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    Finalmente, chegamos à cidade. Minhas costas doíam de tanto ficar sentado na carroça, e minhas pernas formigavam, ansiosas por um pouco de movimento. A viagem parecia ter durado uma eternidade, e eu já não aguentava mais a monotonia da estrada. Assim que atravessamos os portões da cidade, senti um alívio momentâneo, mas logo fui tomado por uma sensação estranha.

    A cidade era… diferente. Velha, decadente, com casas humildes que pareciam prestes a desmoronar. As ruas eram estreitas e mal conservadas, com pedras irregulares que faziam a carroça balançar ainda mais. O ar carregava um cheiro de terra úmida e madeira envelhecida, mas, no meio de tudo isso, um aroma delicioso invadia minhas narinas, vindo de algum lugar distante. Era um cheiro que fazia meu estômago roncar de fome.

    — Kael, quando vamos comer? Estou morrendo de fome! — A voz de Aiza cortou o silêncio, ecoando pela rua vazia. Ela estava sentada ao meu lado, com as mãos sobre a barriga, fazendo uma careta de desconforto. — Já estou sentindo um cheiro de comida boa vindo de algum lugar. Vamos logo!

    Kael, que estava à frente, guiando a carroça, virou-se para olhar para nós. Seu rosto estava sério, como sempre, mas seus olhos pareciam cansados. — Vamos comer assim que eu encontrar uma pousada para passarmos a noite — respondeu ele, sua voz firme, mas sem energia.

    — Então vamos rápido, Kael! — Aiza choramingou, inclinando-se para frente, como se isso pudesse fazer a carroça andar mais depressa. — Eu não aguento mais!

    Eu também estava faminto. A última refeição que tivemos foi na casa de Kael, antes de partirmos. Desde então, só comemos algumas migalhas secas que ele trouxera consigo. Meu estômago roncava alto, e minha cabeça parecia leve, como se estivesse flutuando.

    — Ali! Achei uma pousada — Kael anunciou, apontando para um prédio à frente. Sua voz soou mais alta do que o necessário, quebrando o silêncio pesado que pairava sobre a cidade.

    — Finalmente! — Aiza exclamou, quase pulando da carroça. — Vai lá rápido, Kael, para podermos comer logo!

    Kael parou a carroça em frente à pousada e desceu, esticando as pernas antes de caminhar em direção à entrada. — Vamos entrar e alugar um quarto — disse ele, com um suspiro.

    Enquanto ele entrava, eu olhei ao redor. A pousada era… diferente do resto da cidade. Era bonita, quase chique, com uma fachada bem cuidada e detalhes que pareciam caros. A madeira do balcão era escura e polida, e as paredes eram feitas de pedras que brilhavam sob a luz fraca das lanternas. Não eram pedras comuns; pareciam daquelas que só pessoas ricas poderiam ter. Todos os móveis eram elegantes, com detalhes em ouro e tecidos finos. Mas havia algo estranho ali, algo que não conseguia identificar. O contraste entre a pousada e o resto da cidade era gritante. Como um lugar tão humilde poderia abrigar algo tão refinado?

    Kael apertou a campainha sobre o balcão, e o som ecoou pelo salão vazio. Poucos segundos depois, um homem alto surgiu de uma porta nos fundos. Ele estava vestido com roupas caras, mas seu visual era… estranho. Seu cabelo estava lambido para o lado, mas desalinhado, e seus dentes tortos brilhavam quando ele sorriu. — Boa noite. O que desejam? — perguntou ele, cuspindo um pouco ao falar.

    — Desejo alugar dois quartos pequenos para passar a noite — respondeu Kael, olhando o homem de cima a baixo com uma expressão de desdém.

    — Está bem. São 30 moedas de prata — disse o balconista, pegando duas chaves de um gancho atrás dele.

    Kael fez uma cara de quem não queria pagar tanto por tão pouco, mas pegou o dinheiro e entregou ao homem. — Aqui está — disse ele, com um tom de irritação na voz.

    Enquanto Kael finalizava o acordo, eu e Aiza fomos até a carroça pegar nossas coisas. Carregamos nossos pertences até os quartos, que ficavam no segundo andar. Quando abri a porta do meu quarto, fiquei desapontado. Era pequeno, muito pequeno, com apenas uma cama e nada mais. A cama não parecia confortável, e o colchão estava desgastado. Joguei minhas coisas no chão e me joguei na cama, seguido por Aiza, que fez o mesmo.

