Capítulo 17 — força de vontade
A viagem até a floresta não levou muito tempo, mas cada minuto foi pesado como se estivéssemos arrastando correntes invisíveis. O silêncio entre mim e Kael era sufocante, e sua expressão fechada fazia o ar dentro da carroça parecer mais denso. Ele não havia me perdoado ainda — isso era óbvio. Cada vez que nossos olhos se cruzavam, ele desviava o olhar com desprezo. Eu queria dizer algo, me explicar, mas a tensão entre nós parecia sólida demais para atravessar com palavras.
A floresta surgiu à frente como uma muralha viva. As árvores altas e escuras dançavam sob a brisa noturna, e a luz da lua, cheia e brilhante, recortava silhuetas misteriosas no chão. Era como se a floresta tivesse parado para nos observar.
Mesmo com o balanço da carroça, Aiza e a garota ruiva continuavam dormindo profundamente, como se o mundo ao redor tivesse deixado de existir para elas. Eu me perguntava quando elas iriam acordar. Eu sentia pena delas por tudo o que tinha acontecido com elas — o abuso e todo o resto — principalmente a ruiva. Ela estivera à beira da morte, tão próxima que só um milagre a salvou… ou talvez não tenha sido um milagre, mas sim aquela magia dourada que brotou de mim como um instinto, sem que eu entendesse como ou por quê.
carroça parou com um leve solavanco. Kael desceu em silêncio, seus passos firmes esmagando as folhas secas no chão da floresta. Ele respirou fundo, observando a imensidão verde à sua frente, então se virou para mim com um olhar que não era mais de raiva, mas de urgência — um peso sério que me fez engolir em seco.
— Venha, Lucas. Vamos começar a treinar agora mesmo — disse ele, a voz firme e decidida, como se o tempo fosse nosso inimigo.
— O quê? Agora? — retruquei, a voz carregada de cansaço. — Não acha que é tarde demais? Nós acabamos de chegar…
— Apenas venha — ele cortou, impaciente. — Você precisa aprender a controlar aquela magia que usou para curar a garota ruiva. Se quiser sobreviver nesta floresta, vai ter que treinar dia e noite. Aqui não há espaço para fraqueza. Se você vacilar, as bestas mágicas vão transformar seu corpo em almoço antes que possa gritar por ajuda.
Ele falava com empolgação, como se estivesse sedento por ação, por resultados. Seus olhos brilhavam com expectativa, mas seu rosto era uma rocha — sério e implacável.
— Mas tem que ser agora mesmo? Não podemos começar amanhã? Só um pouco de descanso, por favor… — tentei insistir, sentindo os músculos pedindo por uma pausa. Minha mente estava um caos, e meu corpo, exausto.
— Calado — ele respondeu seco, como um general comandando seu soldado. — Isso é uma ordem.
Fiquei ali por um segundo, paralisado. A brisa da floresta sussurrava entre os galhos, como se a própria natureza me alertasse de que algo importante estava para acontecer. Meu coração batia forte — medo, ansiedade, talvez empolgação? Eu não sabia. Mas respirei fundo, saltei da carroça e segui Kael em direção à escuridão da floresta, sem saber o que me aguardava.
Kael não parava de andar, seus passos firmes ecoavam entre as árvores altas e antigas da floresta. Cada vez mais, ele nos guiava para dentro da escuridão, como se estivesse sendo atraído por algo invisível. As árvores ao redor ficavam mais densas, os galhos se entrelaçavam no alto como se tentassem esconder a lua, até que sua luz desapareceu por completo. A floresta parecia respirar ao nosso redor, sussurrando em línguas que eu não compreendia, e o ar ali dentro era pesado, denso, como se estivesse carregado de algo antigo e perigoso.
A cada passo, meu corpo se arrepiava. Eu era só uma criança, e aquele lugar parecia um pesadelo saído dos piores contos. Se estivesse sozinho, eu nunca teria coragem de ir tão fundo. Mas Kael estava ali — e mesmo com a raiva que ele parecia guardar por mim, eu confiava nele. Ele era forte. Incrivelmente forte. E só a presença dele já me dava coragem para continuar andando.
— Kael, por que estamos indo tão longe assim? — perguntei, tentando esconder meu medo na voz. — As meninas… elas podem ficar em perigo se você estiver longe.
Balancei as mãos, ansioso. A floresta estava ficando assustadora demais, e eu não conseguia parar de pensar que devíamos ter ficado mais perto da carroça.
Kael nem olhou pra mim ao responder:
— Elas estão seguras. Nenhuma criatura se atreve a chegar perto daquela parte da floresta. Aquela área já foi purificada por aventureiros há muito tempo. Lá não há mais bestas mágicas — disse ele, com a mesma tranquilidade de sempre, como se já soubesse exatamente o que estava fazendo.
— Tá, mas… qual é a necessidade de irmos pra tão longe? A gente podia ter começado a treinar ali mesmo, onde elas estão — comentei, meio emburrado, pensando que Kael estava complicando tudo à toa.
