Paz. 

    Não havia dor, choro, lágrimas ou sentimentos de qualquer espécie. Apenas o mais terrível silêncio em todas as direções. Nem mesmo o tempo existia. Eu não podia sentir ou tocar, muito menos recordar; nada era permitido, absolutamente nada. Mas algo mudou. Primeiro veio o cheiro.

    — Ele está melhor? — A voz era calma, porém temerosa. Meu coração disparou, contudo, não consegui compreender.

    — Ele ainda não acordou, minha filha. — Outra voz familiar, que me trouxe calma e segurança. Já a outra me causava um conflito de sensações que eu mal conseguia entender.

    Tentei abrir os olhos, mas eles não me obedeciam. Não conseguia movimentar nenhuma parte do meu corpo; nem mesmo minha respiração estava sob meu controle. Algo novo e ao mesmo tempo antigo pressionou meu peito. Demorei para perceber do que se tratava.

    “Um abraço!”

    Um turbilhão de sentimentos fervilhava em minha mente ao lembrar da dona do aroma de flores. Quando senti seus lábios tocarem meu rosto e seu perfume se intensificar, um espasmo percorreu todo o meu corpo.

    — Oi, Kam, como você está hoje? Queria que você pudesse me ouvir. Desculpe por não ter chegado antes. — Ouvi um choro tímido e contido.

    “Desculpas, mas pelo quê?”

    — Calma, minha filha, você não teve culpa. Você fez o que pôde. — Minha mãe a consolou, contendo as próprias lágrimas, perceptíveis em sua voz.

    — Mas já faz três noites, e ele não reage. Eu não sei mais o que fazer.

    — Temos que manter a esperança. O curandeiro disse que ele pode acordar  a qualquer momento. — A voz da minha mãe estava mais perto, provavelmente abraçando a dona do aroma de flores, pois seu choro ficou abafado por alguns segundos.

    — Desculpe, senhora Ulia, obrigada por ter paciência comigo.

    — Eu que devo agradecer; você salvou a vida do meu filho. Vou fazer um chá. 

    “Salvou minha vida?”

    Novamente, voltei ao nada, à inexistência. Gritos, choros e pedidos de clemência alcançaram minha alma. Medo, impotência e pavor tomaram conta de mim ao perceber que eram gritos de minha mãe.

    — NÃO! Por favor, eu não tenho mais NADA! Meu marido vai voltar, e eu vou recompensar todos vocês.

    — RECOMPENSAR? Seu marido está morto, da mesma forma que o irmão dele e seu filho!

    Minha mãe gritou de dor ao ser lançada contra a parede. A madeira rangeu com a força do impacto.

    — Você sabe muito bem que ninguém emprestaria dinheiro para uma mulher. Mesmo assim, nós te emprestamos, e agora você vem dizer que não pode pagar! Você vai pagar de uma forma ou de outra, sua puta de Aico inútil.

    — Me desculpe! Ninguém está pagando o que deve para minha família. Não tenho mais nada! Por favor, meu filho… — Escutei minha mãe gemendo, meu desespero aumentou por não entender o motivo. Ela era orgulhosa, teimosa e autoritária; aquela mulher não parecia em nada com minha mãe.

    — Tem sim, Lafúr. Aquela coisa lá fora, quero ela.

    — Não, por favor! Foi o meu esposo que deu para o meu filho, é a única coisa que sobrou! Me dê dois dias, por favor, por favor, por favor! — Minha mãe implorava, e eu não entendia o motivo.

    — Peguem aquele animal, vamos levá-lo. — Era a mesma voz que ameaçou e agrediu minha mãe.

    “Vou matá-lo!”

    Senti todo meu corpo. Cada músculo ansiava por estripá-lo. Por um breve momento tive controle, mas logo voltei ao nada… só restou o desespero da impotência. 

    — E diga àquele ferreiro imbecil que ninguém vai comprar suas terras. É perda de dinheiro, você sabe do que estou falando. Quando seu filho morrer, tudo isso vai pertencer ao…

    Minha consciência retornou com o cheiro e a voz de Izi.

    — Kam, meu pai está muito preocupado. Reclama dia e noite. — Ela começou a imitar o pai da melhor forma possível: — “Suportei aquele merdinha por anos; quando ele resolve tomar jeito, vem outro merdinha e quase o mata. Pensei que o tivesse treinado melhor.” — Ela repetiu rindo, acrescentando:

     — Às vezes eu o escuto resmungando que sente sua falta.

    Ela deu uma pequena pausa e riu novamente.

    — Ele já ensaiou te visitar inúmeras vezes, mas sempre volta no meio do caminho com uma desculpa esfarrapada: 

     Imitou a voz grossa e firme de Sdom.

     — “Deixei a forja apagada. Tenho que terminar um machado. Só estava caminhando. Acho melhor amanhã. Hoje vai chover.”

     — Acho que ele não sabe o que te dizer. Na verdade, nem eu sei.

    Izi continuou a contar tudo o que aconteceu na vila, coisas boas, é claro. Contou com entusiasmo que aprendera uma nova linha.

    “Ela conseguiu ler a inscrição na espada!”

    Foi imediato. Meu coração acelerou, e ela percebeu.

    — Acho que ele está me escutando! — Izi gritou, chamando minha mãe.

    — Como você sabe? Ele se mexeu? — indagou minha mãe esbaforida.

    Izi deu uma risadinha e segurou minhas mãos.

    — O coração do Kam acelerou quando contei que a senhora me ensinou uma nova linha. — Apertou levemente minhas mãos e completou: — Já consigo ler a linha da espada, Kam.

    Com muito esforço consegui retribuir o leve aperto, e só escutei gritos e comemoração das duas.

    — Graças aos Deuses Brancos, Izi, ele está acordado! — Minha mãe soluçava intensamente, sendo acompanhada por Izi.

    A comoção durou bastante. Minha mãe me abraçava e chorava, mas novamente minha mente não permaneceu consciente por muito tempo. Esses episódios se repetiram diversas vezes; algumas vezes eu estava sozinho, outras vezes minha mãe falava comigo. Muitas vezes era com Izi que minha consciência retornava; acredito que ela passou muitas noites em repouso na minha casa.

    — Eu sou a sua Promised, Kam!

    Primeiro achei que estava sonhando, mas senti seu perfume e percebi que não estava. Ela segurava minhas mãos e repetiu, agora bem próxima do meu rosto:

    — Eu sou sua Promised. Abra os olhos, por favor!

    Senti algo inexplicável, como se um peso fosse tirado dos meus ombros. Eu estava livre; melhor ainda, eu estava feliz. Senti o toque suave de suas mãos em meu rosto.

    A reação involuntária ao acordar é abrir os olhos, mas no meu caso, embora acordado, não tinha controle do meu corpo, como se não soubesse qual músculo mover.

    Minha cabeça doía, e eu não fazia ideia de onde estava. Respirei profundamente, tentando lembrar por que não conseguia abrir os olhos e como havia chegado naquela situação.

    — Eu estou com você. Não desista, eu te amo!

    “Me ama!”

    Automaticamente meus olhos se abriram. A primeira imagem foi Izi, parada e iluminada pelos raios de Eros que invadiam meu quarto. Ela estava ainda mais linda, com um vestido branco bordado com rosas. Sua pele, outrora branca como neve, agora dourada pela luz, era deslumbrante. Ela notou meu olhar e sorriu.

    Minha mãe estava ajoelhada ao lado da cama, chorando e recitando um mantra antigo. Eu estava confuso e desnorteado, mas percebi meu corpo totalmente esquelético. Meus braços não passavam de ossos e couro.

    “O que aconteceu comigo!”

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