houve resposta, e o velho não dera nem sinal de que ouvira as ameaças. A botija de vinho assobiou quando o bêbado a atirou em sua direção. Um som abafado se fez ouvir no beco quando a jarra estourou em seu peito. Todos os músculos de seu corpo estavam contraídos; aquilo não lhe infligiu dano algum, porém o tirou de seu profundo transe.
O velho observou a jovem, nua e enrolada em trapos, cercada pelos quatro soldados. Apertou tão fortemente o cabo da marreta que alguém ao seu lado poderia ter ouvido a madeira gemer.
Ele a roubara de um dos guardas nos portões da entrada leste. Mesmo no frio, ele sentiu seu rosto quente, era febre de ódio. Seu corpo involuntariamente deu um longo passo em direção aos soldados.
— Olha, gente: ele é durão. — Virando o rosto em direção a um companheiro, completou: — Vou matá-lo como um porco, fiquem olhando!
O soldado bêbado desembainhou sua espada e atacou.
O velho avançou ferozmente ao encontro do bêbado azarado. O soldado teve apenas o tempo de gemer antes de ser atingido no maxilar. O golpe estilhaçou seus dentes e quebrou seu crânio, arremessando seu corpo para trás. Antes que seus companheiros pudessem ajudar, um segundo golpe o acertou com ainda mais força, estourando sua caixa torácica e deixando várias costelas expostas.
Destruindo qualquer milagre de sobrevivência, a marreta entrou profundamente no corpo do soldado bêbado.
Ele não teve tempo de retirar a arma das entranhas do moribundo, pois dois agressores já estavam a poucos centímetros, prontos para atacá-lo com fúria e xingamentos. Rapidamente, o ser apoderou-se da espada do morto e decapitou ambos como se não fosse nada. A sequência de movimentos o fez ficar a três passos do líder do grupo.
O soldado de capa azul estava tomado por completo pavor. Em uma tentativa patética de se proteger, agarrou a garota pelos cabelos. Ela tentou levantar-se segurando os trapos do vestido, mas conseguiu apenas cobrir um dos seios com um pedaço de pano ao se pôr de pé.
Ele poderia ameaçar matar a jovem caso o velho se aproximasse, mas nada saiu de sua boca. Acabou escolhendo adiar sua própria morte, correndo para dentro da casa onde estavam os corpos do irmão e dos pais da moça, jogando-a na direção do ser. Contudo, antes de passar pelo vão da porta, perdeu a visão do olho esquerdo.
O soldado parou bruscamente, tentando entender o que lhe acontecera; ao levar as mãos ao rosto, percebeu a ponta de uma espada. Um grito de espanto e terror saiu de sua garganta, antes que caísse no chão, já sem vida.
A jovem, apavorada, estava nos braços de seu salvador, abraçando-o com todas as forças. Transtornada por ter perdido toda sua família e quase ter sido violentada, chorava, dizendo coisas aparentemente sem sentido:
— Por quê? Por que ele fez isso? Não foi minha culpa! Não foi minha culpa…! Eu disse que o amava… Que fugiria com ele… Mas ele não acreditou…
O único som na noite era o choro da moça, alternado com suas palavras. O velho nada disse, mas ela prosseguiu:
— É a tradição, meu pai me disse… Ele poderia ter lutado por mim, essa é a lei, mas ele não quis. Eu não entendo! Por quê…?
Sua expressão de medo e confusão ficou ainda mais clara quando enfim pôde ver o rosto de quem a salvara. Ele não era velho; tinha quase sua idade. Seus olhos arregalaram quando percebeu de quem se tratava.
O jovem guerreiro percebeu que fora reconhecido, e só havia uma única coisa a ser feita. Ela não sentiu dor quando a fria lâmina encontrou seu coração. Seu corpo deslizou dos braços do jovem até encontrar o solo que a vira crescer. O solo que testemunhara seu nascimento e flagelo. Onde ela conhecera o amor e o desespero encarnado na mesma pessoa.
Em seu último suspiro de vida, a jovem percebeu o olhar de dor de seu herói. Pôde até pensar se aquilo escorrendo em seu rosto era uma lágrima ou apenas uma gota de suor. Antes de morrer, escolheu acreditar que era uma lágrima.
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