    — Essa cama é horrível! — Aiza reclamou, deitando-se ao meu lado. — É pior que a cama da casa do Kael! Deitar no chão seria melhor!

    Eu concordei com ela. A cama era dura como pedra, e cada movimento fazia o colchão rangir. Mas não havia muito o que fazer. Levantei e fui até o quarto de Kael, que ficava ao lado. Ele estava arrumando suas coisas, parecendo indiferente ao tamanho minúsculo do quarto.

    — Kael, por que não pegou um quarto maior? Cabíamos todos juntos — disse eu, tentando não parecer muito irritado.

    Kael parou o que estava fazendo e olhou diretamente para mim. Seus olhos eram frios, e sua expressão era severa. — Não reclame do que você tem, seu estúpido. Tem gente que não tem nem onde dormir. Não sei se você notou, mas as ruas dessa cidade estão cheias de sem-teto. Você não sabe o que é não ter nada, por isso está reclamando.

    Fiquei em silêncio, sentindo um nó na garganta. — Desculpe… eu não queria dizer isso — murmurei, tentando acalmar a situação.

    — Sem desculpas. Devia ter deixado você sem comer hoje só por causa disso — respondeu Kael, com um olhar de reprovação que me fez sentir ainda pior.

    — Não seja tão duro. Foi só um comentário — tentei argumentar, mas Kael já havia voltado a arrumar suas coisas.

    — Na próxima vez, você fica sem comida e ainda dorme no chão — ele disse, sem olhar para mim.

    Sai do quarto com o coração pesado, sentindo-me humilhado. Aiza me esperava no corredor, com uma expressão preocupada. — O que aconteceu? — ela perguntou.

    — Nada… vamos só esperar o Kael terminar — respondi, evitando seu olhar.


    Quando Kael finalmente terminou de arrumar suas coisas, saímos da pousada em busca de comida. O cheiro que havíamos sentido antes parecia vir de um bar próximo. Aiza estava tão animada que começou a correr na frente, ignorando nossos chamados.

    — Aiza, espera! Não corra assim! — gritei, correndo atrás dela. Kael, por outro lado, continuou caminhando calmamente, como se não se importasse.

    — Você não vai correr também? — perguntei a ele, ofegante.

    — Não será necessário — respondeu Kael, apontando para Aiza, que havia parado em frente a um bar velho e decadente.

    — Não saia correndo assim, Aiza! Algo poderia acontecer com você! — repreendi-a, mas ela apenas riu, ignorando minhas preocupações.

    Entramos no bar, e o cheiro de comida era ainda mais forte lá dentro. Meus olhos foram direto para uma torta que estava sobre a mesa de um homem no canto. Parecia deliciosa, com uma crosta dourada e um recheio que transbordava.

    Kael nos levou até uma mesa e nos fez sentar. — Fiquem quietos, vocês dois — ordenou ele, com um tom que não admitia discussão.

    Uma mulher bonita e simpática se aproximou da nossa mesa. — Boa noite. O que vão pedir? — perguntou ela, com uma voz suave e um sorriso caloroso.

    — Kael, pede aquela torta! Ela parece incrível! — Aiza quase gritou, com os olhos brilhando de expectativa.

    — Traga para mim uma bebida forte e três pedaços daquela torta — Kael respondeu, apontando para a mesa onde o homem estava comendo.

    — Está bem. É só isso? — perguntou a atendente, olhando para mim.

    — Você quer algo além da torta, Lucas? — Kael perguntou, virando-se para mim.

    — Não, só a torta está bom — respondi, ainda olhando para a mulher, que parecia deslumbrante.

    — Então é só isso mesmo — Kael confirmou, ignorando completamente a beleza da atendente, como se ela fosse apenas mais uma pessoa no meio da multidão.

    A torta chegou, e foi tão boa quanto parecia. Cada mordida era uma explosão de sabores, e eu quase me esqueci de tudo ao meu redor. Aiza estava em êxtase, com os olhos fechados e um sorriso de satisfação no rosto.

    — Ah, que torta deliciosa! Faz dias que não como algo tão bom! — ela exclamou, quase chorando de felicidade.

    — Você está dizendo que minha comida é ruim, Aiza? — Kael perguntou, com um tom de brincadeira, mas seus olhos estavam sérios.

