Após o banho, voltei para a cozinha, onde me esperava um ensopado de cheiro delicioso e vários pães. Meu estômago gritou de felicidade. Sentei-me à mesa e devorei aquele banquete dos deuses. Era uma refeição simples, mas eu estava com muita fome. Até hoje me lembro do gosto daquele ensopado.

    Minha mãe esperou pacientemente, sentada ao meu lado. Quando limpei a última gota de sopa da tigela com um pedaço de pão, ela disse:

    — O que aconteceu, Kan?


    Contei tudo, sem esconder nenhum detalhe. Era melhor assim; minha mãe sempre sabia quando eu estava mentindo. Ela não me interrompeu em momento algum. Quando percebeu que eu tinha terminado, começou, com extrema calma:


    — Tenho certeza de que seu pai gostaria muito de ter esta conversa com você, mas ele não teve escolha.


    — Como sempre, não é? Nunca está presente.


    — Não fale assim do seu pai!


    — Mas é verdade, ele nunca… — parei abruptamente ao perceber seu olhar reprovador. Era complicado para mim, e para ela, não devia ser diferente. Resolvi ficar calado.


    — Estou extremamente decepcionada com você, meu filho. Lutei tanto para modificar a estrutura de criação desta família. — Ela disse a última parte para si mesma.


    — Desculpe, mãe. — Foi tudo o que consegui dizer.


    — Desculpas não vão mudar as coisas. Você tem noção do mal que fez àquele garoto?


    — Sim, mãe.


    — Meu filho, ele pode nunca mais falar, lutar ou ter uma mulher. Você sabe como são as tradições da nossa vila.


    Respirei fundo, vendo que aquilo iria demorar muito. Ela continuou, explicando-me como deveria se portar um guerreiro, que eu havia feito algo que feria todas as normas da nossa família e que fui irresponsável, imaturo, presunçoso, arrogante, entre muitos outros adjetivos que só ela conhecia. Escutei tudo de cabeça baixa. Quando ela terminou ou se deu por satisfeita, inspecionou novamente meu braço.


    — Vou passar uma pomada neste braço; vai ajudar com o inchaço.


    — Não precisa, mãe, eu estou… — Ela me olhou furiosa. Fiquei calado e aceitei meu destino; eu odiava aquela pomada.


    Após passar pelo sofrimento da maldita pasta verde, minha mãe improvisou uma tipoia, e desmaiei na melhor cama do mundo. Já fazia um bom tempo que não dormia tão profundamente.

    Acordei tarde e louco de fome. Minha mãe estava terminando de fazer o almoço. Engoli a comida o mais rápido que consegui.


    — Você vai se engasgar desse jeito. Que pressa é essa?


    Após muito esforço e a ajuda de um copo d’água, consegui responder:


    — Vou para a forja conversar com o Esdom. — Minha mãe me olhou com desconfiança.


    — Sei muito bem qual Esdom você quer ver!


    Tentei disfarçar com uma encenação de falta de pressa, mas no final não consegui e saí correndo. Tenho certeza de que minha mãe ostentava uma expressão de riso e chacota, mas o embaraço não me deixou olhar para trás. Minha desculpa era muito esfarrapada; eu só queria ver a Izi.

    Entrei correndo na forja, ansioso, procurando a encomenda que já deveria ter sido entregue. Aquela seria minha desculpa. Contudo, não foi isso que aconteceu. Esdom não me recebeu de bom humor.

    — Moleque maldito! Além de faltar por um dia, ainda chega fuçando em tudo! Acha que a forja é brincadeira?


    — Não, eu estava na academia.


    — Academia! Que merda você foi fazer lá?


    — Chiaro achou que seria bom.


    — Bom para quem? — rosnou Esdom. Ele sempre fazia isso quando discordava de alguma coisa. — Pegue a marreta e me ajude com este machado. Já que está aqui, vai trabalhar!


    — Como vou trabalhar com o braço quebrado? — protestei, indignado.

    Esdom fixou o olhar no meu braço. Deixou o machado de lado e se aproximou para examinar. Sem tirar o braço da tipoia, apertou-o. A dor foi tão forte que fez todo o meu corpo estremecer, mas não soltei nenhum gemido. O ferreiro era um bom homem, mas odiava escândalos. Cada gemido seria retribuído com mais dor.

    — “Um ferreiro não pode gritar por qualquer dorzinha. Seja homem”, dizia ele sempre.


    — Pegue a marreta.


    — Eu já falei, meu braço está quebrado!

    A impaciência de Esdom era nítida, e isso me deixou temeroso.

    — Quem você acha que é, molecote, pra me ensinar alguma coisa? Já vi coisas que fariam você tremer de nojo. Acha que no campo de batalha você pode parar de lutar quando cortam seu braço tão fundo que você ouve a lâmina roçar no osso? Não pode! — Ele mostrou uma cicatriz.

     — Não pode parar de lutar quando furam sua barriga e você não sabe se é sangue ou bosta saindo da ferida, ou os dois. — Mostrou outra cicatriz.

     — Nem quando te apunhalam pelas costas! Ou você luta, ou você morre!

    Ele me encarou, feroz:

    — Aprenda de uma vez por todas, moleque. Ninguém se importa com sua dor. Pegue a marreta e me ajude. Seu braço não está quebrado.

    Abaixei a cabeça, tirei o braço da tipóia e senti a pior dor da minha vida. Trinquei os dentes quando apertei o cabo da marreta. Ela pesava cerca de cinco quilos, mas naquele dia parecia mil. A primeira martelada descansou no chão. A segunda acertou o machado, e eu desejei não ter conseguido. A vibração do cabo me fez suar frio. Eu já tremia de dor e estava prestes a desmaiar, mas o grito do ferreiro me despertou:

    — O QUE VOCÊ ESTÁ ESPERANDO?! Se o aço esfriar, vai ser pior.

    Naquele momento, pensei seriamente em largar a marreta e correr para chorar nos braços da minha mãe, mas não o fiz. A dor seria terrível, mas eu não tinha escolha. 

    Apertei o cabo com força e o soltei com ódio contra o lingote que já estava quase negro. 

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