Onde estou? O que aconteceu com a minha visão? É como se estivesse preso em um sono profundo, meus olhos pesados como o próprio céu, recusando-se a despertar. Cada tentativa de abrir as pálpebras era em vão, como se estivessem seladas por uma força invisível.

    — Oi, tem alguém aí? — minha voz tentou romper o vazio, mas foi acolhida apenas pelo eco do silêncio absoluto. A escuridão parecia me envolver, consumindo-me pouco a pouco, como se eu estivesse à deriva em um oceano sem fim, onde nem as estrelas ousavam brilhar.

    No entanto, algo quebrou essa vastidão silenciosa. Uma voz, fina como seda dançando ao vento, cortou a escuridão como uma lâmina afiada. Logo, outra voz ecoou, potente e grave, como o rugido de um leão nas profundezas da selva.

    De repente, meus olhos começaram a se abrir, devagar, como uma flor tímida desabrochando ao primeiro toque da manhã. A luz lentamente me envolvia, afastando a escuridão que me aprisionava. Quando finalmente recuperei a consciência, percebi que estava no colo do meu pai. À sua frente, minha tia Ayesha mantinha-se firme, sua postura delicada como uma flor, mas com raízes profundas de força.

    — Ayesha, preciso que você cuide de Lucas — disse meu pai com um olhar resoluto, penetrando diretamente nos olhos dela. — A mãe dele está exausta pelo parto, e eu tenho alguns assuntos urgentes para resolver. Confio apenas em você para cuidar do meu filho.

    — Claro, Rike. Eu cuidarei dele — respondeu Ayesha, com sua voz suave e cheia de carinho.

    Meu pai, com ternura, me entregou nos braços dela, como se estivesse passando um tesouro inestimável.

    — Então já vou indo, Ayesha. Volto ao anoitecer.

    — Estarei esperando, Rike. Até logo — disse ela, com um leve sorriso de despedida.

    Meu pai partiu rapidamente, seus passos ecoando como o vento apressado. Fiquei me perguntando para onde ele poderia estar indo com tanta urgência.

    — E então, pequeno Lucas, que tal fazermos compras com a titia? — disse Ayesha, com animação, me levantando suavemente no ar, como se eu fosse uma pluma.

    Ela me carregou até a porta de casa. Assim que botou o pé fora, não pude deixar de notar o jardim à nossa frente, que se estendia como um reino florido diante de nós.

    O jardim era um verdadeiro santuário da natureza, onde o tempo parecia desacelerar. Um caminho de pedras gastas serpenteava por entre bordas de flores vibrantes, que explodiam em cores como se fossem pinceladas do arco-íris. Vermelhos, amarelos, rosas e roxos dançavam suavemente sob a carícia do vento.

    No centro, uma fonte de mármore se erguia majestosamente, lançando água cristalina em um lago sereno. O som da água era como uma melodia suave, acompanhada pelos reflexos de luz que brincavam na superfície como pequenas estrelas.

    Ao redor, arbustos perfeitamente aparados e estátuas elegantes conferiam ao lugar um ar de tranquilidade e sofisticação. Um labirinto de sebes verdes aguardava, como um convite silencioso para explorar seus mistérios. Nos recantos mais ocultos, bancos de madeira cobertos por almofadas ofereciam um refúgio de descanso e contemplação.

    As árvores, altas e imponentes, estendiam seus galhos como braços protetores, lançando sombras refrescantes que contrastavam com o calor suave do sol. A brisa carregava o perfume das flores, envolvendo o jardim em uma fragrância delicada e reconfortante.

    Então, Ayesha caminhou até um imenso portão de aço, adornado com detalhes tão finos que pareciam contar histórias esquecidas. Ao lado do portão, dois guardas, vestindo trajes brancos e portando espadas em suas cinturas, mantinham-se atentos.

    — Vocês podem abrir o portão para mim, por favor? — pediu Ayesha, com a mesma doçura que havia usado comigo.

    — Claro, princesa — responderam os guardas com reverência.

    Princesa? Minha tia é da realeza? Se for, isso explica a imensidão da casa. Mas então, se ela é uma princesa, minha mãe também deve ser… E isso me torna um príncipe? Mal consigo acreditar. Nesta vida, parece que tirei a sorte grande.

    À nossa frente, uma carruagem majestosa aguardava. Os cavalos, negros como a noite pontuada por estrelas, puxavam o veículo com uma elegância imponente. A carruagem, com detalhes dourados, parecia mais um trono em movimento, cada detalhe exalando riqueza e poder.

    Ayesha entrou na carruagem, e lá dentro o espaço parecia maior do que eu imaginava, adornado com tapeçarias finas e assentos luxuosos que exalavam conforto.

    O motorista iniciou a jornada, e a carruagem começou a se mover com um suave balanço.


    Depois de uma longa viagem de carruagem, chegamos ao destino final. Minha tia se levantou suavemente e saiu da carruagem.

    As ruas ao nosso redor eram um espetáculo de riqueza e opulência. Cada loja brilhava como uma joia cuidadosamente lapidada, exibindo seus produtos luxuosos em vitrines cintilantes, enquanto as pessoas caminhavam, com o ar superior de quem pertencia a esse mundo de excessos. O contraste era quase esmagador, como um abismo separando os ricos e os pobres.

    De repente, a imagem perfeita da alta sociedade foi quebrada de maneira brutal. Um homem, coberto de sujeira, com roupas em farrapos e pés descalços, aproximou-se da carruagem. Sua aparência era a própria imagem da miséria, como se o peso de cada dificuldade tivesse gravado suas marcas em seu corpo. Ele caiu de joelhos, sua voz trêmula, cheia de desespero, soando como um eco triste naquele cenário:

    — Minha princesa, por favor, me ajude! Estou implorando, por favor, me ajude!