    — Não, nada disso! É que sua comida tem um gosto peculiar, como se fosse te matar de tão bom que é! — Aiza respondeu, rindo.

    Kael não achou graça. — Vem cá, garota — ele disse, antes de dar um cascudo na cabeça de Aiza, tão forte que ela começou a chorar.

    — Eu estava brincando! — Aiza choramingou, segurando a cabeça.

    — Não me importo. Vocês dois vão para a pousada agora. Precisam dormir cedo para acordar cedo amanhã — Kael ordenou, com um tom final.

    — Tanto faz. Eu já ia dormir mesmo — murmurei, evitando seu olhar.


    De volta à pousada, algo me deixou inquieto. Havia alguns homens estranhos conversando com o balconista. Eles estavam vestidos com roupas escuras e suspeitas, e pararam de falar assim que nos viram entrar. Seus olhos se fixaram em mim, mas principalmente em Aiza, que ainda estava chorando. Senti um frio na espinha e agarrei a mão dela, puxando-a para longe dali.

    — Aiza, não chegue perto daqueles caras — sussurrei, tentando não chamar atenção.

    — Por que não? — ela perguntou, confusa.

    — Nada… só não chegue perto deles, está bem? — insisti, sem explicar.

    — Se você diz… — ela respondeu, com uma expressão de dúvida.

    Entramos no quarto e nos deitamos na cama dura. Aiza adormeceu rapidamente, mas eu fiquei acordado, olhando para o teto, com uma sensação de que algo estava errado. Meus olhos começaram a pesar, e logo o sono me levou.


    De repente, abri os olhos e estava em outro lugar. Um lugar estranho, onde o céu parecia infinito, e eu flutuava sobre nuvens macias. Tentei me levantar, mas meu corpo estava pesado, muito pesado. Olhei para baixo e vi que estava no meu corpo original, gordo e desajeitado. Meu coração disparou, e uma onda de pânico me tomou.

    — O que é isso? Onde estou? — gritei, olhando ao redor.

    Então, vi ela. Uma mulher linda, com cabelos negros longos e um vestido branco que brilhava como a luz do sol. Seus olhos eram azuis como o céu, e seu rosto era perfeito, sem uma única imperfeição. Ela parecia divina, como se fosse uma deusa.

    — Quem é você? Onde estou? — perguntei, tremendo.

    Ela sorriu, com uma expressão calma e serena. — Eu sou Galvata, a bruxa do destino — disse ela, com uma voz suave e melodiosa.

    — Bruxa do destino? O que isso significa? — perguntei, confuso.

    — Há muitos anos, eu era uma humana que recebeu o dom de moldar o destino. Com esse dom, também ganhei a responsabilidade de protegê-lo de qualquer dano — ela explicou, com um tom solene.

    — Dano ao destino? O que você quer dizer? — perguntei, ainda mais confuso.

    — Algo horrível está prestes a acontecer, mas não posso te contar o que é ainda — ela respondeu, com um olhar triste.

    — Isso deve ser um sonho… não é possível — murmurei, tentando convencer a mim mesmo.

    — Acredite em mim, Lucas. Eu te conheço melhor do que ninguém. Sei que você veio de outro mundo, que morreu esfaqueado lá. Sei tudo sobre você — ela disse, com uma voz que ecoava em minha mente.

    Meu coração parou. Como ela sabia disso? Como ela podia saber?

    — Agora você acredita em mim? — ela perguntou, com um sorriso gentil.

    — E por que eu estou nesse corpo? — perguntei, olhando para minhas mãos gordas.

    — Essa forma é como você se vê — ela respondeu, com um olhar penetrante.

    — Tudo bem, mas por que eu deveria confiar em você? — perguntei, ainda desconfiado.

    Ela sorriu novamente, como se já soubesse que eu faria essa pergunta. — Eu sei por que você veio para este mundo. Sei o que você fará aqui. Sei tudo o que acontecerá até o dia da sua morte.

    — Então, por que estou aqui? — perguntei, sentindo um frio na espinha.

    — Não posso dizer ainda, mas logo você descobrirá. Por enquanto, você deve se concentrar nas palavras que vou te dizer: Aiza está em perigo. Neste exato momento, enquanto conversamos, ela está em perigo.

    — O quê? Aiza está em perigo? Como eu saio daqui? Preciso ajudá-la! — gritei, sentindo o pânico tomar conta de mim.