Ele riu. Uma risada baixa e maliciosa, que me fez gelar por dentro. Então parou de andar e virou-se pra mim com um olhar estranho.
— É pra elas não se machucarem com o treino que você vai ter agora — disse ele, sorrindo de um jeito que me deixou desconfortável.
Engoli seco.
— O que você está planejando, Kael? O que vai ser meu treinamento? — perguntei, já sentindo um frio na barriga.
Os olhos dele brilharam no escuro. Ele parecia animado. Assustadoramente animado.
— Vamos lutar até você conseguir me acertar com um ataque mágico. Só assim vamos descobrir qual é o seu tipo de magia — respondeu, firme, com um olhar faminto por batalha, como se estivesse prestes a caçar algo.
— Mas Kael, eu só usei magia uma vez na vida! E nem sei como fiz aquilo! Eu não consigo sentir a mana ao meu redor… nem dentro de mim! Como você espera que eu te acerte com magia assim do nada?! — gritei, indignado. Aquilo parecia loucura. Eu era só uma criança. Ele não podia estar falando sério…
Mas ele estava.
Kael respirou fundo, e sua expressão mudou. Deixou o tom provocador de lado e falou com seriedade:
— Lucas… você não é uma criança comum. Você acha mesmo que uma pessoa que nunca usou magia antes, que nem sabia o que estava fazendo, seria capaz de invocar um feitiço dourado tão poderoso a ponto de salvar alguém à beira da morte? Aquilo não foi normal. Aquilo foi extraordinário. — Ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo bem as palavras. — Pra fazer aquilo, você precisou absorver uma quantidade absurda de mana. Dez vezes mais do que uma pessoa normal absorve, mesmo depois de anos de treino. E você só tem cinco anos.
— Lucas, você é diferente. Você é especial. E vai conseguir. Apenas confie em mim — disse Kael, com uma voz firme, mas cheia de convicção.
Naquele momento, mesmo com o medo queimando no meu peito, alguma coisa dentro de mim acreditou nele.
Então, com os punhos erguidos, me preparei para lutar. As palavras de Kael ainda ecoavam na minha mente, me enchendo de uma coragem que eu nunca havia sentido antes. Era estranho… pela primeira vez, alguém acreditava em mim. De verdade. Nem mesmo na minha vida passada eu tinha escutado algo tão inspirador. Aquilo me inflamava por dentro.
Mas essa chama durou pouco.
Num piscar de olhos, Kael — que estava a alguns metros de distância — simplesmente desapareceu da minha visão. Nem tive tempo de reagir. No instante seguinte, senti um impacto devastador nas costas. Um chute brutal me lançou contra uma árvore, como se eu fosse um boneco de pano. O ar saiu do meu peito. Cada fibra do meu corpo gritava de dor.
Naquele momento, toda a confiança que eu havia juntado se desfez. A esperança que florescia dentro de mim morreu ali, esmagada pelo golpe. Meus músculos se recusavam a se mover. Eu tentava ordenar às minhas pernas que se levantassem, aos meus braços que me apoiassem… mas nada respondia. Era como se meu próprio corpo tivesse desistido de mim.
Kael me observava com os braços cruzados e um olhar frio. Não era raiva, era decepção.
— Levanta agora — disse ele, firme, com um tom que cortava como navalha. — Eu não mandei você descansar. E saiba que ainda nem estou usando nem metade da minha força. Então levanta. Continue.
Senti um nó na garganta. As palavras dele eram duras… mas verdadeiras. E doíam, não só fisicamente. Doíam na alma.
Ali, jogado no chão como lixo, me senti impotente. Inútil. Como eu poderia proteger Aiza? Como eu poderia vingar minha mãe? Eu era patético. Um peso. Um covarde. O tipo de pessoa que sempre depende dos outros, que se agarra a quem é forte esperando ser salvo. Sempre fui assim… até na minha vida passada.
Era esse o papel dos fracos num mundo cruel como esse.
Mas então… algo mudou.
Uma faísca acendeu dentro de mim. Uma sensação nova, selvagem, que me arrepiou até os ossos. Não era esperança. Não era fé. Era vontade. Era sede. Uma chama que crescia no meu peito, queimando com fúria. Não era pelo Kael. Não era pelas palavras dele. Era por mim. Um desejo avassalador de me levantar, de lutar, de ser forte. Como se meu corpo, minha alma, tudo em mim estivesse clamando por poder.
Apoiei a mão no chão. Tremendo, respirei fundo. A dor continuava, mas agora era secundária. Tudo o que eu sentia era essa vontade. Essa urgência. Essa obsessão por força.
“Eu vou atrás de você, Kael… a qualquer custo.”
Me levantei, mesmo com os ossos gritando. Mesmo que eu tivesse que morrer tentando, mesmo que eu tivesse que vender a alma para o próprio diabo… eu me tornaria forte.
— Eu juro — murmurei, ofegante, com os olhos firmes. — Pela minha vida… eu vou conseguir.
E, então, me preparei para o segundo round.
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