    O contraste era tão grande que parecia um choque entre dois mundos. Minha tia, Ayesha, olhou para ele com um misto de compaixão e tristeza, seus olhos refletindo a angústia de ver alguém em tal estado. O olhar dela era como um raio de sol que tenta aquecer uma flor congelada.

    Enquanto observava a cena, uma sensação familiar, mas perturbadora, começou a crescer dentro de mim, como se aquela tragédia fosse um eco de algo já vivido. E, antes que eu pudesse compreender o que estava acontecendo, o som agudo de uma lâmina cortando o ar ressoou.

    Um dos guardas puxou sua espada e, com um golpe rápido e preciso, cortou a cabeça do homem. A vida foi ceifada em um único segundo, como uma vela apagada pelo vento.

    — O que você fez?! — gritou minha tia, sua voz cheia de horror, enquanto seu rosto se transformava numa máscara de incredulidade e fúria.

    — Fiz o que era necessário — respondeu o guarda, sua voz tão fria quanto o aço de sua espada.

    — Ele estava ajoelhado, pedindo ajuda! — Ayesha exclamou, seus olhos ardendo de indignação.

    — Ele chegou perto demais da realeza. A lei é clara: nenhum plebeu pode se aproximar da realeza, e a punição para isso é a morte. Eu apenas fiz meu trabalho — disse o guarda, impassível, como se a vida do homem não tivesse mais valor do que uma folha ao vento.

    Ao redor, o público começou a aplaudir. Para minha surpresa, as pessoas se comportavam como se tivessem acabado de assistir a um espetáculo.

    — É isso que vagabundos merecem!

    — Ele deveria ter sofrido mais!

    As palavras das pessoas me atingiram como uma chuva de pedras. O ódio nas vozes, a frieza nos olhos, tudo parecia surreal. Era como se a humanidade tivesse sido arrancada delas, deixando apenas o prazer mórbido de ver o sofrimento alheio.

    Minha tia, visivelmente perturbada, respirou fundo antes de falar:

    — Vamos embora, Lucas. Não é mais um bom dia para fazer compras.

    Seus olhos, antes cheios de vida, agora refletiam uma profunda decepção. O desgosto em seu rosto era evidente. Ela olhou para o guarda com nojo, como se sua presença fosse uma afronta à decência.

    Enquanto nos afastávamos, prestes a subir de volta na carruagem, uma pequena figura emergiu correndo da multidão. Era uma menininha, não maior que dois anos, com cabelos brancos como a neve e olhos de um cinza profundo. Ela se jogou sobre o corpo do homem, soluçando de forma desesperada.

    — Não, papai! Não, papai! — gritava ela, sua voz rasgando o ar como uma lufada de vento num dia calmo.

    Aquela cena partiu o coração de minha tia, que se aproximou da menina com cuidado, como se se aproximasse de algo frágil, à beira de quebrar.

    — Qual é o seu nome, pequena? — A voz de Ayesha era suave, quase um sussurro, como uma brisa gentil tentando acalmar uma tempestade. — Meu nome é Ayesha Frewer.

    A menina, ainda chorando, levantou os olhos marejados e respondeu:

    — Meu nome é Aiza.

    — Você tem algum lugar para ir, Aiza? — perguntou minha tia, com sua voz carregada de carinho.

    — Não… — murmurou a menina, com a voz embargada pelo choro.

    — E sua mãe, onde está? — continuou minha tia, enquanto se ajoelhava ao lado de Aiza.

    — Minha mãe sumiu… — respondeu Aiza, com os olhos cheios de uma dor que parecia muito grande para alguém tão pequeno.

    — Você gostaria de morar comigo? — perguntou Ayesha, estendendo a mão à menina, seus olhos cheios de uma promessa silenciosa de proteção.

    Aiza olhou para ela, surpresa, com um vislumbre de esperança:

    — Você deixaria?

    — Claro que sim, querida — respondeu Ayesha, com seu sorriso caloroso como o nascer do sol depois de uma noite de tempestade.

    A menina correu para os braços de minha tia, chorando ainda mais, mas dessa vez de alívio. Era como se, naquele abraço, o mundo cruel ao redor de Aiza tivesse desaparecido por um instante.

    — Vamos para sua nova casa, então — disse minha tia, segurando firme a mão da menina.

    Aiza, ainda soluçando, balançou a cabeça em concordância. Sua tristeza parecia menos pesada agora, como se a presença de minha tia fosse um bálsamo para suas feridas.

    Enquanto entrávamos na carruagem, Aiza me olhava com curiosidade e melancolia. Seus olhos cinza, tão únicos, eram como um céu nublado antes de uma tempestade. Seu cabelo branco brilhava à luz, e eu nunca tinha visto nada tão estranho e, ao mesmo tempo, tão belo.

    — Espero não estar incomodando vocês… — disse Aiza, com uma voz tímida, quase inaudível.

    — Claro que não — respondeu minha tia, sorrindo, como se estivesse falando com sua própria filha.

    — Desculpe perguntar… mas esse bebê é seu filho? — Aiza perguntou, apontando para mim.

    Minha tia soltou uma risada suave.

    — Não, ele é meu sobrinho.

    — E você não precisa me chamar de moça. Pode me chamar de Ayesha, se quiser — disse minha tia, seu tom acolhedor.

    — Tá bom — respondeu Aiza, com a franqueza dolorida de uma criança que perdeu muito.

    Enquanto eu observava essa troca de palavras, não pude deixar de pensar no quão bondosa minha tia era. Ela era como uma luz brilhando em meio à escuridão, um exemplo de que, mesmo no meio de um mundo cruel, ainda havia bondade.

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