    — Eu posso te tirar daqui, mas antes tenho que te dar um presente — disse Galvata, sua voz suave como uma brisa calma, mas carregada de uma autoridade que não podia ser ignorada. Ela se aproximou de mim, seus passos leves e graciosos, como se flutuasse sobre as nuvens. Seus olhos azuis brilhavam com uma luz própria, e seu vestido branco ondulava ao redor dela, como se fosse feito de névoa e luz.

    Ela parou bem na minha frente, e eu senti uma energia estranha no ar, como se o próprio espaço ao nosso redor estivesse vibrando. Então, ela levantou as mãos, uma delas colocando-se sobre meu peito, e a outra na minha cabeça. Seus dedos eram frios, mas ao mesmo tempo transmitiam uma sensação de calor que começou a se espalhar pelo meu corpo.

    — O que você está fazendo? — perguntei, minha voz tremendo. Eu queria recuar, mas algo me mantinha parado, como se estivesse preso em um trance.

    — Silêncio — ela ordenou, com um tom que não admitia questionamentos. Então, ela começou a murmurar palavras em uma língua que eu não entendia. Era uma melodia estranha, cheia de sons guturais e sussurros que pareciam vir de todos os lados ao mesmo tempo. Eu tentava entender, mas as palavras escapavam da minha compreensão, como se fossem destinadas a algo além da minha mente.

    Enquanto ela murmurava, senti algo mudar dentro de mim. Era como se uma porta que eu nem sabia que existia tivesse sido aberta, e uma energia desconhecida começasse a fluir através de mim. Minha visão ficou turva por um momento, e meu corpo parecia mais leve, como se eu estivesse flutuando. Então, de repente, a sensação passou, e Galvata afastou as mãos de mim.

    — Presta atenção — ela disse, sua voz agora mais grave, como se estivesse carregando o peso de milhares de anos. — Eu dei um pouco da minha mana para te ajudar. Em algum momento, sua mana será ativada, e você descobrirá outras coisas. Mas lembre-se: não conte a ninguém o que aconteceu aqui. Se o fizer, coisas ruins irão acontecer.

    Eu abri a boca para perguntar o que ela queria dizer, mas antes que eu pudesse falar, ela fez um movimento rápido com as mãos, e de repente eu estava caindo. O céu infinito ao meu redor desapareceu, e as nuvens se dissiparam como fumaça. Eu caía em um vazio escuro, com o vento uivando em meus ouvidos e meu coração batendo desesperadamente.

    — Aaaaaaaaaaaa! Socorro! — gritei, tentando me agarrar a algo, mas não havia nada. A queda parecia interminável, e o medo tomou conta de mim. Meus pensamentos estavam confusos, e tudo o que eu conseguia pensar era em Aiza. O que estava acontecendo com ela? O que Galvata quis dizer com “ela está em perigo”?

    De repente, abri os olhos. Estava de volta no quarto da pousada, deitado na cama dura e desconfortável. A luz fraca de uma vela iluminava o cômodo, e o silêncio era quase opressivo. Minha respiração estava acelerada, e meu corpo estava coberto de suor frio. Passei a mão ao lado da cama, procurando por Aiza, mas o espaço ao meu lado estava vazio.

    — Aiza? — murmurei, sentando-me rapidamente. Meu coração disparou quando percebi que ela não estava lá. Olhei ao redor do quarto, mas não havia sinal dela. As coisas dela ainda estavam espalhadas pelo chão, mas Aiza havia desaparecido.

    — Aiza! — gritei, pulando da cama. Meus pés bateram no chão frio, e eu corri para a porta, abrindo-a de uma vez. O corredor estava escuro e silencioso, com apenas a luz fraca das velas nas paredes iluminando o caminho. — Aiza! Onde você está?

    Nenhuma resposta. O silêncio era ensurdecedor, e o medo começou a se transformar em pânico. O que havia acontecido? Como ela poderia ter sumido assim, no meio da noite? Lembrei-me das palavras de Galvata: “Aiza está em perigo.” Meu estômago embrulhou, e uma onda de culpa me atingiu. Eu deveria ter protegido ela. Eu deveria ter ficado acordado.

    — AIZAAAAAA! — gritei novamente, minha voz ecoando pelas paredes vazias. Mas só o silêncio me respondeu.

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