Meu corpo balança de um lado para o outro, envolto em um torpor profundo. A preguiça pesa sobre minhas pálpebras, como se estivessem fundidas ao sono. Faz tanto tempo que não descanso assim… Sinto cada músculo relaxado, cada respiração lenta e profunda, mas o movimento contínuo me arrasta de volta à consciência.

    Abro os olhos por um breve instante, apenas o suficiente para captar a imagem de Kael à frente, suas mãos firmes segurando as rédeas da carroça enquanto ela avança por um caminho irregular. O sol bate em seu rosto, destacando as linhas duras de sua expressão.

    Então, com um esforço maior, levanto-me, sentindo a madeira áspera do banco sob minhas mãos. Meu braço esquerdo ainda pesado, ergo-o devagar e apoio minha mão no ombro de Kael.

    Kael… o que está acontecendo aqui? — Minha voz sai rouca, carregada de confusão.

    Ele não vira, mantendo os olhos fixos na estrada à frente.

    Estamos indo para Drogmog. — A resposta é seca, quase mecânica, como se estivesse repetindo um fato óbvio.


    A memória da masmorra volta em flashes—o cheiro de sangue, o frio do chão de pedra, a energia estranha que percorreu meu corpo. Ainda sinto o eco dela, como se minha pele ainda estivesse vibrando com aquela força desconhecida.

    Kael, preciso te contar uma coisa. — Engulo seco, tentando organizar os pensamentos. — Na masmorra… senti algo. Uma energia envolvendo meu corpo, diferente de tudo que já experimentei. Meus instintos pareciam afiados, como se eu pudesse fazer qualquer coisa… qualquer coisa que quisesse. Será que… será que despertei? Não tenho certeza, mas queria que você confirmasse.

    Dessa vez, ele se vira, e seus olhos—normalmente impassíveis—estão carregados de algo que não consigo decifrar.

    Naquele momento, Luca, você emanou uma aura que não era de um iniciante. — Suas palavras são medidas, mas há um tremor nelas, quase imperceptível. — Era como se você já tivesse manipulado mana milhares de vezes. Algo que só um veterano de anos de treinamento poderia alcançar. Um recém-despertado mal consegue conjurar um feitiço básico, muito menos curar alguém à beira da morte. Você não deveria ter sido capaz de fazer nada.

    Um silêncio pesado se instala entre nós.

    Era impossível. — Ele conclui, como se a própria ideia o perturbasse.


    Minha mente se agita. Galvata… Ela mencionou algo sobre me emprestar sua mana. Será que foi isso?

    Kael… o que aconteceu depois que eu desmaiei? — pergunto, tentando juntar os fragmentos da memória.

    Ele suspira, como se carregasse o peso do mundo nos ombros.

    A aura dourada que saía de suas mãos… ela desapareceu assim que você perdeu a consciência. A garota ruiva perdeu a sua aura e também desmaiou. Peguei algumas roupas que havia comprado para Aiza e a vesti. Depois, trouxe todos para a carroça. — Ele faz uma pausa, e sua voz se torna mais sombria. — Mas antes disso… dei um funeral digno às outras garotas. Para que seus espíritos não ficassem presos neste mundo.


    Uma lágrima escorre pelo meu rosto antes que eu possa detê-la. A imagem daquelas celas—o cheiro de morte, os corpos abandonados—me ataca como uma facada.

    Por que fizeram isso com elas? — Minha voz se parte, a raiva e a dor se misturando em um só grito. — Por quê?

    Kael não me olha, mas sua mão se aperta em torno das rédeas.

    O balconista da pousada… ele sequestrava mulheres e crianças que alugavam quartos. Vendia-as como escravas no mercado negro. Por isso a pousada era tão luxuosa—para atrair mais vítimas. O dinheiro das vendas… ele usava para melhorá-la ainda mais.

    Isso nem deveria existir! — Minha voz soa estridente, a fúria queimando em meu peito.


    Kael se volta completamente agora, e pela primeira vez, vejo algo além daquela fachada de dureza—uma dor profunda, antiga, que corroeu sua alma por anos.

    Lucas… — Sua voz é um rugido baixo, carregado de amargura. — Vivemos em um mundo podre. Os que estão no poder só se importam consigo mesmos. A escravidão foi “abolida” no papel, mas na realidade? Continua. Todos os dias, pessoas são compradas e vendidas como gado. E ninguém faz nada, a menos que isso os afete diretamente.


    O silêncio que se segue é sufocante.

    É igual ao meu antigo mundo. Políticos, ricos… todos fingindo que não veem o sofrimento alheio. Aqui, sem dinheiro, você é menos que nada—um inseto a ser esmagado.

    Então, Kael quebra o silêncio, sua voz mais grave do que nunca.

    Lucas… quando eu era jovem, era como você. Tinha esse mesmo brilho nos olhos, essa sede de mudança. Tornei-me um Cavaleiro Real de Frewer, um dos mais fortes… mas quanto mais alto subia, mais eu via a verdade.

    Ele fecha os olhos por um momento, como se revivesse cada horror.

    Este mundo não tem salvação. E eu… eu me tornei parte dele. Cometi atrocidades em nome de ordens que recebia. Destruí vilarejos inteiros. Matei mães que imploravam pelas vidas de seus filhos. — Sua mão treme. — Cada alma que ceifei ainda vive dentro de mim. Ouço suas vozes… todos os dias. Chegou um ponto em que eu só queria morrer… mas isso seria fugir. Eu tenho que carregar esse peso até o fim.


    Ele me olha agora, e pela primeira vez, vejo Kael verdadeiro—não o guerreiro impenetrável, mas um homem quebrado pelo próprio passado.

    Mas então… você apareceu. Quando você me implorou para treiná-lo, vi aquele mesmo brilho que eu tinha perdido. Por isso decidi ajudá-lo e à sua irmã. Para que vocês possam fazer o que eu falhei. — Ele segura meu ombro com força. — Prometa-me, Luca. Prometa que nunca cometerá os mesmos erros que eu. Que nunca perderá esse brilho nos olhos.


    Sinto um nó na garganta. Kael sempre foi uma figura imponente, mas agora… agora ele é humano.

    Kael… — Minha voz é firme, carregada de convicção. — Você viveu coisas que ninguém deveria. Fez o que fez, mas ainda está aqui. E eu prometo—não vou desistir. Honrarei sua confiança.

    Coloco a mão no peito, sentindo o coração bater forte.

    Não vou deixar esse mundo me corromper.


    O resto da viagem é feito em silêncio, mas não é desconfortável. É como se um peso tivesse sido compartilhado entre nós.

    Horas depois, a estrada de terra dá lugar ao asfalto liso de Drogmog. A carroça para de balançar, e no horizonte, a cidade se ergue—um contraste gritante com o vilarejo sombrio que deixamos para trás.

    Está preparado, Luca? — Kael olha para a cidade, sua voz fria, mas agora com um fundo de algo que quase parece… esperança. — A partir de agora, sua jornada começa de verdade. E depois desta cidade… você vai desejar a morte.

    Mas eu sorrio, sentindo o sangue ardendo em minhas veias.

    Já te disse, Kael. Não vou desistir.

    Meus olhos brilham, refletindo a luz do sol poente.

    Estou pronto.

    moderador john

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